quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 56



Fiquei uns dias sem escrever.  Li um pouco sobre teoria literária, vi que a história vai contando a si mesma conforme a gente escreve. Eu só tenho que sentar aqui e escrever. Meu compromisso é sentar aqui. Ou já disse isso? Estou mais esquecida do que antes. Aliás, se já não lembrava o que tinha escrito na noite anterior, imagine agora que deve fazer uma semana que não escrevo uma mísera palavra para esta historinha.

Eu não ia escrever mais. Nunca mais. Foi Cris quem me perguntou sobre o que era a história que eu estava escrevendo. Eu não soube explicar, apenas disse que tinha parado de escrever e não estava conseguindo retomar. Ela – porque Cris é uma mulher, e não sei por quê, neste momento vejo que se alguém começasse a ler esta história agora podia pensar que Cris é um homem, e ela é até bem feminina, não vulgar, seja lá o que signifique uma mulher vulgar, mas de vez em quando ela fala na Faele, que foi embora e não veio mais visitar ela – disse que se eu consegui escrever no mês passado, na semana passada, eu ainda consigo escrever. Cris me dá força. Acho que também estou viva por causa dela. São suas garotas estranhas que por algum motivo se identificaram – talvez por sermos estranhas, e também não sei o que quer dizer uma mulher estranha, para mim todo mundo que está aqui é estranho. Temos nossas dores. Falamos pouco delas.

Também por isso, escrevo.

Também por isso, não quero escrever.

Dói contar a história de Clara. Mas me perguntaram: como termina a história de Clara? E de Marcos? De Jonas? Como termina a história dessa família de abusos, de dores veladas, de segredos, de traições? Se eu fosse uma boa escritora, se eu soubesse escrever, talvez fizesse uma saga. Talvez contasse três ou quatro gerações desta família. Mas a verdade é que esta família, pensei agora, talvez não mereça sobreviver. Ou pelo menos, passar a desgraça para a geração seguinte. Sarah me disse que a gente tem a tendência de repetir os padrões de nossos pais, que por sua vez repetiram os padrões de nossos avós, e assim segue a caravana. Então, imagine se Clara se casasse. Imagine o que seu marido não faria com sua filha.

Pode ser filho também, mas pensei em filha.

Meu deus.

De alguma forma tem que haver uma queda neste padrão para que a geração futura não sofra.

Mas como?

Isso ainda não sei. Não sei como vai terminar esta história. Apenas escrevo o que meu inconsciente dita, e Sarah disse que era assim mesmo para eu fazer. Ela também me perguntou da história, eu disse que estava sem escrever, mas foi só com a dica da Cris – e um pouco de raiva que tenho sentido, não entendo bem por que – que as coisas voltaram a funcionar. Pelo menos funcionaram hoje. E vou dizer, neste momento sinto que sempre que escrevo me sinto viva. Então por que você não escreve todos os dias, você me pergunta.

Porque nem todos os dias quero estar viva. 

Hoje quis. 

Amanhã, não sei.

De qualquer forma, hoje vou contar para a Cris que a ideia dela deu certo. Agora é de tarde, e Cris – assim como eu – só vai para a sala onde comemos de noite. Tudo bem, me seguro até lá. A porta está aberta e está tudo calmo. Sei que daqui a pouco vão começar aqueles barulhos diários, os quais odeio. “Os quais”, estou melhorando com os pronomes. Mas não me importam os barulhos, e sim que consegui escrever hoje.

Com isso fico viva mais um dia.

E Clara também.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 35

(Nota: O texto abaixo é o capítulo 35 que ficou faltando publicar na fanpage do Distantes Trovões no facebook - obrigado Cristiane Schwinden por me ajudar a corrigir a omissão. Mas vale republicar porque o trecho abaixo tem algumas chaves para esta história. Amanhã retomamos a ordem certa.)

 

Não escrevi ontem, nem ia escrever hoje. Você sentiria falta?

Os personagens da história que tento contar aqui, noite após noite, acho, sentiriam. Se você chegou hoje, e você é um outro você para o qual me dirijo, talvez se pergunte que diabos ele está falando. 

