quinta-feira, 29 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 103


29 de maio de 2014

21:36

De novo a porta fechada. Escrevo sem pensar porque se pensar paro de escrever. Ontem a Cris me deu um beijo. Na bochecha, mas acho que ela queria algo mais. Talvez eu quisesse, e tenho certeza que você pensou “até que enfim essas duas ficaram juntas”.

Mas tudo que consegui fazer foi chorar.

Muito.

Ela me abraçou e foi embora. Quer dizer, embora de para longe, não embora deste lugar. Sarah me mostrou um texto, ou melhor, ela estava lendo um texto que estava por perto, ela esqueceu – ou fez que esqueceu, porque começo a desconfiar que ela está me mandando pistas para eu descobrir algo que, tenho certeza, ela já sabe sobre mim, mas não vai me contar – e eu li. Era sobre anoréxicas e bulímicas. 

Aliás, escrever isso, de alguma forma, me causa dor no estômago, acidez na garganta. 

O texto dizia que muitas não podem demonstrar desejo porque quando ele aparece é machucado.

Justamente por algumas, ou muitas, já terem sido abusadas. 

Então você acha que Cris e eu seríamos felizes juntas, não é?

Dane-se. Vou dizer de novo: não quero falar de sexo.

Cris estava triste ontem também. De vez em quando ela fala, como eu mesmo falo: vou me matar. Não vou aguentar. 

Claro que essa fala é mais minha do que dela, e às vezes ela tem até um bom humor. Ri mais do que eu, pelo menos. Sim, ainda penso em desistir – mas se a morte não for o fim de tudo e o que está lá for pior do que está aqui?

De qualquer forma, essa maldita história, por algum motivo que ainda não entendo, ou não quero entender, não pode ser deixada sem fim. Logo, não posso morrer. E escrever, e talvez Sarah soubesse disso, mesmo que sejam divagações da Estranha Que Escreve Fechada No Quarto, de alguma forma vai cicatrizando algumas coisas. Como a dor de não saber. E claro, meu mar de pensamentos revoltos.

Sarah me disse que vai me ensinar a fazer aqueles, como se diz, genogramas? Aqueles com bolinhas e quadradinhos. Para incrementar a minha história. Tipo a árvore genealógica da família de Clara. Relações conflituosas, vícios, incestos – nossa, que palavra horrível. Mas ela disse que tem simbolozinhos para contar tudo isso por meio de um desenho. Imagina, essa história de merda está saindo do meu controle. Jade sabe sobre ela, e me pergunto se todo esse pessoal, que me parece incrivelmente parecido, não cochicha quando estou aqui, para eu não ouvir, a Estranha Que Escreve, e especulam sobre a história de Clara.

Às vezes tenho a impressão de que alguém lê isto aqui enquanto durmo.

Ainda não tive coragem de jogar tudo fora. 

Ainda não tive coragem de muita coisa.

O fim está próximo? quase ouço você perguntando. 

Não sei. 

Mas sei que não vai ser hoje.

Talvez tudo acabe em um incêndio.

Mas não hoje.

Hoje eu vou ficar viva mais um dia.

Maria Viva Mais Um Dia.

21:54

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 102


25 de maio de 2014

23:45

Passeei com Cris hoje pelo campo à noite. Estava frio, úmido, acho que todos já estavam dormindo. Nem sei se poderíamos andar por aí, mas andamos. Andamos em volta do campo. Depois de alguns passos, ela pegou no meu braço. Olhei para ela, não soube exatamente como reagir, mas disse:

 Eu não...

 Eu sei que você não, disse ela. Eu só queria dar uma volta de braços dados. Faz tanto tempo. Nem sei mais o que é isso. Por favor.

Hesitei, mas... E daí? Estavam todos dormindo.

 Eu só quero dar uma volta e sonhar.

Sonhar, pensei. Não se nega um sonho a ninguém. Andamos.

E foi um passeio bom, confesso.

Cris já foi dormir. Jade me disse que sentiu minha falta. Eu disse... Mentira, não disse nada. Então ela disse que um dia queria ler a história que estou escrevendo.

 Como você sabe que escrevo? Foi a Sarah, né?

 Não, ela disse. Uma dessas noites você esqueceu de trancar a porta e ela estava entreaberta quando passei. Olhei para dentro. Foi sem-querer.  E vi que você escrevia.

