quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 66


22:08

Voltei a ouvir o som do piano. Tão bom, embora triste. Achei que nunca mais fosse ouvir. Em minha mente, aqueles acordes me conduzem a um lugar que ainda não sei bem onde, nem como é. Mas repito, mesmo doído, me traz paz. Conforto, eu diria.

Memórias.

Fiquei uns dias sem escrever, e claro que fui adiando a retomada até ter coragem de jogar tudo isso no lixo e desistir de uma vez por todas de contar esta história. Desistir de mim, suponho, já desisti faz tempo.

(Pausa)

Chamam meu nome. E agora me chamam pelo meu primeiro nome, e até já me acostumei, ou acho que acostumei. De qualquer forma, odeio ser interrompida. Já tenho dificuldade para me concentrar.

Puta que pariu.

Vamos tentar começar de novo. Lá vai.

22:57

Você já descobriu o segredo desta história e não quer me contar, não é mesmo?

Maria, a ingênua.

Maria Que Não Quer Ver.

Que Não Consegue Ver.

Sei que Sarah me sugeriu colocar uma fotografia nesta história.

Ela disse que as fotos, em literatura, contam uma história. Nos filmes também. Por exemplo, a gente sabe quem é casado com quem, quem é filho de quem, só pela fotografia. Então, consigo visualizar Maria, a mãe, deitada na grama, com o rosto sorridente sobre as palmas das mãos, as mãos como um suporte para o sorriso, e Clara debruçada sobre ela, com a mão esquerda sobre seu ombro. Sorrindo.

Nunca pensei que minha mente pudesse fabricar a Clara sorrindo.

O piano volta em minha mente.

Clara e Maria sorrindo.

Isso não é uma foto. É uma pintura. Parecem dois anjos, um abraçado no outro.

As duas sorriem de mostrar os dentes.

Clara sobre as costas de Maria.

Poderia ficar olhando para essa foto por horas. Pena que não sei desenhar, mas se algum dia isso virar um livro bem que podia ter uma fotinho de uma garotinha sorrindo sobre as costas de uma mulher mais velha, ambas sobre a grama, ambas de pés descalços. Elas usam roupas curtas, e então suponho que fosse um dia de primavera. A grama de um verde muito verde. Poderia pensar em alguma metáfora mais bem elaborada para descrever a cor, mas pense em uma grama e as árvores ao fundo – imagine essa fotografia. As duas sorrindo.

Então houve uma época em que Clara sorria e Maria também. Meu deus, a história podia terminar aí. Esse momento poderia ser congelado no tempo, e em minha mente quero continuar escrevendo para fixar o passageiro, para dar um pouco de imortalidade a essas duas. Elas estavam sorrindo, posso fazer elas duas sorrirem. Então talvez haja esperança. Um pouco, que seja, mas ela existe. Clara e Maria sorrindo na grama. Talvez eu deva jogar tudo o que escrevi até agora fora, e ficar apenas com essa cena. Talvez começar de novo, essa seria a cena inicial. Elas duas sorrindo.

Eu quero que a história termine aí. Mas aí não teríamos conflito. Não é a vida, é apenas um momento. Não é a vida, mas poderia ter sido. Ou poderá vir a ser. Elas sorriram um dia. Talvez possam voltar a sorrir. É só uma história, sua idiota, por que não faz o que quiser com os personagens? Porque não penso, apenas escrevo, e meu inconsciente vai ditando essas imagens e elas vão saindo uma a uma, como de uma caverna cheia de truques de fantasia. Cheia de mágica. Apenas escrevo, e continuo sem saber o que escrever. Mas queria dormir hoje e acordar amanhã pensando nessa fotografia. Talvez deva escrever mais sobre ela.

Diga, você já descobriu o segredo desta história?

Porque se descobriu, e acha que estou enganando alguém, a começar por mim mesma, isso estragaria minha noite. Mas honestamente, não me interessa. Com Clara e Maria sorrindo, deitadas, abraçadas, felizes sobre a grama em um dia de sol, não há nada que possa acabar com a minha noite hoje.

Talvez amanhã.