Ela. Meu primeiro nome, do qual nunca gostei, mas com o qual estou aprendendo a conviver (recuperar?) é Maria. Noite após noite venho aqui escrever. Para lembrar do que aconteceu com minha vida que me trouxe até este quarto (ou cela, dependendo de como você vê) e Sarah disse para eu escrever, porque dentro da escrita apareceriam coisas que estão enterradas, que nego que existam, que recalquei – o papo psicanalítico que ouço dela desde o tempo em que cheguei aqui.

Começamos assim: sou um narrador a procura de uma história. Narradora, porque tentei enganar, ou apenas deixei para contar depois, sobre minha sexualidade. Não quero falar disso. Por algum motivo, penso que as pessoas daquela família, que tem uma relação meio estranha com esse tema, também não gostariam de falar disso. O homem moreno e alto de cabelos lisos cujo nome ainda não consegui criar – e suspeito que haja um motivo para isso –, é médico e, portanto, tem uma reputação que deve ser mantida a qualquer custo. 

A qualquer custo.

Meu deus, Clara pode ter morrido por causa disso. 

E, de alguma forma, sei que ela morreu. 

Aquela garotinha que brincava feliz na pracinha, a pracinha que vi aqui da janela, ela em sua então inocência descendo faceira pelo escorregador. Do que mais ela gostava? Acho que ela rolava pela areia, e deve ter deslizado pelas poças de água nos dias mais chuvosos. Oh, Clara, o que a vida foi fazer com você?

Mas você me perguntou sobre o menininho. O que aconteceu com ele? Também não sei, por isso escrevo. Desenvolvi uma espécie de amnésia recente e mal lembro do que escrevi na noite anterior. E sou uma péssima escritora. Nem consigo batizar meus personagens. Mas sei que temos Maria, não eu, mas a mãe. Temos Lara, a irmã. A pequena Clara. E o irmão, que achei que se chamava Jonas. 

Mas sonhei com este garotinho ontem. Esse que tomou banho quando era criança com o homem moreno e outra mulher. Era Maria? Ele é irmão de Clara? Agora fiquei na dúvida. Tem alguma coisa de muito errado naquela família, nesta história que mal consigo inventar, e deve ter um motivo para eu não conseguir criar. É claro que Sarah vai dizer que é algo inconsciente. E jamais, em todos esses dias em que vim aqui escrever, que fechei a porta para afastar o mundo lá fora e todas aquelas pessoas que se vestem iguais, jamais pensei no que ia escrever. Apenas sentei e escrevi. Como é o nome disso? Livre associação? Que seja. Mas no garotinho eu pensei. O nome dele me veio nessas madrugadas sem fim que tento dormir. 

O nome dele é Marcos.

Mas por enquanto isso é tudo o que sei dele.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 53


22:08
Estive lendo hoje e, claro, cada vez que leio outros autores acho o meu texto cada vez mais pobrinho. Meu consolo é que ninguém jamais vai ler isto que escrevo agora. Sarah disse: escreva o que quiser, o papel não vai te julgar, ninguém vai ler. E ninguém vai mesmo, nem eu, que jamais volto ao que escrevi na noite anterior, porque não quero lembrar.
Quer dizer, quero e não quero.
Mas você me pergunta se nunca saio do quarto. Digamos que este lugar onde estou, que pode também ser uma cela, seja um quarto. Bem, é claro que saio daqui. Não como aqui, e de novo estou com fome. Mas Sarah me pergunta se escrevi hoje, e tenho medo de que ela não me deixe comer se eu não escrever. Sei lá, depois de um tempo, eu mesma acabo me cobrando se não escrevi e mesmo que saiba que jamais vou ser uma escritora, eu, Maria Anônima, por algum motivo, depois que começo a escrever acaba saindo alguma coisa.
Uma coisa que ainda não entendi é por que o homem moreno de cabelos lisos voltou a beber depois de dez anos. Ouvi dizer que se alguém para de ir nas reuniões, mais cedo ou mais tarde volta a beber. Será que foi isso? Diga você, você me diria, a história é sua.
Sim, a história é minha.
E acredite, um arrepio me passa sorrateiro ao escrever isso.

Bom, eu posso escrever o que quiser, e se ficar ruim, ou muito ruim, é só voltar, escrever de novo. Para que se importar? Ninguém vai ler.


