quarta-feira, 30 de julho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 117


30 de julho de 2014

01:35

Ia começar dizendo que não tenho nada a dizer. Escrever para dizer que não sei o que escrever. Grande novidade. Nunca tenho e algo acontece. É madrugada. Podia estar dormindo, mas de alguma maneira a madrugada me pede para fazer algo.

Para sentir.

Para procurar.

Escrevo. Busco palavras.

A música toca lá fora. Dentro de mim. Do fundo de mim. E só eu ouço, mas sei que o mundo inteiro está ouvindo essa melodia. Meu mundo. Não preciso de nenhum outro. Sou a rainha, a princesa, a senhora disto tudo aqui.

Quando escrevo “princesa”, me arrepio inteira. A música que só eu ouço continua triste, linda, cicatrizando.

Princesa como a pequena Clara.

Sweet Lady Clara.

Talvez eu contasse o que conto sempre sobre esta história, quando penso nela e apresento para meu interlocutor imaginário, para você: sobre o que se trata? Quem conta esta história é alguém cujo primeiro nome é Maria. Isso é tudo o que se sabe dela. Isso é tudo o que sei de mim. Sarah, a psicóloga do lugar onde ela, digo, eu estou, disse: conte uma história. Do nada, surgiu, porque precisei: um personagem. Logo, um homem. E logo após, uma mulher. Um homem, uma mulher, uma criança. E um irmão. Claudius, o médico que voltou a beber depois de dez anos sóbrio; Maria, a mãe que vivia internada no hospital e que tocava piano. Clara, o centro de tudo. Que era abusada pelo pai. Maria, a mãe, que era espancada pelo pai. Havia o irmãozinho Jonas.

E Lara.

Irmã de Maria. Tia de Clara. Mãe de Marcos. Gostosinha. Vadia.

Talvez essa história não se resuma a isso. Ou talvez porque se resuma sim a isso, não consigo avançar.

Ou me dói demais avançar, então não quero e não consigo se tornam verbos iguais.

Por que não lembro de nada?

E por que não consigo parar esta história maldita, esta história de merda que nem tenho coragem de abandonar, de jogar tudo pro alto? Será que Sarah, essa outra vaca psicóloga, tem ideia do quanto me dói escrever neste quarto escuro?

Por um instante, penso que sim.

Talvez ela acredite que a madrugada eterna um dia vai ter fim.

Acho que ela sabe como termina a história de Clara. E não vai me dizer. Esses malditos psicanalistas. Eu tenho que chegar lá. Talvez já pudesse ter chegado, mas cada palavra mais perto do abismo me assusta, dói: mas é como um vento sobre a ferida. Que doeu, mas passou. Tenho que entender o que passou.

E aceitar que passou.

Como é? Viver o luto. Veja que paradoxo: viver o luto.

Poderia eu mesma me matar e acabar com toda essa farsa. Mas – e de alguma forma acho que Sarah previu isso –, cada vez que escrevo abana uma esperança. Do outro lado desta madrugada. Meus escritos não têm sentido, não encontram um Norte. Mas mesmo sem ter a menor ideia de para onde estou indo, a carruagem segue. Viajando madrugada adentro.

Levando aquela princesa que não vou descansar enquanto não encontrar de novo.

01:58

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 116


25 de julho de 2014

21:03

A porta está aberta, por enquanto. Ninguém nos corredores. Hoje faltou luz aqui, e ficamos um tempo no escuro. Ouvi as vozes e reparei nos vultos de todas aqui. Mas, de alguma forma, enquanto elas falavam muito sobre nada, apenas desci para o de dentro de mim. De alguma forma, me senti em casa. Não sei se já tive medo do escuro, se já escrevi isso aqui. Não lembro. Mas hoje não senti medo. Hoje não.

Fiquei até pensando no que ia escrever mais tarde e lembrei que ontem bateram na porta aqui. Ela já estava fechada e, geralmente, as pessoas não batem na minha porta depois que ela se fecha. Mas abri e aquela garota bonita de óculos me olhou, com seu olhar de várias coisas, e vi que ela estava com algo na mão. Era Lady Brownie. Na verdade, a porta estava entreaberta e vi que alguém vinha caminhando bem devagarzinho pelo corredor, se agarrando em um corrimão. Ou com uma bengala. Sei que parece idiota, mas não tenho certeza de como ela estava. Talvez não tivesse achado ela bonita antes, ou achei e não me importei, ou apenas estou achando agora. Como neste momento Emília me parece bonita, posando na frente do espelho com batom – uma boneca arrumada. Talvez já tenha achado Jade bonita, talvez Cris também. Sei lá porque escrevo essas coisas, só sei que escrevo.