Talvez amanhã eu desista, e elas desistam de si.

Mas hoje não.

Hoje não.

E vou dormir agradecida por isso.

23:16

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 65



20:32

Não me acho bonita.

Não lembro se nunca achei, ou já achei e me convenceram do contrário. Cris disse que eu sou bonita, que não consigo ver a força que tenho dentro de mim. Não consigo ver muitas coisas, suponho, e por isso decidi voltar a escrever. Já tinha quase me convencido a jogar essa historinha no lixo, ou simplesmente deixar para amanhã, que em linguagem simples quer dizer adiar até o sempre. Mas, sei lá por quê, voltei, meio sem voltar e já voltando, e agora escrevo. De qualquer forma, Cris jantou comigo mais cedo hoje, aproveitamos que não tinha uma alma viva naquilo que chamo de “nosso canto”. É bom estar com ela, e acho que ela gosta de estar comigo.

Ela estava triste, não sei se porque Faele não está mais entre nós ou se porque hoje fez aniversário de morte do pai dela. E os meus pais, você me perguntaria agora. Sarah talvez me perguntasse. Talvez eu chorasse, se não estivesse tão cansada. Não sei se tão cansada, mas estou cansada, e neste momento não lembro de muita coisa antes de eu chegar a este lugar. Decerto é porque parei de escrever, e Sarah disse para eu escrever constantemente, de preferência todos os dias. “Nenhum dia sem uma linha”, disse ela e depois descobri que era uma frase que os gregos diziam, se não me engano, o professor de Alexandre, O Grande, ou um de seus pintores, não lembro ao certo. O caso é que devo continuar escrevendo essa maldita história, com ou sem vontade, o que significa que devo me contrariar praticamente todos os dias.

Li uns livros da Sarah, e ali dizia que crianças e adultos têm mundos diferentes, que mesmo os dois vendo o mesmo filme vão perceber coisas diferentes. Logo, se Clara colocou uma roupa curtinha, porque Maria considerou que o dia estava quente, e o homem alto e moreno se excitou, e talvez tenha dito ao seu cérebro, caso ele tivesse culpado a si mesmo (como é o nome disso? Superego?), que foi Clara que o provocou. Uma guriazinha com roupas de piriguete. Mas ela era apenas uma criança, nem sabia o que estava acontecendo. Na verdade, não estava acontecendo nada, e não deveria acontecer depois, era apenas uma criança com roupa de verão. Por que o homem moreno e alto, cujo nome até hoje não consegui inventar, não entendeu isso? Ou, o que é mais provável, talvez esse pensamento tenha vindo, mas ele rapidamente afugentou. Sarah me disse que isso é ser “perverso”, e que o “pervertido” não vê o outro. O pedófilo não pensa no que está sendo feito à criança, pensa apenas no prazer que ele sente.

No prazer que ele sentia.

O prazer que matou Clara.

Clara vai morrer no fim, você me pergunta.

De alguma forma que ainda não consigo alcançar, ela já está morta.

Mas talvez tenha sobrado alguma coisa.

E encontrar estes caquinhos, estes restos mortais, é minha missão de vida. E tenho certeza de que não vou sair daqui enquanto não souber como termina a história dela.

20:50

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 64


Acho que ambos notamos isto: cada dia que escrevo é um dia a mais de vida para Clara.

Um dia a mais de vida para mim, também.

Hoje li que as pessoas ficam vivas através das nossas palavras, e que se existe um espaço em branco (como uma folha de papel ou um programa de computador para textos), ele deve ser preenchido. Cada dia que insisto em escrever, é um dia a mais para mim também. Talvez para encontrar um sentido nisso tudo, que ainda não encontrei.

Você diz que esta história continua nebulosa, que o caldo está grosso. Não me culpe. Sou a Maria Que Não Sabe Escrever de Outro Jeito. Aliás, Maria Que Não Sabe Escrever de Jeito Nenhum. Mas mesmo com minha inépcia literária (talvez a prática me proporcione usar palavras mais elaboradas), escrevo aqui pelo septuagésimo quarto dia. Noite, na verdade, porque é quando geralmente escrevo. Mesmo depois de mais de dois meses, ainda tenho muitas dúvidas quanto ao que contar e, acredite, em nenhum desses dias sequer parei para pensar no que ia escrever. Apenas escrevi.