Mas fica a pergunta: ele já fazia o que fazia com Clara antes de voltar a beber? Acredito que sim, porque também ouvi dizer que o álcool apenas tira certos freios, mas não pode alterar uma índole. Talvez possa, não sei muito disso, ou sei, mas não sei, entende? Até porque eu não bebo. E acabo de me lembrar, pelo pouco que lembro da história que eu mesma criei, que um dos cheiros mais característicos da infância de Clara era o álcool. A casa, as paredes, o ar, a água do chuveiro. Tudo parecia vir de um sonho, e tudo tinha cheiro de álcool. Clara jurou que nunca ia beber, não sei se Jonas fez o mesmo juramento. Maria não bebia. E Lara?
Sim, ela bebia. Acabo de pensar que talvez, porque não seria de se espantar se tivesse sido assim, Lara tivesse tirado a blusa na frente do homem moreno de cabelos lisos e mostrado seus grandes seios, maiores do que os de sua irmã, maiores e mais rígidos, até porque ela era mais nova, ela era mais magra, talvez fosse mais bonita, e tivesse derramado cerveja sobre eles dois, e os dois, os outros dois, que estavam trancados no quarto, enquanto Clara e Jonas dormiam, e talvez – pensei agora – Maria estivesse no hospital, e talvez ela fosse para o hospital de tempos em tempos, era uma mulher doente, se esbaldaram, perdidos entre as montanhas que eram aqueles seios com cerveja e o abismo que eram aqueles seios com o veneno que, talvez, nenhum dos dois tivesse previsto que abriria a porteira para uma boiada que não poderia ser freada.
Estou com fome. Acho que vou comer agora. Eu tenho uma amiga que às vezes janta comigo. Gosto dela. Ela também é uma pessoa especial. Também porque existem outras pessoas especiais. Mas já me alonguei demais por hoje. Estou com fome e não consigo pensar quando estou com fome. Sei que você deve ter se perguntado sobre qual a relação que tenho e como é esta amiga, mas outra hora falo dela.
22:40

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 52




21:47

Começo a escrever sem ter a menor ideia do que vem pela frente. Grande novidade. Toda noite faço isso. Apenas escrevo e a história, e a história da história, vão contando a si mesmas. A diferença é que a porta está fechada hoje. Ela não poderia ficar aberta para sempre e mesmo que eu suspeite que não haja pessoas no corredor, ouço barulho de televisão ligada. Alguém assiste sei lá o quê, talvez a novela. Essa gente não tem muito o costume de ler. Nem de escrever. Talvez por isso Sarah tenha me dado esta inglória missão. Simplesmente contar. Contar e contar. E descobrir o que ela já sabe, suspeito, mas não pode me dizer. Pelo menos ainda não. 

Como vim parar aqui, por exemplo. 

Esses psicanalistas não podem entregar o jogo. Não podem dizer o que eles veem porque, vá lá, nós temos que perceber isso por nós mesmos. Eu é que deveria ler, em vez de me preocupar com as pessoas que se vestem muito parecidas lá de fora, porque assim este texto chatinho sairia mais bem escrito. Ler para escrever. Enquanto isso, apenas escrevo, seguindo fielmente o fluxo de meus pensamentos à medida que eles aparecem, e apenas registro aqui.

Pensei no olhar que o homem moreno de cabelos lisos tem. Mas antes queria deixar registrado que andei lendo alguns trechos de livros da Sarah, e vi que quando uma criança sofre um trauma, sobretudo se esse trauma é “ser abusada pelo próprio pai dentro da própria casa” é bem possível que a criança não queira jamais citar o nome do pai em uma sessão de terapia. Ela pode inclusive esquecer o nome do pai. A tendência é essas memórias recalcadas irem voltando assim que a criança entra na adolescência, ou melhor dizendo: ela começa a entender o que aconteceu no passado. Ela tem outra visão daquilo que talvez, por mais que causasse incômodo, ela achasse normal.

E aí voltamos para o homem alto e moreno de cabelos lisos sem nome. Pensei em seu olhar, e vi em minha mente de criadora amadora (sei que dizem para evitar rimas nas frases, mas não pude evitar) que o olhar dele era de um cara legal, como se diz. Uma pessoa, se não dócil, mas acessível, zelosa, talvez até uma pessoa carinhosa. O tipo de olhar que se espera que um pai de família tenha, desde que ele não seja muito autoritário. Ele não era autoritário. Ou era? Ele tinha o olhar de bom vizinho, e aos olhos de seus vizinhos – e da sociedade, já que ele era médico – ele era um cidadão exemplar. O típico bom partido, que as mães gostariam de ter como genro. Ele tinha esse olhar, e sorria, quando passava no corredor, levando Clara para brincar na pracinha. 