Isso não é importante, embora Sarah tenha me dito que nada era trivial. Ainda não sei com quem Cris está namorando, se é que ela está mesmo namorando alguém, e isso também não é importante. O que eu queria registrar aqui foi o presente que Brownie me trouxe. Ela estava com ele sobre a mão e debaixo de um pano. Ela disse que tinha vindo me trazer. Cheirei. Era um de seus brownies. Cheirei de novo. Tinha algo escrito nele, mas não li na hora.

 Tem cheiro de infância? perguntou ela.

Cheirei de novo. Tinha cheiro de muitas coisas. Tinha cheiro de algum lugar seguro.

 Sim, respondi.

Ela me encarou por um instante.

 Você acha que um dia vou voltar a caminhar?

Olhei para ela. Não soube o que dizer.

 Talvez se eu conseguir lembrar, um dia, você consiga esquecer.

Neste breve intervalo de tempo, pensei em Maria, a mãe. E sua Clara. Pensei no carinho de mãe, no amor de mãe. Que era, sempre seria, incondicional. Maria morreria por Clara.

Meu deus, que não tenha sido isso o que aconteceu.

Cheiro de infância, cheiro de paraíso. Cheiro de para sempre. Um lugar seguro, que nem sei se existe. Mas com o qual sonho todo dia. E não pensei mais em Claudius, nem em Lara. E neste momento, nem em Jonas e Marcos. Apenas baixei a cabeça e senti o cheiro do brownie mais uma vez.

 Parabéns, garotinha, disse ela.

Tive vontade de chorar. Olhos marejados. Parece que é um clichê, mas que se dane: foi isso o que senti. E, sei lá se foi isso, mas é o que me parece: quis estar viva. Por algum motivo, que talvez seja esperança, talvez seja o cheiro que me trouxe a ideia de que talvez o passado que esqueci não tenha sido totalmente dolorido, ou o trauma, se é que houve, que sofri e apagou tudo, tenha algum dia um sentido. E se não houver, porque não deve mesmo haver, devo criar um. Por isso escrevo.

Obrigado, respondi. Ela sorriu. Passou a mão em meu rosto. E sei que você está pensando que com esse papo de garotas bonitas vou me engatar em alguém aqui, ou mesmo em Brownie, com seu gesto de carinho duplo. Mas, pensei agora... Talvez senti como se uma irmã tivesse vindo para dizer que me ama.

Ó, Brownie, como foi fazer isso comigo?

Alguém, algum dia, já me amou. Não lembro, não imagino como tenha sido. Mas sinto. Um amor de irmã.

Ou de mãe.

Me arrepio quando escrevo essas coisas e penso em parar de escrever porque já estou cansada, mas Sarah me disse que eu jamais escreveria demais. Talvez de menos, mas qualquer coisa que me viesse à mente, por mais descabida que parecesse, eu deveria colocar para fora. Se não falo, escrevo.

E então, vendo Brownie indo embora e caminhando em sua eterna câmera lenta pelo corredor afora, fechei a porta do quarto. Pensei em tudo aquilo, como pensei nisso de novo, no escuro hoje. Senti o cheiro de novo, como uma viciada. Foi assim mesmo que me senti: deliciosamente viciada. Uma viciada em paz. Suspiro ao escrever isso. Me viciei em algo que perdi lá atrás, e nem sei o que é.

Mas foi bom.

De alguma forma que não lembro, mas foi bom. Houve algo de bom.

Algo de bom.

Olhei para o brownie e fiquei juntando suas letrinhas, lendo e relendo. E sorri.

“Feliz Dia do Escritor”

21:34

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 115


23 de julho de 2014

23:17

Você me diz para eu ficar na atividade, que tenho que continuar escrevendo. Que já está na hora de chegarmos a algumas conclusões, algumas afirmativas em vez de apenas hipóteses para a história de Clara. Mas a verdade é que não sei. Ou ainda não estou pronta para saber, não quero saber.

Vou ter que ficar neste quarto mais algum tempo.

Me preparo, noite após noite, para um show único. Que ninguém vai ver. Mesmo assim, tenho que estar aqui.

Acho que Cris está namorando uma dessas gurias daqui. Quem será? Brownie? Emília? Jade, que no fim das contas achei que estivesse com um desses caras daqui, e talvez esteja escondendo o jogo? Não sei. Uma vez, nas raras coisas que ela fala, Emília disse que também sentia atração por mulher. Quem sabe?