Sarah me disse que era para fazer assim mesmo.

Ela acredita, como eu começo a acreditar, que as imagens são fornecidas pelo meu inconsciente. Por que quis contar uma história assim, você me pergunta. O homem alto e moreno de cabelos lisos, que era casado com Maria, a mãe, pai de Clara, de quem abusava, cunhado de Lara, a quem usava também (mas essa permitia, acho até que gostava – é claro que gostava, ainda não entendi a razão, se é que existe uma razão em especial, para ela transar com o marido da irmã em sua própria cama, inclusive quando Maria estava no hospital, e Lara supostamente cuidava de Clara). Ainda temos os dois garotos, Jonas e Marcos. Você já deve ter notado que esta história emperra, ela vai até uma parte e tranca, provavelmente porque eu mesma emperro. Maria Emperrada.

Não consigo guardar muitas coisas na memória, e imagino que você já tenha notado isso. De novo, estou cansada. Cris não está aqui. Quer dizer, ela jamais está aqui comigo, ninguém jamais está por perto quando escrevo, mas ela não foi jantar hoje.

Neste momento me veio um medo de perder ela também.

Perder ela também.

O que mais eu perdi, você me pergunta.

Suspiro.

Uma dorzinha aparece no fim do corredor, me abana. E vai embora.

Sei que não é por acaso que toda noite, todo dia e toda noite, luto para contar esta história. Eu não quero escrever. Não quero contar. Não quero... enxergar? Preciso de olhos, mas não quero que eles funcionem.

Mas cedo ou tarde a luz deles vai me cegar. E voltarei a enxergar.  Percebe o paradoxo disso?

E então saberemos como termina a história de Clara.

Depois do Nanowrimo - Dia 63


03:30

Estou com sono. Meus olhos ardem. Não consigo dormir.

Por isso escrevo.

Senti faz pouco uma leve tontura. É por causa dos remédios, você me pergunta. Senti uma tontura, apenas isso. A vida me fez assim. Jantei com Cris hoje. Ela me contou sobre o dia em que se assumiu. Ela estava com água nos olhos. Disse que estava cansada de se esconder de si mesma, de lutar contra a sua natureza. Eu também estou cansada disso, mas talvez não tão cansada quanto ela. Depois ela me disse que sou bonita. Ficamos nos olhando. Ela sorriu e disse:
 Não se preocupe. Não vou te beijar.

Eu sorri num humpf, ou acho que sorri, não sei. Mas não me vejo bonita. Aliás, não me vejo de forma alguma. Talvez pareça óbvio, mas não quero me enxergar. Vou escrevendo esta história, vencendo minha preguiça, dando um sentido para minha insônia – e quem sabe minha dor. A dor que finjo que não existe. A dor que finjo que esqueci. Como esqueci de como vim parar aqui. Quem eu era. Quem eu sou.

Continuo sem saber desta história, apenas vou tateando, tipo tentativa e erro e ela vai se contando para mim. Por mim já teria desistido de escrever há muito tempo, mas Sarah insiste que eu deva continuar. Às vezes acho que é mais importante para ela do que para mim. Na verdade, para mim não é importante. Apenas escrevo porque... Bem, nem sei o motivo. Mas existe um. E ainda não sei qual é. Não entendi o sentido disso tudo.

Sei que Clara era uma menina quieta. Ela via muitas vezes Maria deitada na cama por longos períodos e não entendia, embora suspeitasse, porque era só o que diziam, o quanto sua mãe estava doente. Lara cuidava de Clara e quando Clara perguntava o que estava acontecendo com sua mãe, Lara apenas dizia que a irmã estava descansando, que não era para incomodar ela. Clara às vezes entrava no quarto de Maria, ficava olhando para ela, perguntava se ela não ia levantar. Mas ela não levantava. Seria culpa de Clara? Por que a mãe não levantava?

Ainda não sei bem como o homem moreno alto e de cabelos lisos lidava com isso.