 E como você sabe que é uma história?

 Não sei. Mas achei que fosse.

Não disse nada. Maria Que Não Diz Nada.

 Deve ser uma história bonita.

 Não. É horrível.

E saí de perto dela. Vim em direção a este lugar.

 Mesmo assim, disse ela. Eu gostaria de ler, um dia.

Fechei a porta, como ela está fechada agora. Com um pouco de medo. Aliás, com medo. Não existe pouco medo ou muito medo: apenas medo. Será que alguém lê isso aqui quando não estou por perto?

Você que me lê. O que está procurando? A mesma coisa que eu? Mas não posso responder suas perguntas se não vejo, ou não consigo ver, ou não quero ver as respostas. Que cor são meus cabelos? Lembro vagamente de ter escrito isso. A Clara, pelo menos a Clara que imagino, era loirinha.  O homem alto de cabelos lisos e negros, óbvio, tem os cabelos pretos. Lara, não tenho certeza, mas acho que castanho claro.

Os meus cabelos, pego na mão e passo os dedos até o fim dos fios para lembrar, são negros.

Pinto os cabelos. Não lembro como eles eram antes, se já eram negros. Não lembro de muita coisa, e imagino que você já saiba isso. Meus cabelos são pretos como – não sei por que me ocorreu isso agora – os cabelos de Maria.

A mãe.

Paro de escrever. Acho que todos estão dormindo.

Me pergunto de novo: será que morri e não sei?

Você diz que me ama.

Não posso dizer que entendo esse sentimento.

Então eu já fui amada?

Ó Deus, já fui?

O que resta para mim nesta vida que não sei como começa? O que resta para nós, pequena Clara?

Preciso saber como termina a sua história.

Para poder entender como começa a minha.

00:04

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 101


22 de maio de 2014

21:43

De novo, a porta fechada. Escrevo ao som do piano. Em minha mente, claro, e sinto que por algum motivo ele está voltando. É claro que não fui no aniversário de Jade – não que ela não seja uma garota legal; é, mas não quis ir. Não quis e pronto. O caso é que ouvi Sarah dizendo a ela: do ponto para trás, acho que no sentido de voltar a uma situação anterior. Tipo assim, o ponto final é o fim de tudo, é onde a frase termina. Ponto. Fim.

Então me ocorreu isto:

Do ponto para trás.

Adorei essa figura de linguagem. E me ocorreu que Maria, a mãe, que tocava aquele piano lindo e triste, bonito como um corte no pulso – e por um segundo penso em parar de escrever para olhar para minhas próprias cicatrizes – era ligada em algum tipo de arte, além da música. Ela gostava de contar histórias, de ler e talvez tenha ensinado Clara a escrever. Maria escrevia, Clara escrevia.

Me pergunto se eu mesma escrevia antes de escrever?

Isso me fez pensar. Porque por mais que eu seja uma péssima escritora, já escrevi esta história, que nem é, ou nem era, uma história e já se foram mais de cem páginas.  Quem sabe, daqui a pouco esta não-história, estes lamentos que registro aqui e que ninguém jamais vai ler, vão estar beirando as duzentas páginas. E depois, quando eu terminar, jogo tudo no lixo. Ou no fogo.

Já pensei que existe um incêndio nesta história.

É assim que termina tudo?

Tenho medo de terminar esta merda de história, isso você já deve ter percebido. Mas também havia a chuva. E havia um dia nublado.

Lindo.

Lindo e nublado.

Enquanto o piano seguir e você estiver por aí, eu vou ficar viva. Nem sempre me sinto viva, e nem sempre estou viva, eu sei, mas escrever estas bobagens tem me ajudado de alguma forma. Sarah deve ter imaginado que ia dar nisso. Então por que não termino de contar a história de Clara? Sinto o peito apertado, mas... Existe algo além do ponto final. Algo além das reticências. A música da linguagem.

Acho que elas gostavam de escrever.

Sim, elas gostavam. Gostavam da música da linguagem. Talvez, se tivessem sobrevivido, uma das duas, ou quem sabe as duas, tivessem contado a história que estou tentando contar. A história de Clara.

Eu não sei se elas morreram – apenas escrevo o que meu pensamento sugere. Eu que não sei escrever.