E Jonas, embora ache que Jonas não era seu filho. Pelo menos filho assumido, porque agora me veio na mente: e se Jonas, que era filho de Lara, a irmã de Maria, fosse filho dele e ninguém soubesse? Lara tinha um caso com o homem moreno, e ainda não sei desde quando. 

Talvez Maria saísse para trabalhar e o homem moreno ficava em casa com Clara, quando não estava de plantão. E aí as coisas aconteciam. Mas talvez não fossem tão esporádicas, talvez ele fosse viciado nisso. 

Não sei mais o que escrever. Clara some quanto mais a procuro. Há um armazém a vários metros da praça onde as crianças brincavam. O que aconteceu lá? Tinha pensado que ele se esfregou em Clara em um canto mais escuro do armazém, mas não sei se foi isso. Sei que em minha mente este armazém está fechado. 

O armazém, pensei agora, pode ser um símbolo. 

Armazém fechado.

Armazém vermelho. 

Cortinas de aço abaixadas e vermelhas. 

Houve um incêndio, essa ideia volta a rondar minha mente. Se a gente cria a partir das imagens que criamos e ficam latejando dentro da mente querendo sair de alguma forma, vou dizer: em minha cabeça há um incêndio. 

Armazém vermelho.

Fogo.

O que vem agora?

Tenho fome e você tem razão: interajo com as pessoas.

Logo, não posso estar morta, nem no necrotério, como você havia imaginado.

Não posso, posso?

22:09

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 51


A preguiça me invade, a falta de ânimo também. Mas cometi o descuido de começar a escrever e, portanto, devo continuar. Continuo não sabendo o que acontece nesta história, nem por que escolhi escrever sobre um tema desses. Dizem que a gente não escolhe os temas, mas é escolhido por eles - já disse isso? O caso é que preciso encontrar Clara, tenho que descobrir o que acontece com ela no fim.


Um arrepio percorre minha espinha como uma descarga elétrica do espírito, tão logo escrevi a última frase.


Mas é verdade. Preciso saber o que acontece com esta família. Maria Péssima Detetive. É claro que você já deve ter dito “como, descobrir o que acontece, se é você quem está inventando esta história?”, mas ambos sabemos que talvez o que eu queira pensar que é ficção, tudo mentirinha, que nem filme para assustar, talvez não seja bem assim. Portanto, continuo escrevendo, sem pensar, ou melhor, penso em voz alta, nesta voz sem voz que são meus escritos em busca de um final. O processo deve funcionar porque comecei tudo isso - lembra? - apenas procurando uma história e existe uma agora, que está surgindo a partir do nada - ou dos confins do meu inconsciente, se você preferir.


Você, Jonas, meu irmão.


Igual ao personagem que batizei com seu nome porque sou uma escritora muito da ruim, e usei o mesmo nome porque não consegui criar outro. 


Ou você, Sarah, que insiste para que eu continue escrevendo aqui trancada, mesmo que hoje, em outro raro momento, a porta esteja aberta e não haja pessoas no corredor. Sarah, que sabe o que não quer, ou ainda não pode, me contar. E por isso escrevo. Para descobrir o que ela sabe. E talvez eu também saiba, mas não saiba que sei.


Ah, psicanalistas.


Vamos lá. O homem alto e moreno, Lara... Mas deveria ter sido Maria, em primeiro lugar. Maria, como o meu primeiro nome, que não sabia o que acontecia dentro de sua própria casa. Ela não sabia ou seu ego a protegeu - viu como estou ficando boa nisso? - para que ela não visse o que estava vendo? Mas ela deve ter descoberto, ainda não sei como, o que o homem moreno fazia com Clara. Como ela descobriu? Será que ela viu alguma coisa? Será que já via desde que Clara era um bebê e o pai ficava brincando com seus órgãos genitais

Meu deus, pode ter sido isso. Ele disse que estava apenas trocando suas fraldas.


Trocando as fraldas, o miserável.