Quer dizer, além de comer a irmã dela.

E a filha também.

Filho da puta, miserável.

Eu devia escrever isso com raiva, com ódio, talvez, e você se pergunta: como é possível ter raiva de um personagem? Mas neste momento não tenho raiva. Aliás, nem outro sentimento. Apenas estou cansada. E escrevo só porque devo continuar escrevendo, senão jamais saberei o que acontece com Clara. Sim, eu me importo com ela. De alguma forma, dependo dela. Preciso que ela viva, e não sei se isso é possível. Cada dia que venho aqui escrever, deixo ela viva mais um dia. Outro dia para aquela garotinha que todos achavam linda, e era linda, embora talvez ela nunca tenha se visto assim. Preciso de Clara viva e se ela ficar viva, talvez Maria se levante da cama.

E talvez eu também fique viva mais um dia.

03:47

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 62


E então, do que vamos falar hoje?

Do que falo todo dia: a busca por uma história e a vontade de fugir dela, que no fundo é a vontade de fugir de mim.

Essas coisas da Sarah pegam.

Lá fora chove. Fazia tempo que não ouvia o som da chuva, e o som do silêncio por aqui. Estou com fome, mas prefiro escrever antes e me livrar do meu tema de casa antes. Cris anda quieta. Ela ainda não apareceu, nem sei se vamos jantar hoje, então escrevo agora. Acho que ela está com saudades da Faele. Ela nunca mais apareceu.

Cris fala pouco e respeita o fato de eu mesma falar pouco também. Às vezes acho que ela é a única que me entende nessa masmorra. Masmorra, pensei agora. Nunca tinha pensado neste lugar assim. Mas a porta está aberta de novo e o corredor está vazio.

Sonhei com o fim disto. Talvez por isso fique me amarrando para escrever. Tenho medo de chegar no fim da história. Mas sei – eu sei, embora tente não pensar nisso – um dia o fim vai chegar. E se esta história termina do jeito que imagino, eu não quero que ela termine. Eu podia parar de escrever.

E aí ninguém morre no fim.

Mas Sarah vai me perguntar: e como termina a história de Clara?

E eu vou dizer que não termina, que quero contar outra coisa, que não quero contar nada.

Não sei o que ela dirá, mas imagino que não aceite essa desculpa. Esfarrapada, como todas as desculpas.

Lara ainda era jovem. As coisas em minha cabeça se misturam, não sei bem a ordem em que elas aconteceram. Maria Que Não Sabe De Nada. Mas Lara era jovem e bonita, e talvez desde essa época o homem moreno já ficasse com ela, sem que Maria soubesse. Droga, se Marcos é filho dele, é claro que eles já ficavam juntos desde muito.

Será que Maria nunca desconfiou?

Acho que sim. As mulheres sabem. Elas sentem, mães que são.

Então por que ela não fez nada para salvar Clara?

Então alguém deveria ter salvo Clara?

E eu quero dizer que ela não foi salva?

Ainda não sei. Ou sei, mas finjo que não sei. Não quero chegar ao fim desta história. Preciso de mais tempo. Clara também. Preciso de você, Clara. Viva, garotinha, viva. Mas não sei se isso ainda é possível. Ela já havia tentado se matar. Da primeira vez ela não conseguiu. Ela tentou uma segunda vez, abriu o gás do fogão. Maria chegou a tempo e disse:


 Que cheiro de gás.

Clara já estava tonta, mas nada disse. Maria fechou o gás. Também nada disse. Mas olhou para o quarto de Clara, que a essa altura já estava com a porta fechada. É claro que Maria entendeu naquele momento que sua filha queria se matar. Então caminhou até o quarto. Bateu na porta. Clara, chamou ela. Clara abriu a porta. Estava séria. Maria se abaixou e a abraçou apertado. Bem apertado, e naquele momento ela desejou a eternidade para as duas. Não poderia mais soltar aquela garotinha. Ela poderia se quebrar, e de alguma forma já estava quebrada. Maria, a mãe, que naquele momento não se sentiu mãe capaz, mãe digna, mãe mãe. Mãe que não soube cuidar, que não podia mais cuidar. Ou podia? Ainda havia tempo? Ainda havia tempo para Clara?