Ou talvez, de alguma forma que ainda não entendo, saiba.

Talvez eu mesma tenha sobrevivido para contar esta história.

A história de Clara.

21:58

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 100


21 de maio de 2014

00:16

Tem uma garota aqui que está de aniversário hoje. Seu nome é Jade. Nunca soube se ela é loira natural ou pintada, e não que isso faça diferença. Ela usa um crucifixo no pescoço e sorri. Sorri mais do que eu, embora ache que ela esconda uma dor silenciosa. Talvez façam alguma comemoração, quem sabe bolo de chocolate. Ela estava faceira hoje. Jade Faceira. Alguém, afinal, tem motivos para sorrir aqui.

Então o piano volta a minha mente.

Tão nítido que é como se estivessem tocando aqui ao lado.

Mas agora ouço o som ao fundo. Como uma memória que vem abanar. E logo dá adeus. Ele há de voltar. Penso que talvez Maria, a mãe, tocasse piano em algum aniversário de Clara e quase posso sentir o cheiro de álcool de uma voz embargada.

Pausa.

Sarah veio aqui, quem diria. A essa hora. Sinto que algo está para acontecer. Uma tempestade se anuncia no horizonte, além do mar. Mas ela só queria saber como eu estava. Eu disse que estava escrevendo. Mas agradeci.

Mais de meia-noite e alguém bate na porta para perguntar como estou.

Acho que ela queria saber se vou no aniversário de Jade. Não sei. Acho que ela é uma garota legal e talvez, se eu não ficar com raiva porque sua família talvez apareça, ou qualquer pessoa apareça, nem que sejam as outras criaturas que habitam este lugar, o que provavelmente não vai acontecer, não quanto a elas aparecerem, mas a eu não ficar com raiva pelo fato delas terem aparecido, eu que sequer lembro quando faço aniversário, então talvez eu apareça.

Mas não comecei a escrever por isso, embora se Jade lesse o que escrevo aqui, o que nunca vai acontecer, mas se acontecesse, poderia ser um presente para ela, mas sim comecei a escrever por causa do piano. Triste, lindo, divino. Imortal, transpassando toda a dor que houver neste mundo.

Maria tocando o piano. O piano que deve seguir.

Enquanto ele seguir, estaremos seguras, pequena Clara.

00:3
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segunda-feira, 19 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 99


19 de maio de 2014

22:40

Embora faça muito tempo que não veja você, que não saiba de você, sinto como se estivéssemos pertos de novo. E é bom sentir sua presença. Você, a quem já chamei de tantos nomes – e todos os nomes, em todos ali estava você. Escrevo para me sentir viva, para aguentar mais um dia. E cada dia que escrevo é um dia que disse não para a morte.

Não vou negar: não é todo dia que digo não para ela.

Mas neste momento estou dizendo.

O tempo está mudando de novo. Tem tanta coisa que vai e volta em meu espírito, afeta meu corpo como o peso de um vagão. Não sei se ele pertence a algum trem ou é apenas um vagão abandonado no meio do deserto. Ou de uma caverna escura. Não sei se existe vagão na história de Clara. Foi apenas uma metáfora, a primeira que me ocorreu, para me descrever hoje. Escrevo para lembrar.

E às vezes para esquecer.

Mas que merda: escrevo diversas vezes para esquecer. E esqueço. Mas então as memórias, que não são bem memórias, são mais como abelhas vindo me incomodar, voltam. E tenho que escrever de novo.

Penso em Clara sobre as costas de Maria, a mãe, deitadas na grama em um dia de sol. Seria a cena mais bonita desta história. Mas também temos o piano, cujas notas não tenho escutado em meus ouvidos internos. Queria que elas voltassem. Talvez voltem, porque acho que aquela melodia perdida no tempo diz mais do que consigo captar em minhas palavras, eu, péssima escritora. A história de Clara podia conter duas cenas: a cena delas deitadas na grama do parque e Maria tocando para ela ouvir. Poderia haver só isso e eu me daria por satisfeita. Mas então aparece Claudius. E aparece Lara, que deveria ter cuidado da sobrinha – às vezes até suspeito que ela seja mãe e não tia.

