terça-feira, 19 de junho de 2012

Verdade e Mentiras na Literatura: Os Dez Mandamentos do Escritor

(Alguns dos) DEZ MANDAMENTOS DO ESCRITOR

1. Não beberás, não fumarás, nem usarás drogas

Para ser escritor, você precisa de toda massa cinzenta de que dispõe.

2. Não terás hábitos dispendiosos

Um escritor nasce do talento e do tempo – tempo para observar, estudar, pensar. Assim, você não pode se dar ao luxo de gastar uma única hora ganhando dinheiro para coisas supérfluas. (...) É preciso decidir sobre o que é mais importante, escrever bem ou viver bem. Não se atormente com ambições contraditórias.

3. Sonharás e escreverás, sonharás e reescreverás

Não deixe que ninguém lhe diga que está perdendo tempo olhando para o espaço vazio. Não existe outro modo de conceber um mundo imaginário.

4. Não serás vaidoso

A maioria dos livros ruins ficou assim porque seus autores tentaram justificar a si mesmos (...) Se você acha que é racional, sábio, bom, uma dádiva para o sexo oposto, uma vítima das circunstâncias, então é porque não se conhece o bastante para escrever.

5. Não serás modesto

A modéstia é uma desculpa para a preguiça, o desleixo, a autopiedade. Pequenas ambições evocam pequenos esforços. Nunca conheci um bom escritor que não estivesse tentando ser um grande autor.

6. Pensarás constantemente naqueles que são realmente grandes

“As obras do gênio são regadas com suas lágrimas”, escreveu Balzac, em As Ilusões Perdidas. Rejeição, escárnio, pobreza, fracasso, a luta constante contra as próprias limitações – esses são os principais acontecimentos na vida da maioria dos grandes artistas, e se você aspira a compartilhar com eles o destino deve se fortalecer aprendendo com eles.

8. Não adorarás Londres / Nova York / Paris

Frequentemente encontro escritores vindos de lugares remotos que acreditam que as pessoas que vivem nas capitais da mídia têm alguma informação especial sobre arte que eles mesmos não possuem (...) O provinciano é muitas vezes uma pessoa inteligente e talentosa, que acaba seguindo a opinião de algum jornalista ou acadêmico falastrão sobre o que constitui a excelência literária e trai seu talento (...) Mesmo que você more onde o vento faz a curva, não existe motivo para se sentir por fora. Se tiver uma boa biblioteca com brochuras de grandes autores e se os ler constantemente, você terá acesso a mais segredos sobre a literatura do que toda a mistificação cultural que dá o tom nas grandes cidades.


Os trechos acima são do livro Verdade e Mentiras na Literatura: Os Dez Mandamentos do Escritor (Ed. Autores Associados, 2011, 512 pgs.) de Stephen Vizinczey. A primeira vez que ouvi falar sobre os Mandamentos foi no começo de maio de 2007, quando estava perambulando por uma das lojinhas de Bariloche e encontrei um trecho deles em um livro chamado El Taller Del Escritor. Encontrei outros trechos dos Mandamentos na internet, em espanhol. Gostei tanto do texto que fiz uma citação no romance em que estou trabalhando, no capítulo inicial, quando o protagonista entra em uma livraria e vê um banner com “Os Dez Mandamentos do Escritor”, de Stephen Vizinczey, e já tinha publicado eles na versão antiga deste blog. Mas foi só neste ano, quando catei o blog de Vizinczey na internet e escrevi para ele, que ele em pessoa me disse que o livro tinha sido lançado no Brasil no ano passado, e que adoraria que eu descobrisse o livro em meu blog.