 Eu te amo, minha filha.

Só então Clara começou a chorar.

Depois do Nanowrimo - Dia 61


00:40

Meu nome é Maria.

Quer dizer, meu primeiro nome é Maria.

Tenho repetido isso tanto que quase me esqueço que nunca gostei de ser chamada por esse nome.

Talvez Maria, se alguma forma, esteja nascendo.

No fim das contas, talvez a ideia de Sarah de escrever esta história que tento contar, ou criar, mal e parcamente, sirva para alguma coisa. Para mim, é claro, porque nunca, jamais vou mostrar esta historiazinha para alguém. Depois que eu terminar de contar a história de Clara vou jogar tudo fora. Ainda não sei como vou destruir esta história, mas tenho certeza de que ninguém jamais vai ler.

De qualquer forma, e por favor não me pergunte de onde tiro essas coisas, mas me ocorreu que o homem alto e moreno de cabelos lisos certa vez deu bebida para Clara. Não tinha pensado nisso, mas provavelmente ele fez isso depois de ter interrompido sua abstinência. Sei que ele ofereceu bebida para ela. Em minha cabeça, pelo menos é o que visualizo neste momento, era vodka. Dizem que a vodka não deixa cheiro.

Eu não sei, não bebo.

O caso é que Clara não quis beber. Ele insistiu. Ela se fechou em um canto, ele insistiu e ela insistiu que não. Toma aqui, sua guria de merda, ele gritou. Ela começou a chorar, disse que não queria. É certo que ele já estava bebendo há dias, agora isso me veio com clareza. O homem ergueu a mão para bater nela, e um garoto disse:


 Não bata nela.

Ele olhou para o garoto, que completou:


 Eu bebo no lugar dela.

Clara continuou chorando até que foi silenciando, aos poucos. O homem moreno começou a sorrir, nem olhava mais para Clara. Estavam só os três em casa. Ele olhou fixo para o garoto, que o olhava de volta. Ele era alto e o garoto era apenas um garoto. O homem esticou o copo para ele. Clara respirava baixinho, aos soluços, como a respiração que sobra depois do choro. O garoto pegou o copo. O homem, mudo. Houve um silêncio ensurdecedor na sala. O garoto segurou o copo com as duas mãos. Mal conseguia fechar a mão em torno do copo e seu líquido. Ele tomou um gole. Fez uma careta. Devolveu o copo.


 Toma outro gole.

O garoto segurou o copo que o homem recém esticara de volta. Respirou fundo. Tomou outro gole. Fez outra careta, dessa vez menor que a última. Ele estava começando a acostumar. Mexeu a cabeça, como se estivesse baixando a pressão.

O homem pegou o copo de volta.
− Agora você já é homem de verdade. Que bom. Você vai longe. Ao contrário de sua prima.

O homem saiu da sala, levando o copo, tomando mais um gole.

O garoto não olhou para Clara. Fixou os olhos no chão. Seu corpo estava mudando. Queimando por dentro. Mas era uma quentura boa. A sensação era legal. E ele nunca mais esqueceria dela.

Esse garoto se chama Marcos.

Filho de Lara.

E, mesmo que ele ainda não soubesse, filho do homem moreno também.

01:04

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 60




02:49

É madrugada. Não costumo escrever de madrugada, embora seja um horário especial para escrever. Silêncio. Posso imaginar cenas para a minha historinha, nem adianta olhar pela janela, não vou ver nada. Preciso criar. Buscar nos confins do meu inconsciente. Fico me amarrando para entrar na história, eu sei. Hoje li sobre um roteirista que dizia: escreva quando você não tem vontade de escrever, o que para mim significa escrever todos os dias, se fosse levar isso ao pé da letra. Já falei isso? É claro que você deve estar pensando: Maria Repetitiva, lá vem ela com a mesma ladainha de não se lembrar do que escreve, do que já contou.

Mas eu não lembro.

Nem do começo da história, sobretudo o começo da minha história. Embora intua algumas coisas, talvez – que ninguém me escute e ninguém vai me escutar agora, por isso escrevo – comece a quem sabe admitir algumas coisas.