Há ainda Jonas. E Marcos. Há ainda muita coisa que não consigo entender, que não consigo criar. Ou não quero, por algum motivo que – ai, psicanalistas – Sarah sabe, mas não vai me dizer. Ou não vai me dizer antes da hora. E quando chega a hora, você me pergunta. Eu não sei, e não sei se não sei mesmo, ou se não quero saber. Não sei e tenho raiva de quem sabe, que nem aquela cantiga infantil.

É tão difícil eu colocar coisas de criança nesta história. Escravos de Jó jogavam caxangá. Pimponeta, petá petá perruje. Jogo da Amarelinha. Pular corda, bambolê. Devia ter tudo isso, e por um momento sei que Clara fazia tudo isso. Mesmo que eu não veja, que não consiga criar, em meu coração sei que Clara foi criança. Que teve infância. Sarah me disse que ser criança e ter infância não é a mesma coisa. Mas Clara teve infância.

Ela foi feliz um dia.

E talvez – talvez – ainda possa voltar a ser.

22:55

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 98


Quinta-feira, 15 de maio de 2014

22:34

Você me diz que vai voltar, que é para eu preparar o café. Já chamei você de outros nomes. Todos certos ou nenhum deles? Não importa, queria que você estivesse aqui. E talvez se eu continuar escrevendo, você apareça. Se não para mim, apareça em algum lugar. Talvez, algum dia.

Faz alguns dias que não escrevo. Estou com fome. Grande novidade. Não escrevo todos os dias, embora isso seja o que me aconselharam, me disseram que é assim que se faz – escreva todos os dias! – e sei lá por quê, em várias ocasiões que venho aqui escrever, ou melhor, antes de escrever, estou com fome. Não vou jantar com Cris hoje. Na verdade, nem nos vimos. Também não nos vemos todos os dias. Não escrevo todos os dias. Mas sinto fome. Podia parar por aqui, ir comer e esquecer toda esta merda. Mas ainda não falei de Clara.

Ainda não falei sobre o piano.

Clara não podia falar sobre o que aconteceu. Aliás, acontecia, porque não foi apenas uma vez. Ninguém ia acreditar e, sabemos, Claudius era o Doutor Todo-poderoso, que podia tudo. Inclusive ficar pelado com a filhinha, tomar banho com a filhinha, se masturbar olhando para a filhinha. Transar com a filhinha.

Filho da puta, maldito.

Clara não podia falar. Talvez, no começo, nem entendesse que aquilo era errado. Talvez pensasse que aquilo – e pontuo o “aquilo” – que Claudius fazia era normal, era o que pais faziam com as filhas. Imagine: Clara pensava que todos os pais faziam aquilo com suas filhas. Em outros estados, isso é normal; em outros países, isso é normal.

Assim como é normal roubar a vida de alguém. E a vida de Clara foi roubada.

E de uma forma que ainda não posso entender: muito mais do que imagino.

Queria saber mais sobre Jonas e Marcos, os dois garotos. Às vezes algumas imagens fugidias me vêm à cabeça, somem, se evaporam. Como um sonho. É isso que a história de Clara me parece: um sonho maldito. E o que acontece quando ele acaba? Quando Clara acorda?

Quando eu acordo?

O que há neste mundo, longe daquele sonho, e talvez, embora também não entenda isso muito bem, ainda não, este mundo não esteja tão distante daquele sonho. Aquele sonho ruim.

Meu deus, não está tão distante.

Então me pergunto: como termina este pesadelo no qual estou?

22:48

domingo, 11 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 97


Domingo, 11 de maio de 2014

21:00

Hoje foi dia das mães.

Tentei não pensar muito nisso.

Teve mais gente comendo junto na hora do almoço, eu invisível como sempre fui. Cris estava por perto, não me senti tão sozinha.

Até me perguntei se ela não é alguma parente minha, alguém introduzida nesta história, alguém que, como eu, tenta recuperar a própria história – e acho que estamos ambas perdidas aqui. Não sei por que ela se afeiçoou a mim, a Estranha Que Não Fala Com Ninguém E Escreve. A estranha que escreve. Podia até ser o nome de algum conto.

Mas quando chegou a noite, e jantei com Cris, desta vez só nós duas, pensei em Clara. E em Maria, sua mãe. Como será que eram as comemorações naquela casa, se é que havia alguma? Como seria o Natal de Clara? Claudius, pensei na hora, deve ter comido a Mamãe Noel Lara de presente, debaixo do pinheiro de Natal. Será que Maria sabia disso?