Vizinczey, que se considera menos um escritor do que um reescritor, trabalha constantemente seus textos. O livro é uma coletânea de resenhas e ensaios, escritos entre 1986 e 2010, encabeçados por seus perspicazes mandamentos, fluindo através de sua escrita precisa e sua imensa cultura histórica e artística, ainda mais se considerarmos que muitos deles foram escritos na época anterior a internet. Desde o Primeiro Mandamento, ele já deixa claro que a criação literária tem quase nada a ver com festas e noites de badalação, e sim com trabalho duro, perseverança e foco. Incita ao estudo e releitura constante dos clássicos, e o contato diário com a palavra. Para ele, ser escritor é como se dedicar à excelência em um instrumento musical: um dia sem praticar e a coisa vai embora. Tendo estudado na adolescência para ser maestro, aprendeu desde cedo o valor da disciplina e da constância. “Não deixarás passar um dia sem reler algo grandioso”, diz o Sétimo Mandamento. O estudo constante, diário, das obras-primas. O que faz a grandeza dos livros essenciais? Qual a sua estrutura, quais os mecanismos de suas vozes narrativas, como seus climas foram construídos? Vizinczey dá a dica: é preciso ler um bom livro pelo menos cinco vezes para realmente entendê-lo.

No Segundo Mandamento, ele nos conta que depois do fim da derrota da Revolução Húngara, foi para o Canadá sabendo apenas 50 palavras em inglês, e quando se deu conta de que era um escritor sem uma língua subiu até o topo de um edifício alto em Montreal com a intenção de saltar, mas perante o medo da morte, e mais ainda de ficar paralítico, decidiu em vez disso se tornar um escritor em língua inglesa. Foi aprendendo mais do idioma escrevendo roteiros, depois fundando uma revista literária e trabalhando na rádio como escritor e produtor. Pediu demissão e pagou do próprio bolso a publicação de seu primeiro livro (sem contar as três peças banidas anteriormente pelo regime comunista na Hungria), In Praise of Older Women, que foi a primeira e única novela com a publicação paga pelo próprio autor a atingir a lista dos best-sellers do Canadá. Vizinczey também fala sobre o poder destrutivo da crítica, o poder de vida e morte sobre quem deve ser lido e quem deve permanecer no ostracismo, dizendo que é preciso ter coragem moral para dizer que achou um lixo o que todos adoram, e louvar as qualidades de um texto que todos falam mal. É preciso ter coragem para pensar por si mesmo, para assumir suas escolhas. Como quando criticou o livro de William Styron que ganhou o Pullitzer, Confessions of Nat Turner, dizendo que é tão absurdamente equivocado sobre a natureza humana e a escravidão, sendo tão impensável um negro olhar para os senhores escravocratas como (mesmo que só alguns) sendo pessoas decentes quanto um judeu pensando o mesmo dos oficiais nazistas. E graças a esse texto ácido, a imprensa evitou resenhar ou mesmo comentar seu An Innocent Millionaire, que fez sucesso por mais de duas décadas em várias línguas, e quando o respeitado editor Lewis H. Lapham quis resenhar o livro em sua coluna no The Wall Street Journal foi vetado. E porque ele insistiu, foi demitido.

Também estão presentes na coletânea os dois trechos de Vizinczey, citados pela escritora madrilena Rosa Montero em seu A Louca da Casa:

Há dois tipos básicos de literatura. Um ajuda você a entender, o outro ajuda a esquecer; o primeiro ajuda você a ser uma pessoa livre e um cidadão livre; o outro ajuda as pessoas a manipular você. Um é como astronomia; o outro é como a astrologia.

E falando da diferença entre Stendhal e a maioria da ficção de outros autores (e que bem poderia ser a diferença entre o autor maduro e o escritor jovem); ele fala sobre nós mesmos quando está concentrado em si mesmo, ao passo que os outros escrevem sobre si mesmos até quando estão falando sobre outras pessoas.

Em Louvor das Mulheres Maduras e O Milionário Inocente estão fora de catálogo aqui no Brasil, mas este Verdade e Mentiras na Literatura é um belo panorama para conhecer o texto e as ideias de Vizinczey. E para quem quiser saber mais da editora, pelo Twitter ou Facebook:

http://twitter.com/jovem_leitor

http://twitter.com/editoraautores

http://www.facebook.com/autoresassociados

sábado, 2 de junho de 2012

Os Quatro Cavaleiros

Ano passado, RIP completou 18 anos. E hoje, 19 anos depois – e ainda escrevendo! –, decidi fazer a homenagem que fiquei devendo ano passado. O conto abaixo foi originalmente uma história de vinte páginas de word em espaçamento simples (quase cinquenta páginas de um livro) escritas entre 95 e 98. A versão abaixo, totalmente reescrita, foi composta em uma única madrugada de 2002, e rende pouco mais de duas páginas de word (falando em concisão...), e foi escrita para a versão original do Distantes Trovões. Sempre quis escrever contos com trilha sonora, mais por curiosidade do que por influenciar na leitura, mas para quem se interessa pelo processo de criação, tive as fagulhas iniciais do conto abaixo ouvindo as melodias de Older e, muito especialmente, Pilgrim. Acho que ele é um conto para ler em uma noite chuvosa. Ou pelo menos em uma noite de outono, como essas que estão fazendo. Uma singela homenagem às histórias de ação, a quem serei eternamente devedor, antes do vigilante RIP se tornar gente grande, com seus conflitos de vinte e poucos e de trinta e poucos, e reencarnar nos dois protagonistas das duas narrativas longas que escrevi anos depois.

Bom, it’s show time.


OS QUATRO CAVALEIROS

Um trovão. O céu e o inferno ameaçam abrir suas portas, e o barulho que se segue indica que os portões serão escancarados. A Terra treme junto com o ruído, casamento de bomba e terremoto. O estrondo causado pela descarga de eletricidade atmosférica funde-se com o estrondo causado pela descarga da moto de RIP. Os dois carros, um de cada lado, permanecem na velocidade da luz, reforçada pelo clarão que rasga o céu negro. Uma tempestade cai sobre a Cidade do Conde.

A ventania briga com a moto e os carros, dando passagem ao mais rápido. Jonah, Zaz, Luke e Traque: os Quatro Cavaleiros em seus carros-cavalo correndo para espalhar a ira de Deus sobre a Terra. RIP, o messias a quem deveriam dar uma coroa, é quase esmagado pelos veículos a sua volta. Ele freia, os carros aceleram, a briga persiste. A fúria do tempo também. A rua é castigada por um ensaio de vagalhões, o vento parece querer levar o asfalto consigo. Jonah, o motorista que guia o carro-cavalo vermelho, grita para Zaz ao seu lado, que pega a espingarda e atira no messias. RIP tenta desviar a moto, a água do temporal se transforma em óleo sobre a pista. Todos dançam, assumindo a coreografia assustadora. Não há controle sobre a inércia. A luta muda: precisam de equilíbrio. A oscilação significa morte. A Morte, a quem chamavam Traque, o líder Traque, cruza o braço frente ao motorista Luke, disparando contra o motoqueiro. As balas despedaçam o vidro do carro-cavalo vermelho do outro lado da rua. Guerra. Uma chuva, mais intensa que os pingos que caem feito cachoeira, é iniciada. Tiros, tiros e tiros, tiros que caem feito pingos, tiros que são cachoeira de metal e pólvora. Balas perdidas que procuram um refúgio. RIP ziguezagueia entre os cartuchos e a água. A calçada se faz presente. Ele empina sua moto, pulando sobre o meio-fio. As balas o perseguem. Janelas são despedaçadas, os estilhaços aterrizam nas poças d’água.

No começo, Melissa e Grudi, os namoradinhos, vieram caminhando pelas ruas desertas. Deviam estar perdidos, do contrário não estariam ali. Seus passos eram cansados, quase sofridos, desmotivados. Andarilhos namorados. Em silêncio. Rumavam para a esquina. Uma chuva forte estava para começar.

Eles olharam para o outro lado da rua, onde estávamos nós quatro. Suas expressões não conseguiram disfarçar o terror que sentiram. O pânico foi tamanho que sequer conseguiram gritar. Contudo, continuaram caminhando. Aquela era a única passagem possível, não haveria como não passar por nós. Ali se deu o primeiro trovão da noite.

O dilúvio aumenta. Tudo escurece ainda mais, as trevas envolvem a rua, fazendo desaparecer RIP e os Quatro Cavaleiros. Ninguém enxerga ninguém, apenas sabem que estão ali pelo ensurdecedor barulho que fazem. A sua frente, a visão se faz nublada, mentirosa. Nada é visto. A velocidade se agiganta até o infinito. E como cegos correndo em direção ao penhasco, a luta permanece sem tréguas.