Mas não quero falar disso agora.

Ainda estou na busca de Marcos, e estou na busca de Jonas, e certamente busco Clara, porque acho que Marcos e Jonas vão me levar até Clara. Teve um dos garotos que saiu de casa. Era Marcos, não? Jonas, irmão de Clara. E Marcos, filho de Lara? Talvez filho do homem moreno de cabelos lisos, não assumido, talvez esse seja outro dos segredinhos que Lara não quis contar para Maria. Também, ia dizer o quê?


 Claro que você não vai se importar, é uma coisinha de nada, mas tenho um filho com seu marido, inclusive transamos na sua cama quando você não está em casa. Mas você sabe, você é minha irmã mais velha, te amo, etc.

Talvez, pensei agora, Lara tivesse um marido, quem sabe um namorado, ou apenas mentiu que engravidou, o cara não quis assumir e sumiu do mapa. Tecnicamente, não seria exatamente uma mentira: o homem moreno fez um filho nela, não quis assumir, ninguém contou nada para ninguém e ficaram elas por elas. Lara foi forçada, ameaçada?

Duvido.

Acho até que ela estava gostando do jogo.

Mas ainda não sei se Maria se internou no hospital por causa disso, porque ela nunca falou, e jamais deram bola, ela era apenas a mulher depressiva e como a maioria das mulheres depressivas, invisível. Tachada de louca, vivia fazendo charme, ficando o dia inteiro na cama, em vez de ir à luta.

Por que esses miseráveis não viram que ela estava doente?

Porque foram eles mesmos que adoeceram ela.

Mas ela era mãe, ela tinha que saber. Ela sabia, talvez não quisesse ver, talvez tivesse medo do marido – com certeza tinha medo do marido – mas ela tinha que saber o que o homem moreno fazia com Clara. É impossível ela não saber. Ela era mãe, as mães sempre sabem.

Pobre Maria. Maria, concebida no pecado.

Eu também devia saber. Maria, eu deveria saber. Clara, eu deveria saber. Preciso de vocês duas. Não desistam. Preciso chegar ao fim disso. Preciso de vocês, mesmo que a gente viva um dia de cada vez. Foi só isso que pediram: um dia depois do outro. Fica mais fácil. Mais suportável. Clara, ainda há esperança.

Para você e para mim, garotinha.

Sarah, vou até o fim com este inferno. Mas, nem que seja a última coisa que faça, e que tombe morta depois que sair deste quarto, quem sabe caminhe por este corredor como se estivesse rumando para a cadeira elétrica, mas eu vou sair do outro lado.

03:07

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 59


18:04

De volta ao começo.
Pensei em começar a escrever tudo de novo.

Mas suspeito que nem você nem eu teríamos fôlego para chegar até aqui.

Escrevo para cicatrizar minhas feridas, para dar um sentido para a dor. Que sempre volta, por isso devo escrever todo dia. Até que passe, e se ela não passar vou continuar escrevendo e escrevendo. Suspiro. Maria Suspirante. Você já deve ter notado que é quase um hábito eu suspirar. Mas também suspeito que você comece a entender por quê. De qualquer forma, esta história não é sobre mim, é sobre Clara. Ou pelo menos assim o penso, assim acredito.

Não falo muito do lugar de onde escrevo, então talvez não faça muita diferença eu dizer que estou escrevendo de outro lugar. Uma outra mesa. Outro quarto. Não penso neste lugar onde estou como uma cela - parece mais com uma sala. Cela e sala, aliterações -, embora às vezes pense que meu quarto é uma cela. Condenada a escrever. Até que chegue ao fim da história. E então de volta ao começo. 

Se nem terminei uma coisa, como posso começar outra?

Essa frase talvez tenha um significado mais profundo do que na verdade sinto neste momento. Sarah disse isso, e me voltou à mente.