Talvez Maria soubesse de Lara, soubesse de tudo. Soubesse de Clara também.

Talvez por isso, de alguma forma, ela pensava em morrer, e morria um pouco mais a cada dia. Morte aos pedaços, em conta-gotas. Não me programei para escrever nada disso, como desde a primeira frase desta maldita história.

Você diz que esta história é meio pesadinha.

Esperava o quê?

Nesta fábrica de chocolates há giletes nas veias.

E quando escrevo isso olho de novo para as cicatrizes em meus braços.

Para as queimaduras.

Já cogitei que existe um incêndio na história de Clara.

Mas ainda não sei onde ele se encaixa. Desconfio, mas não tenho certeza. Ou talvez tenha, mas quero não ter. Quero mudar o fim desta história. Sou a autora, eu faço o que quiser com ela, eu mando nessa merda. Mas não posso mandar em meus pensamentos. Se eles me conduzirem, e conduzirem esta escrita, a um final diferente daquele que temo, sairei livre. Talvez, e sei que você deve ter imaginado a mesma coisa, eu me enrole tanto para escrever porque quero mudar o final, que talvez seja o começo.

Mudar o que não pode ser mudado.

Deve haver alguma forma. Talvez se eu ler mais, tiver uma ideia melhor sobre a estrutura, o enredo, a voz narrativa. Mas Sarah ia me dizer para não fazer assim: não pense, apenas escreva.

Escreva que todos morrem no fim.

Maria, será que teve um dia das mães? Um presente de Clara? Clara deve ter ido para a creche e lá deve ter feito um presente. Um desenho. Um desenho horrível, mas lindo. Talvez tivesse Claudius nesse desenho. Talvez tivesse ele fazendo coisas com ela, ameaçando fazer coisas ainda mais horríveis (o que poderia ser mais horrível?) caso ela contasse.

Mas em minha mente, e vou sonhar com isso hoje à noite, era um escrito:

Te amo, mamãe.

E é então que volto a chorar.

21:22

sábado, 10 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara - Dia 96



Sábado, 10 de maio de 2014


21:27

Conte-me uma história.

Foi tudo o que Sarah disse. Conte-me uma história.

Contar o quê, se não sou escritora?

Conte-me uma história. Escreva.

Então comecei a escrever. Escrever sem saber. Maria Que Não Sabe De Nada.

Preciso de um personagem. Então apareceu esse homem. E em seguida uma mulher. Uma mulher e uma criança. E uma irmã, que mais tarde descobri ser tia da criança, cunhada do homem, que demorei a batizar. Sarah me disse que quando a gente sofre um trauma a gente tem dificuldade para simbolizar; logo, não consigo criar nomes, entre outras coisas. Mas temos Clara, o nome dessa criança, que sofria abuso do homem, que batizei de Claudius. Seu pai, marido de Maria, a mãe, em quem batia e que se internou – eu diria uma, mas acredito que foram varias vezes. O nome da irmã de Maria era Lara.

Lara parece com Clara.

Fiquei uma semana sem escrever esta história, e cada vez mais ela parece uma incógnita para mim. Jantei com Cris mais cedo hoje, e enquanto ela foi tomar banho, vim aqui escrever. Passeamos pelos campos verdes hoje e me perguntei: será que não estou morta? Será que não estamos ambas mortas e isso aqui é um tipo de hospital no céu? Será que é isso? Sarah, a quem eu chamo de psicanalista, doida como qualquer psicanalista, será que não é alguma espécie de anjo? Será que o fim de tudo isso é este: estou morta e não sei?

Sarah sabe das coisas, mas esses psicanalistas são meio sádicos: eles não podem dizer o que já sabem. Eu tenho que chegar às minhas próprias conclusões. É como se ela me pegasse pela mão e me conduzisse por uma casa escura, e fosse iluminando quarto por quarto e depois, no fim da jornada, perguntasse a mim: onde você quer ficar?

Mas minha dor não vai passar enquanto não descobrir como termina a história de Clara. Em minha mente ouço notas soltas daquele piano triste, e talvez aí esteja a chave para algumas coisas. Acabo de lembrar que amanhã é dia das mães.

Maria, a mãe.