Lá fora, chove. De novo. Como talvez seja o começo e o fim da história de Clara. Muitas das noites em que vim aqui escrever estava chovendo, e isso não pode ser por acaso.

Talvez um incêndio tenha matado a todos, e os pingos caíam em seus corpos carbonizados.

Talvez sobre Maria, a mãe.

Talvez sobre Clara.

Ó Deus, permita que este não tenha sido o destino final dessas pessoas que tento ligar nesta história sem pé nem cabeça, nesta história horrível que tento contar e que faço de tudo para não ter que escrever mais. Só que preciso chegar ao fim disso. Essas frases, que vou improvisando assim, feito um solo de piano, me doem uma a uma, mas também, de alguma forma, cicatrizam – meus braços e suas marcas, que não sei como foram parar ali. Como eu mesma não sei como vim parar aqui.

Um solo de piano.

Talvez ainda exista esperança.

Ontem li dois relatos de garotas que foram abusadas. Uma pelo ex-namorado, a outra pelo chefe. As duas foram violentadas, espancadas, humilhadas, talvez cuspidas, talvez tivessem dito a elas: não grite, na conte a ninguém. Ninguém vai acreditar em você.

O mesmo que disseram para Clara.

As duas disseram que ficaram com nojo de homem, com nojo de sexo, com nojo da vida.

Sei lá porque, mas acho que já pensei algo semelhante.

Sarah, maldita, está conseguindo me levar para a beira deste penhasco. Sei que me aproximo dele, mas não consigo parar. Há uma estranha força que parece me conduzir quando escrevo, quase como se alguém ditasse tudo que devo colocar aqui.

Maria Marionete.

Não sei onde vai parar isso tudo. Era apenas para eu inventar uma história. Foi assim que tudo começou. Mas agora não consigo terminar. Nem parar.

Rumo ao abismo. Esperando por aquele piano, para salvar nós duas. Talvez nós três.

Eu.

Maria, a mãe.

E Lady Clara.

Não vou desistir de vocês. Espero que Claudius morra no fim disto tudo e que queime, muito lentamente, sentindo cada segundo, no inferno, se existir algum. Lara, não sei. Ela deveria ter cuidado da sobrinha Clara. Deveria ter cuidado do filho Marcos. Mas estava ocupada demais sendo a princesa dos olhos de ouro para o doutor. A putinha dos olhos de ouro.

Mas o piano talvez toque para aquela garotinha linda, e mesmo que sua melodia fosse triste, doída, sangrada, mesmo assim: talvez ela ainda traga um pouco de paz.

23:43

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 114



21 de julho de 2014

20:59

A porta fecha mais cedo hoje. Também porque estou com fome, então escrevo logo e me livro. Posso comer mais tarde. Preciso escrever, preciso me livrar. Alimento a ideia de reler alguns desses escritos, mas enquanto não faço – se fizer, ainda não decidi –, tenho que registrar que a vida, ou aquilo que chamo de vida, parece mesmo estar me deixando sinais para que eu escreva a história de Clara, e continue colocando as pecinhas neste quebra-cabeça.

Um quebra-cabeça que já deve ter pertencido a alguém, como aquela garotinha que tento encontrar a cada peça que vou colocando aqui. O puzzle da pequena Clara.

Que também é o puzzle de Maria, a mãe.

Um quebra-cabeça, feito o brinquedo roubado daquela criança, que poderia ter sido feliz. Poderia ter sido alguma coisa, qualquer coisa.

Mas estou viajando, como sempre. Queria pensar nas pistas que a vida oferece para eu seguir nesta busca. A primeira foi semana passada, quando li a reportagem de um homem de São Paulo que não guarda nada na memória por mais de quatro dias e por isso precisa escrever sem parar.

Sim, acho que é mais ou menos isso que faço aqui, e por isso devo me manter escrevendo, cavocando nesta caverna escura do inconsciente (pelo menos é o que imagino que Sarah imagine – esses psicanalistas que querem nos pegar pela mão e iluminar nossos quartos escuros e depois nos perguntarem onde queremos ficar...).

Hoje também vi a reportagem do médico e da madrasta que assassinaram o garotinho para colocarem a mão na herança dele. Faz sentido. Pensei se o Dr. Claudius não quis matar Clara, com a ajuda de Lara.

Lara não era, tecnicamente falando, madrasta de Clara. Embora eu já tenha cogitado que exista uma associação maior entre as duas, porque Clara é parecido com Lara. Meu deus, talvez ela tenha sido batizada em homenagem a maninha de Maria, a mãe. Claudius deve ter sugerido e talvez – talvez, não sei – Maria simplesmente tenha achado um nome bonito. Mas Claudius talvez já tivesse de olho em Lara. A gostosinha, songa-monga, irmãzinha que tinha mais tempo e mais estrutura emocional que Maria para se arrumar. Para parecer bonita. E de fato era.