Clara que era criança. Criança que não teve infância. Ser criança não quer dizer ter infância, Sarah me disse. Começo a entender melhor isso. E Maria? Nunca pensei a fundo no passado de meus personagens, nem em como eles se conheceram. Como era a vida do homem alto e moreno de cabelo liso junto com Maria antes de Clara nascer. E o menino, você me pergunta de novo. Marcos ou Jonas? Sei que você vai dizer que é um artifício muito ingênuo quase todo dia eu repetir que não sei dos meus personagens, que não lembro deles. Quer dizer, não consigo criar. Afinal, é tudo ficção. Nada disso aconteceu. Não pode ter acontecido. É apenas uma história, e sei que devo continuar escrevendo esta merda até o ponto final. Não posso parar, não posso desistir. Embora, você já sabe o que vou dizer agora: quase todo dia penso nisso.

O que me faz insistir nisso?

O que faz alguém insistir na vida?

Quem daquela família insistiu em viver?

Insistir em viver, veja a que ponto chegamos. Meu deus, a que ponto chegamos.

Lady Clara, pequena Clara. Insista. Preciso de você como preciso continuar respirando. Por favor, insista.

Nem que seja a última coisa que você faça na vida.

18:18

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 58



20: 36

Sei que é tão simples começar a escrever: é só começar, então comece agora. Estou cansada. Mental, fisicamente. Mas escrevo agora. É minha sina escrever. Até chegarmos ao fim desta história. Li um material sobre o grupo de vítimas de incesto sobre o qual Sarah me falou. Pensei que na história de Clara – é apenas ficção, ou pelo menos assim o penso, mas baseada na realidade –  imaginei o homem alto e moreno de cabelos lisos vendo ela brincar. Ele gostava de ver a pequena Clara brincar em sua casa.

Do que ela brincava?

De trenzinho, de boneca? O que você acha? Sei que de tempos em tempos ele enfiava o dedo na boca dela e a obrigava a chupar. Sim, é claro que se ela fosse um bebê e ele fizesse isso, poderia ser um substituto para bico, e ainda assim, discutível em minha opinião. Talvez ele fizesse isso mesmo desde que ela era pequena, assim como – essa ideia me voltou agora – ficar mexendo em sua vagina de bebê, com a desculpa de estar trocando suas fraldas. Mas ela então não era mais um bebê. Ainda não era mulher, ainda não sei se chegou a ser mulher. A história pode acabar antes. Até aqui ela era uma criança. E ele colocava os dedos na boca dela. E o homem alto era alto – sei que parece redundância, mas quero deixar claro que era um homem alto e forte contra uma criança pequena. E houve uma vez em que Maria disse para ele não ficar enfiando os dedos na boca de Clara. E ele deu um tapa nela. Maria começou a chorar. Ele logo pediu desculpas, disse que não gostava que os outros ficassem querendo ensinar como se devia educar uma filha.

Por “outros”, ele estava se referindo a mãe da criança.

Maria desculpou o marido. Ela desculpou, assim como desculpou das outras vezes em que foi espancada e ele disse que aquela seria a última vez, que nunca mais encostaria um dedo nela. As surras começaram a ficar mais violentas depois que ele voltou a beber, e enquanto ele estava abstinente creio que eram apenas empurrões. Não tenho muito claro em minha mente de escritora iniciante as memórias dessa época.

Será que é inconsciente, assim como o fato de eu não conseguir criar um nome para esse homem?

Será que é inconsciente eu mal lembrar o que fiz ontem, o que já andei escrevendo neste projeto de história?

O caso é que desta noite, de Clara brincando, o homem enfiando o dedo em sua boca, dando um tapa em Maria, eu me lembro.

Quer dizer, eu consigo criar.

O homem deu um tapa em Maria depois que ela disse para ele não colocar o dedo na boca de Clara. Depois ele pediu desculpas, ela aceitou. E foram para o quarto. Ele estava excitado. Ele se excitou com Clara e descontou em Maria.

Filho da puta.

Ele descontou em Maria, mas no fundo o que ele queria era fazer em Clara.

E aquela foi apenas uma noite.

Ele não conseguiu ter Clara do jeito que queria.

Naquela noite.

Mas foi apenas uma noite.

Depois dela viria outra noite, outro dia.

Outro dia, mas não outra vida.