Mas talvez ela tenha pensado que não era nada. Ou perguntou o que ele estava fazendo e ele bateu nela. Será que desde essa época o homem alto e moreno de cabelos lisos já batia em Maria? Talvez ele não tenha batido dessa vez, mas é quase certo que ele negou ou sequer se fez de entendido quando Maria perguntou, em tom de voz nervoso, e não deveria estar nervosa, era uma simples pergunta:


- O que você está fazendo?


Ele estava brincando com os órgãos genitais de Clara, Maria.


Meu deus, como pode não ter visto isso?


Mas então penso que ela viu, que ela sabia, mesmo quando negou saber, quando quis não saber, e teve medo. De apanhar de novo.


E em algum ponto, que ainda não sei qual foi, ela talvez tenha vencido esse medo e seu instinto, que na verdade não é um instinto, de Mãe Protetora Que Morreria Pela Filha, falou mais alto. 


Mãe Protetora Que Morreria Pela Filha.

E é neste instante que começo a chorar de novo.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 50


Cinquenta dias. 

Cinquenta dias que escrevo aqui. Embora não tenha escrito todos os dias, mesmo que Sarah me sugira escrever diariamente, mesmo que seja um pouquinho, mesmo que seja uma frase, nenhum dia sem uma linha, escrever por cinquenta vezes, considerando que raramente escrevo na mesma história, se é que se possa chamar a história de Clara de uma história que supõe-se ser inventada, é uma forma de contar o tempo. 

Logo, estamos nessa há mais de cinquenta dias. 

Quantos, não posso precisar, porque trancada aqui – mesmo que neste momento a porta esteja aberta e não haja pessoas no corredor, ao contrário do que acontece ao longo dos dias – é difícil precisar o tempo. Na verdade, é difícil precisar qualquer coisa, a começar por pessoas e lugares. Sentimentos, não sei. 

Por isso escrevo.

Ainda penso em Clara. Esses dias vi Lara passando pelo corredor. Não este que fica aqui ao lado do lugar de onde escrevo, mas em um corredor da história que estou tentando contar. Talvez ela estivesse indo ver o homem alto e moreno de cabelos lisos. Podia ser um corredor da casa onde ele morava. E talvez Clara tivesse visto ela passar. Talvez se perguntasse o que ela ia fazer. Talvez já soubesse. 

Vou especulando porque assim meu inconsciente me conta mais coisas que não lembro. 

Digo, não consigo criar. 

Sim, é claro que essa historinha tem algo a ver comigo. As histórias que a gente inventa têm sempre algo de autobiográfico, embora os escritores neguem de pé juntos que é tudo de mentirinha. Mas por que escolhi contar uma história tão horrível? A gente não escolhe as histórias para contar; elas nos escolhem. E então somos obrigados a contar. Mesmo que os outros não queiram ouvir ou ler. Se a história aconteceu, ela deve ser contada.

Aconteceu ou estou inventando?

Ainda temos algumas questões. A praça onde o homem alto e moreno de cabelos lisos brincava com Clara e agora acho que brincava com Jonas também. Em minha mente, ele está neste momento dando um tapa na bunda de Lara, e talvez ele tivesse se descuidado ou, o que é mais provável, não estivesse nem aí se sua filha estava observando o pai dar um tapa na bunda da tia, até porque o pai ficava trancado no quarto com a tia, e talvez ele não se importasse se Clara sabia ou desconfiava o que acontecia lá no quarto. Até porque não era para acontecer nada. Se tivesse que acontecer, embora Clara talvez ainda não entendesse bem como isso se dava, era com Maria.

Maria, a mãe.

Maria, como meu primeiro nome.

A essa altura acho que ela já tinha saído do hospital, mas como suspeito, e não seria normal se fosse diferente, ela foi para o hospital mais de uma vez. Ela passava muito tempo apenas deitada, e só muito tempo depois Clara entenderia que a mãe estava com depressão.

Mas acho que esta história não engloba o “muito tempo depois” de Clara. É possível que sua história tenha chegado ao fim antes de ela entender isso. 

Não, sua história não pode ter chegado ao fim.

De alguma maneira, escrevo para deixar Clara viva. Ela não pode morrer, não pode ter morrido. Ainda não entendo bem por que, mas sei que enquanto eu escrever Clara estará viva. 