Putinha.

Então talvez Maria tenha adoecido e começado a frequentar os hospitais. Lara deveria ter cuidado de Clara, mas cuidou apenas de Claudius. Deu pra ele na cama de Maria. Talvez Lara considerasse Maria, a irmã mais velha, uma rival. Duas mulheres, um homem. E não apenas um homem, mas um homem-médico. Dr. Claudius. E quis Lara, ou não se cuidou e aconteceu, um fruto disso tudo. Marcos, o garotinho que cresceu sem pai. Não sei se Lara deu desculpas de porque teve um filho e o pai não quis assumir. Mas o pai, embora ninguém soubesse, estava ali logo ao lado. Com a esposa. E com os dois filhos, os oficiais.

Clara e Jonas.

Preciso escrever esta merda de história até o fim. E nunca, jamais, sei o que vou escrever. Mas algo acontece, e deve continuar acontecendo.

Lá fora faz frio. Mas não está chovendo hoje.

Olho para as cicatrizes em meus braços, depois o olho escorrega pelas minhas queimaduras.

Suspiro.

O mistério permanece.

Vi Emília hoje, que parecia mais feliz. Às vezes acho que ela vai se quebrar ao meio. De alguma forma que mal consigo descrever, ela parece se doer toda. Mesmo quando está feliz, posso enxergar no fundo mais fundo dela e ver que ela também tem suas correntes para carregar. Como Lady Brownie, cujo doce não senti mais o cheiro. Como Jade, cujo namorado também não vi mais aqui. Como Cris.

Como eu.

21:24

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 113


16 de julho de 2014

23:33

Você me pergunta se ando estudando, se leio esses artigos para pesquisar. Se isso que conto daqui é um diário e fico me enrolando em vez de contar as coisas de lá, da história de Clara, que é o que deveria interessar, não a minha história. Mas acredito que, de uma forma que ainda não posso entender – ou não quero entender, vá lá –, o que conto aqui e o que conto lá está interligado. Sarah disse que era só para escrever, qualquer bobagem, qualquer pensamento. Que nem Freud disse que era para fazer. Nada é trivial.

Esses psicanalistas do inferno.

Mas começo a pensar que eles têm razão.

E volto a pensar que esses textos, vídeos, reportagens e o diabo, tudo faz parte de uma conspiração para que eu conte a história de Clara. Acredite, e só escrevo isso porque sei que ninguém vai ler: a vida está me deixando pistas, pegadas para eu seguir. Preciso escrever para saber como termina a história de Clara, e como começa a minha. Acho que por isso falo um pouco daqui. Observei Emília hoje. Ela é um personagem, definitivamente. Seus cabelos estavam cor de ouro. Ela é toda tímida, fala algumas coisas sem sentido (embora eu entenda tudo o que ela quer dizer) e fica vermelha. Quase roxa, sobre sua pele muito branca. Não passeei no campo. Nem senti o cheiro do doce de Lady Brownie. Nem vi o namorado-maluco de Jade. Nem ouvi a voz de Cris.

O que me restou foi vir para cá de novo e escrever. Mesmo sem ter o que escrever. Apenas continuar escrevendo, até que alguma coisa aconteça. Alguma reviravolta. Algo que faça você, que quem sabe me lê, ter medo de dormir de noite. Mas não sei se consigo fazer isso. Eu não sei escrever.

Neste momento volto a pensar que um dia eu soube contar histórias.

Ainda há coisas nesta história que não posso revelar.

Não desista tão cedo. Se você veio até aqui, pode ir um pouco mais.

Jonas e Marcos, os garotinhos. Um irmão de Clara, o outro, não assumido, também. Três filhos do Dr. Claudius. Dois de Maria, um de Lara.

Vejo em minha mente de pretensa criadora uma foto em preto-e-branco. Lá está Maria, a mãe. E Lara, que era menor. Maria era bonita. Posso ver a juventude e seus cabelos lisos e negros.

Lisos e negros como os meus, não posso deixar de registrar.