E penso em Clara e penso em Maria.

E penso no piano.

Cris saiu do banho, veio me incomodar um pouco, embora de alguma forma ela também me incentive a continuar escrevendo esta história. A sair do outro lado deste túnel.

Então, respiro fundo. E engulo meu choro. Vou chorar para dentro. E aguentar mais um dia.

Feliz dia das mães, Maria.

21:44

domingo, 4 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara - Dia 95


3 de maio de 2014

21:34


Não gosto do que acabo de escrever – mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu. E respeito muito o que eu me aconteço.

Li esse trecho de um livro daquela Clarice que peguei aqui na biblioteca, ou o mais perto daquilo que se poderia entender como uma biblioteca que tem aqui, e fiquei com mais vontade de ter conhecido essa mulher. Na verdade, acho que ela deveria estar escrevendo em um lugar parecido com este, tateando a narrativa assim como tateio, escrever sem saber o que vem a seguir, e achando o próprio texto torto, ela mesma assumindo que não é assim que se escreve. Eu também não sei escrever, Clarice. Apenas escrevo.

Tenho certeza que vou jogar tudo isso fora, mas se alguém quisesse ler, ela eu deixava. Talvez, pensei agora, ela me entendesse. Ela que escrevia para se entender também.

Será que ela passou pelo que eu passei?

E o que eu passei? você me pergunta.

Ainda não sei. Por isso escrevo.

Alguns dias se passaram. Nem sei se pensei em desistir, pelo menos formalmente, mas houve um dia em especial que a dor se tornou tão forte que decidi não escrever. Ou deixei para depois, que é a mesma coisa. Tudo o que eu posso fazer é esperar a dor passar, como a chuva. E muitas dessas noites, em especial nas primeiras, em que tentei escrever esta história, estava chovendo. Faz algum tempo que não chove.

Por que o céu parou de chorar?

Talvez ainda haja esperança para Clara, mas não sei por onde começar. Todo esse tempo que estou tentando escrever esta maldita história jamais sei para onde ela deve seguir. Sarah me diz para continuar escrevendo, para apenas escrever. Tenho certeza que esses psicanalistas são loucos fugidos de um asilo, talvez até já tenham estado aqui, foram fazer faculdade, leram Freud e todo aquele pessoal, e agora ficam por aí a dar pitacos. Pensando bem, eu poderia fazer a mesma coisa.

Mas antes preciso terminar a história de Clara.

Jantei com Cris mais cedo hoje. Havia mais gente junto, e confesso que não me concentrei direito na comida, hoje cachorros-quentes feitos por um desses caras daqui. Ela me disse que soube da Faele, e disse que ela está casada com um ex-presidiário, que quer que ele vá para a igreja, e acho que Faele deve ter se convertido. Quer dizer, não pode mais viver na vida de pecados com a Cris, que isso era coisa do diabo e ela ia rezar por ela toda noite, que Deus tinha planos para ela.

 Você e seu Jesus podem ir à merda, disse Cris.

E veio para dentro de volta. Ela não tocou mais no assunto, mas disse que Faele não estava chapada. Não a conheço pessoalmente, apenas sei o que Cris me conta dela.

Existem dores maiores do que a minha.

Será que eu já tive alguém?

Não sei, nunca me perguntei isso. E honestamente, não quero pensar nisso agora.

Não gosto de homem.

Mas também não gosto de mulher.

E Clara?

Ainda não sei se ela teve alguém, se chegou a ficar mais velha. Um namoradinho na escola. Hmm, isso poderia acontecer. Clara tinha um namoradinho. Um garoto tímido, desses que dizem “estamos namorando – mas ela não sabe disso”. Ora, por que não? Na história de Clara podia ter um toque de inocência – por que tem que ser apenas dor o tempo todo? Um namoradinho. Como seria seu nome? Pedro? Não sei, me veio Pedro na cabeça. Ele pode ser Pedro. Amanhã a Deus pertence, como eles dizem em um desses grupos que acontecem aqui.

Por que Claudius voltou a beber depois de dez anos?

Seria ele um bom pai antes disso?

Não sei, tudo nesta historia parece picotado. Maria Picotada. Maria Tentando Juntar Os Retalhos.

Talvez como Clarice.

Como Maria, a mãe.

Como Clara.

22:11