Por isso fico aqui, noite após noite. Preciso dela viva. Ela precisa de mim, embora ainda não entenda direito como, também. Eu preciso de você. E espero você. Todas as noites. Penso em você, escrevo para você. Para você e para Clara. E para mim.

Também preciso ficar viva mais um dia.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 49


A história surge na vida que urge.
Ou a vida que surge na história que urge.
Não sei, foi apenas uma frase que, aliás, acho que foi você quem me soprou. Não importa. Era apenas para começar a escrever, inclusive porque Sarah disse que eu deveria tentar escrever todos os dias. Não estou tão mal. Tentar, tento todos os dias. Bem, tento tentar todos os dias.
Maria Tentadora.
A porta está aberta de novo. Sem pessoas ao redor. Silêncio. Tenho vontade de dormir e talvez – talvez, ainda não sei – acordar daqui a um século quando tudo já vai ter passado, inclusive o fim desta história. Pensando bem, pode ser uma boa: olhar para o passado, não este passado que busco, mas o passado que ainda é futuro, e ver o que aconteceu com o futuro. Com aquilo que achei que não seria, e foi. Ou aquilo que achei que seria. E não foi.
Fica cada vez mais difícil, e sem sentido, aqui entre nós, escrever esta historinha. Maria Que Não Tem Mais O Que Contar.
Sarah diz que eu tenho sim, e aquilo que deveria contar, ainda não contei.
Será que é por isso que estou me amarrando?
De repente nem sou uma escritora tão ruim, no fim das contas. Talvez seja apenas uma escritora com medo. Então, escreva em meio ao medo, Sarah me diria. E se eu não quiser? Talvez, pensei agora, o grande problema de desenvolver esta narrativa, que a cada dia ou  noite ou madrugada sai a partir do nada, sempre a partir do nada, não seja a minha falta de criatividade ou o tato para escrever.
Seja apenas medo.

Há sei lá quantos dias, lembrei agora, eu disse que estava com medo desta história. Se é o inconsciente que escreve por mim, e minha função é apenas sentar minha bundinha aqui e registrar o que passa em meu cérebro, o inconsciente também me disse isto: em algum destes dias, não lembro qual, eu disse que estava com medo desta história.

Medo do homem alto e moreno de cabelos lisos?
Essa seria a resposta óbvia, e se for isso acho que podemos dar um jeito. Acho que posso matá-lo, afinal sou eu quem está escrevendo esta história. Neste momento, confesso, essa ideia me parece bem convidativa. Mas temo outro temor e que é maior. O medo da história não é em relação ao homem moreno, mas em como esta história terminou, e isso ainda não tenho certeza, mas – Deus queira que não – desconfio. Acho que é neste fim que não quero chegar. Quero tentar parar o tempo, cortar, colar, fazer um retalho. Quero mudar as coisas como são. Ou como foram, ou como ainda serão.

Nesta altura da história estão todos vivos.
Ainda.

Talvez o homem moreno morra no fim. Até aí, penso, tudo bem. Mas talvez não seja ele, ou não apenas ele. Talvez ninguém morra, ninguém pode morrer. Ninguém deveria ter morrido.

Sinto uma vontade de chorar. Suspiro. Ao ar que vai rareando.
Decido chorar, mas então mudo de ideia.

Preciso continuar escrevendo. E seja lá qual for o fim disto, preciso chegar lá.
Preciso descobrir o que aconteceu com Clara.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 48


Tudo bem, eu sei que não ando escrevendo todos os dias como você esperava. Maria Desmotivada.

Mas eu vou tentar consertar isso. Acontece que tenho a terrível impressão de que ninguém jamais vai ler as bobagens que escrevo aqui, sobretudo a minha historinha familiar doentia.

“Minha” porque eu vivi ou inventei?

Essa é uma das dúvidas que me fazem continuar escrevendo. Até onde vai esta história? Suspeito, mas não tenho certeza. Maria Péssima Escritora – já me autodenominei assim? Não lembro. Sei que a porta está aberta de novo, outro raro momento em que escrevo e parece que o mundo é só meu, e é só meu enquanto eu me mantiver escrevendo, e é dia e não tem ninguém para me interromper, exceto eu mesma. Maria Interrompida.