Traque grita com Luke, “mas nós somos quatro, ele é apenas um”. Luke diz que ele é diferente, que ele é louco e pergunta da Esquina do Lamento. “No Natal?”, quer saber Traque. “É, perto da Esquina do Lamento, no Natal”, Luke está desesperado. Traque diz que se lembra, Luke diz que foi ele, RIP. “Os jornais disseram que foi um acerto de contas, alguma coisa com gangues”. “Mentira, mentira, foi ele”, Luke está histérico, mal consegue manter a direção do carro. Os tiros recomeçam.

Quando pegamos o casalzinho, Grudi foi quem mais tentou resistir, logicamente, querendo defender a namorada. Melissa tinha uns vinte e cinco anos. Arrancamos a camiseta dela, uma camiseta branca que transparecia os abastados seios, um detalhe que atiçou nossa curiosidade. Ela estava chorando, agora sei, seus olhos boiavam na água, mas pensei ser apenas um estranho efeito da chuva que recém começava sobre seu rosto. Às vezes – e às vezes, muitas vezes – isso pode acontecer. Sua maquiagem escorreu sobre o pescoço e depois os seios nus, mas pensei que fosse a chuva, só isso.

Algemamos os dois em frente ao beco, perto dos sacos de lixo. Ouvimos um barulho de moto e nossa atenção foi desviada. Foi então que ele apareceu.

Jonah, em seu cavalo vermelho, dá a ordem. Zaz aponta a espada na escuridão. E atira. Os sons se confundem, impossível saber o que está sendo atingido. Como num sonho, tudo acontece rápido e lento, como um milhão de fotografias vistas em um segundo. Vindo do nada, ou detrás da neblina, um ônibus. O cavalo vermelho se espatifa, fundindo metal e carne humana.

RIP freia. Seus pneus param, mas a moto não. Entre o atrito com o asfalto e o deslizar sobre a água, ele tenta se afastar de ambos. Cambaleia. Treme. A moto diz a ele que vai se quebrar ao meio. Implora. Fecha os olhos. Tudo ao seu redor gira em torno de si. RIP não vê, mas ouve o barulho de outro carro chocando-se contra uma parede de vidro. Outra chuva, agora branca, cai sobre o asfalto, feita de minúsculos pedaços de cristal. O motorista Luke não mais respira.

E então, ele disse olhando para o céu:

— “Eu sou o Alfa e o Ômega. Mas só nos traga de volta se formos dignos de continuar vivos”.

RIP arrancou em sua moto. Quem voltasse primeiro ficaria com os namorados, essa era a aposta. Depois disso, eu não ouvi mais a sua voz. Aliás, ouvi sim. Mas apenas mais uma vez.

Traque inspira mais sangue do que oxigênio. Sua mente confunde as informações, não mais distingue alucinação de realidade. Um espectro vindo da mesma neblina em que há segundos estava, se aproxima. Um espectro de longos, lisos, negros e bem cuidados cabelos. De cavanhaque e óculos escuros. “Vai me matar agora?”, pergunta ao espectro. Ele balança a cabeça, sorrindo. “O que pensa que eu sou? Um assassino?”, responde RIP. E completa:

— Eu quero que você transmita um recado meu.

A luta parece terminada. As sirenes crescem, polícia e ambulância se aproximam ao longe. RIP pega as chaves ali perto e solta as algemas, libertando Melissa e Grudi. Desaparece. Menos de um minuto depois, a rua é cercada. Pessoas de branco, que mais parecem fantasmas do que médicos, seguram e retiram Traque com cuidado, esperando a maca. “I-isto é”, ele balbucia. Gritos e choros. Os curiosos dificultam o serviço. “Isto é”, diz Traque. Seu tempo está se esgotando. A maca se aproxima, seus condutores tropeçam. Um policial diz que o homem ali deitado parece estar querendo dar um recado.

— Is-to... Isto é apenas o começo.

Foram minhas últimas palavras. Ali terminava a saga de Jonah, Zaz, Luke e Traque. A nossa saga. A Cidade do Conde havia ganhado um novo dono. Seu nome era RIP. Um messias maldito, um cavaleiro das trevas abençoado por Deus. Alguém cuja presença se mostrava tão confusa para mim quanto ainda é hoje. E para sempre talvez seja. Uma presença extremamente insegura, apesar de tudo. Mas não se pode negar, ele merece crédito. A sua promessa foi cumprida. Porque sim: aquilo seria apenas o começo.