Parece que há fumaça em meus pulmões e um monumento de chumbo em meu peito. Suspiro. Outro dia, mas não outra vida.

Quem sabe, outro dia. Outra vida.

20:57

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 57


Sei lá por quê, você me diz para não desistir. Que eu inspiro você, pelo simples fato de não desistir, mesmo sabendo que quase todos os dias penso em abandonar tudo. E ir para onde, fazer o quê? Desistir da vida, talvez, e de alguma forma que ainda não consigo alcançar, desistir de contar esta história já seja em si desistir da vida.

Você me diz para continuar. Não tenho vontade, digo eu, e muitas vezes também me falta vontade (ou motivo?) para sair da cama, seja a hora que for. Continue mesmo assim, me diz você. Arraste-se, se for preciso, mas não pare. Isso soa forte. E antes que pense outra vez em desistir, e hesitar em quem sabe continuar, quem sabe mais um dia, já estou escrevendo. 

De alguma maneira que também não entendo, parece que você quer saber sobre Clara. Também quero saber dela. Quer dizer, quero-mas-não-quero, quero-mas-tenho-medo. Sempre digo que tenho medo de descobrir que sou uma péssima escritora, mas na verdade isso já descobri faz tempo, que não levo o menor jeito para contar histórias. Mas talvez, como devo ter dito em alguma dessas noites, em que me tranquei aqui para escrever, longe das pessoas todas muito parecidas de além da porta fechada, e enquanto aguardava a hora de jantar com Cris, meu medo seja simplesmente de aceitar o que aconteceu com Clara. Aceitar, não; inventar, porque é apenas uma história de ficção, não é? Aquilo que conto, ou melhor, que tento contar, noite após noite, mesmo que fique noites e dias sem escrever, é apenas uma historiazinha. Não aconteceu de verdade.

Não é?

Responda-me, você que nunca responde nada, e já nem sei para quem afinal me dirijo, se Sarah, se Jonas, se Cris, que também quase não fala, ou se apenas meu interlocutor invisível, um amigo imaginário literário.

O caso é que em minha mente vi Lara passando pelo corredor, e ela sorria, abanando. Levava Clara no colo – sim, Clara ainda era pequena. Lara levando sua sobrinha Clara pelo corredor, abanando, sorrindo, jovem.

Mais bonita que sua irmã Maria. 

Meu deus, Maria como meu primeiro nome. 

Talvez ela não fosse tão mais bonita, mas era mais jovem, e muito mais cheia de vida. O que não quer dizer muito, porque talvez desde essa época a vida de Maria já estivesse se apagando.

E então tenho um misto de tristeza e raiva ao pensar que o homem alto e moreno de cabelos lisos não cuidou de Maria. Não cuidou de Clara, com certeza, mas quando Maria começou a adoecer, e isso pode ter sido muito tempo atrás, ele não cuidou dela. Ele só cuidava, e a isso talvez se deveu sua reputação de excelente profissional da saúde, de seus pacientes.

Ele abusou de algum ou alguma paciente?

É possível, não tinha pensado nisso.

Quantas coisas há nesta maldita história que não consigo criar, porque não consigo entender, e se não entendo também não posso criar. Ou simplesmente não aceite.

Cada coisa que descubro, digo, invento dói um pouco mais. Cada coisinha, cada pecinha deste quebra-cabeça, cada risco para descobrir esta pintura coberta de nanquim, dói um pouco mais. Me disseram que é assim mesmo, que fazer terapia dói e mesmo que estes escritos não sejam, até onde eu saiba, terapia... escrever dói como gilete nenhuma me cortou antes.

Acabo de ter um súbito mal-estar por ter pensado em uma metáfora como “giletes cortando”. Clara se cortava? Eu acho que sim, neste momento, e talvez já tenha escrito isso e me esqueci. Mas neste momento eu acho que sim, Clara se cortava com giletes. Existe uma maneira de cortar os pulsos que a maioria das pessoas que tenta se matar assim ignora, e que é a única maneira correta para morrer se cortando.

Clara não sabia disso naquela época. 

Mas infelizmente aprendeu o jeito certo mais tarde.