Sabe que às vezes até esqueço, talvez de tanto escrever Maria pra cá, Maria pra lá, que nunca gostei de ser chamada pelo meu primeiro nome. Maria de Tal que nunca gostou de ser chamada de Maria. Maria que chegou neste lugar e não lembra como. Por isso, também, escrevo.

Vamos tentar recapitular. O que temos até aqui: temos Maria, a mãe, a pequena Clara, o também pequeno irmão Jonas – moreno como o homem moreno, portanto seu filho. Lara, a irmã de Maria, tia de Clara. Lara foi cuidar de Clara enquanto Maria estava no hospital, e acabou cuidando também do homem alto e moreno de cabelos lisos – na cama de Maria.

Lara sabia o que o homem moreno fazia com Clara?

Isso ainda não sei. O que você acha? Por que não me ajuda a escrever esta história?

Sarah diz que tenho que chegar às minhas próprias conclusões, ela não pode me dar a chave para abrir esta porta. Por que não? Será que não vou acreditar no que ela tem para me dizer, se é que ela sabe mais do que disse a meu respeito, como tenho suspeitado?

Sei que a pequena Clara via a porta do quarto de seus pais fechada, com o homem moreno e Lara lá dentro. Será que ela se perguntava o que acontecia lá dentro, como as outras crianças costumam fantasiar? Será?

Acontece que em minha visão, e se o inconsciente está ditando esta história que parece escrever a si mesma, então tenho que escrever isto, uma noite a porta se abriu. Clara estava de meias caminhando pelo corredor. Era um dia frio e ela adorava caminhar de meias pelo chão. Lara saiu do quarto sem roupa e entrou o banheiro, sem olhar para Clara. Som de chuveiro sendo ligado, pingos tamborilando no chão. Clara ficou parada, a porta do quarto ainda aberta. Então o homem moreno chegou até a porta. Com um lençol em volta dele. Clara continuou a olhá-lo e ele olhou de volta para ela. Não sei se ela sentiu medo, ou se ainda estava tentando entender o que estava acontecendo, em sua mente de criança que ainda não tinha entendido por que a mãe foi para o hospital em depressão e só entendia vagamente por que ela passava dias deitada como se estivesse morta e apenas diziam “mamãe está doente”. E talvez Clara também não tenha entendido por que o homem moreno sob o lençol a encarando no escuro começou a apalpar o lençol e esfregar a mão pelo corpo. Ele fez a cara de mau que sempre fazia e Clara se assustou. Mas não se mexeu. O homem continuou apalpando o lençol, apertando e soltando, com os olhos fixos nos olhos de Clara.

A porta do banheiro se abre. O homem moreno se demora por alguns instantes. Olha na direção da porta, depois na direção de Clara. Ele entra no banheiro. A porta se fecha. Risadas.

Clara caminha até a cozinha, até o fogão, até os botões e gira todos. Ela treme. Os botões todos girados. Cheiro de álcool na cozinha. O homem moreno talvez estivesse bebendo com Lara. Risadas no banheiro. Cheiro de álcool. Não de gás. Clara aproxima-se do fogão. Silêncio.

O gás havia acabado.

Risadas no banho.

Clara começa a chorar e volta para o quarto, deitando na cama. Lágrimas no escuro que ninguém jamais veria.

Ela ia ter que esperar mais um pouco para morrer.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 47


16:22

Escreva quando você não tem vontade, escreva todo dia, esqueça a inspiração, esqueça o humor. Apenas escreva.

Assim fica mais fácil, porque – vá lá – estou escrevendo. Maria Que Escreve Sem Inspiração.

Lá fora não está mais chovendo, a temperatura baixou um pouco. É difícil escrever quando está calor, mas talvez eu também reclame do frio e da umidade nos dias frios. Não importa. A busca por Clara deve continuar. Maria Que Não Desiste de Buscar.

A porta está aberta, é um raro momento-de-porta-aberta. Silêncio. Silêncios também são raros aqui. Você cogitou que eu estivesse morta, em algum lugar ou no necrotério, mas percebeu que interajo com as pessoas. Não muito, é verdade, mas interajo, tomo banho, durmo. Como. Até café tomo – será isso que me tira o sono? Mas não escrevo para falar de mim. A menos que ainda não tenha entendido o porquê de eu estar escrevendo tudo isso – o que é sempre uma possibilidade – e, sei lá por quê, lembrei agora do folheto sobre o grupo de autoajuda para pessoas vítimas de incesto que Sarah deixou por aqui esses dias.

Por que lembrei disso agora?

Em minha mente, nesta historinha que duvido que algum dia em algum lugar alguém leia, o homem moreno alto e magro está brincando com Clara. De novo, a praça. Existe um campo em volta, uma quadra de futebol, uma área para o vôlei, um areão. Já comentei isso? Não lembro. Esqueci a maior parte das cenas desta história, assim como esqueci desde sempre como vim parar neste lugar. Maria Que Esquece das Coisas. Eu diria Maria Sem Passado, mas todos temos um. Bom ou ruim, ou bom E ruim, mas ele está lá, por algum motivo. Ele me trouxe até a vida presente e ainda não sei, e não sei se quero saber, como.

Por isso escrevo.

O homem moreno mostra Clara para um casal de vizinhos. Ela está menor, talvez um ano e meio. Ele diz, diz oi, filha. Oi, diz o casal. Clara olha para eles sem reação. Eles abanam para ela. Ela, nada. Oi, eles insistem. Clara, nada. O homem moreno conversa com o casal, Clara sai caminhando, ou aquilo mais próximo de uma caminhada cambaleante que ela consegue dar, e o homem moreno interrompe a conversa, busca Clara e a traz para perto de si, como quem cuida de uma joia rara. Ele pega ela no colo, segura rente ao peito, balança Clara no ar.

- Um amor a sua filha, diz a mulher do casal vizinho, uma garota jovem.

- Também acho, diz ele.

Também acho, ele disse. Paro de escrever e penso por um instante. Ele disse que também achava ela um amor. Os vizinhos, jovem casal ainda sem filhos, devem ter pensado que ali ao lado estava um bom pai. Também acho um amor, foi o que ele disse.

Só que não era exatamente o amor de um pai para uma filha.

Era de um homem para uma mulher.

Esfrego o rosto.

Me pergunto quando este inferno vai ter fim.

E então percebo: o inferno tinha recém começado.

16:44

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 46



18: 37

Pequena Clara.

É por isso que estamos aqui, não?

É tudo sobre ela.

Um novo ano tem início e não vi os fogos. Apenas intuo que as pessoas lá fora se divertiram e não vou dizer que seus sorrisos, suas poses nas fotos e os malditos champanhes – que não bebo – são tudo uma mentira para que você não diga de novo que sou uma pessoa amarga. Apenas estou aqui, e estar aqui significa que devo escrever, e preciso começar a escrever logo, e logo tem que ser agora.

Amanhã pode não dar tempo.

Amanhã já posso ter desistido.

A festa – e sei que não é festa droga nenhuma – em minha cabeça não para. Mas prefiro pensar que estão todos de ressaca. É preciso que o povo cale a boca, um mínimo que seja (fora ou dentro da minha cabeça) para que eu possa escrever.

Não, não estou ficando louca.

Escrevi, e talvez você não lembre, que Clara era loira como a professora da 1ª série. Coloco as mãos em meus longos cabelos, desço com os dedos até as pontas e vejo que são negros.

São negros pintados. Neste momento não penso na cor que eles tinham. Não quero pensar em passado, não hoje. Apenas um dia, eu queria viver só hoje. Li um recorte de papel, arrancado de um calendário, que Sarah deixou aqui por cima. Dizia mais ou menos algo como entre o passado, que são nossas recordações, e o futuro, que são nossas esperanças, temos o presente, que é onde está o nosso dever.

Dever o quê, também me pergunto.

Neste momento devo apenas escrever.

Sei que você achou que não ia mais escrever. Eu também achei. Todos os dias, lembre, todos os dias penso em desistir. Mas no dia de hoje, ou pelo menos até o momento, não ouvi a miséria me chamando, porque ela sempre chama – às vezes escuto, às vezes não.

Clara ia mal nos estudos. Acho que é por causa do que acontecia em sua casa. Não há como uma criança estudar assim. Mas isso são apenas meus pontos de vista. Devo apenas escrever sem me intrometer na história.

E sei lá por quê, ou ainda não sei por quê, ou sei, mas quero fingir que não sei, quanto mais escrevo esta história que era para ser algo distante de mim, mais me vejo enterrada nela.

Enterrada.

E agora não sei como sair.

18:50