Talvez Maria tenha pintado os cabelos, como eu mesma acho que pintei. Eles são negros agora. Não lembro como eram. Não lembro de nada. Mas gostei de criar esta foto: Maria era uma mulher bonita. Talvez linda. E Claudius, penso agora, se apaixonou por ela. Eles começaram a namorar, depois noivaram. Casaram. Não consigo imaginar, mas... Bem, Maria devia estar linda em seu vestido branco e amparada pelos santos de uma igreja grande, talvez a Catedral Metropolitana. Claudius já era médico, casou em grande estilo. Eles seriam uma família feliz.

E então viajaram em lua de mel. E Maria engravidou.

Agora fiquei na dúvida: quem veio antes, Clara ou Jonas?

Maria tocava piano. Talvez tocasse para Claudius. Talvez tivesse tocado em seu casamento.

A cada palavra que escrevo, tenho medo de descobrir aquilo que não estou preparada para ver. Ainda não.

Uma coisa que você já deve ter notado: eu chego na beira do penhasco, e volto. Não tenho coragem de pular, mas a cada vez que volto, chego mais perto. Começo a alimentar a ideia de fazer o que disse que não ia fazer: reler esses escritos. Talvez essa historinha ficasse melhor escrita, eu mesmo teria mais ideias.

Mas sei que não posso postergar para sempre: um dia vou ter que me jogar daquele penhasco e esta história terá fim.

23:56

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 112

16 de julho de 2014

00:14

Dei uma volta no campo, sozinha, ainda agora. Faz frio. Não vi Cris hoje. Faz tempo que não vejo Brownie. Vi apenas Emília. Seus cabelos estavam mais vermelhos e por algum motivo me pareceram como se fosse vômito. Ou sangue.

Você tem razão em uma coisa: nada acontece nesta história.

Ou eu mesma talvez esteja enrolando, a você e a mim.

Talvez. Suspiro. Escrevo.

Hoje pensei que havia um bar com o nome de Decrépito’s, administrado por um homem-índio chamado Potí. Não me pergunte de onde tirei esses nomes. Mas penso que Claudius, Dr. Jekyll, levava a pequena Clara lá. Maria, a mãe, ficava esperando ele voltar para casa. Talvez ele dissesse que ia ali comprar pão, ou talvez fosse mesmo tomar um aperitivo. Clara, penso agora, deve ter crescido lá. Não sei se a infância toda, as memórias – digo, as coisas que invento – são todas meio desconexas. Não sei muito de relações com tempo. Li em um artigo que pessoas com depressão não conseguem ter memórias de eventos específicos. Que seja. Clara no boteco. Vendo o papai beber.

Lara ia lá?

Não sei.

Já me ocorreu que Lara estivesse com Claudius quando ele voltou a beber.

Ainda não sei se ele fazia o que fazia com Clara antes de voltar a beber.

Queria apenas escrever esta merda de história até o fim.

Se sei para onde estamos indo? Se sei como termina esta história? Sei, mas não quero saber. Sei, mas finjo que não sei. Um incêndio, todos morrem. Ainda há esperança de tudo não ter terminado como tenho medo de admitir que terminou. Não me exija o que não posso dar neste momento.

Só estou escrevendo hoje porque sei que você não vai ler. Que ninguém vai ler. Hoje pensei em reler algumas coisas, essas bobagens que escrevi e que jurei que nem eu, muito menos outra pessoa, leria. Mas pensei em ler. Não sei, pensei. Penso, desisto.

Sim, me lamento.

Foda-se, é como a vida se apresenta neste quarto fechado.

Há ainda Jonas e Marcos. Há elementos na história de Clara que não consigo criar. Ou não quero ver, mas como ver se não consigo criar?

Lara, a maninha. Vadia. Que era para ter cuidado de Clara enquanto Maria, a mãe, estava internada no hospital. Estou me repetindo? Eu queria que esta história fosse para frente, para algum lugar. Houve a chuva. Houve o armazém. Houve Claudius no escuro com Clara.

Ontem Sarah me falou de um documentário sobre abuso infantil. Era um documentário espanhol chamado “Los Monstruos de Mi Casa”. Não aguentei ver. Não só porque não entendo espanhol. Mas comecei a passar mal. Havia desenhos. Como os que Clara fez e Claudius jogou fora. Não sei se ninguém viu antes que ele jogasse fora. Deixe ver... Acho que tinha uma criancinha sentada no colo do papai. Ninguém deve ter visto maldade nisso. Inclusive não repararam o sorriso de demônio que ele tinha ao manter sua filha no colo.

Demônio excitado.

Um sorriso gigante, com os dentes e talvez a língua para fora.

Como o Lobo Mau.

E talvez houvesse um balãozinho escrito: “Ninguém vai acreditar em você”.

Será que Clara contou? Será que Maria sabia?

Mães sempre sabem.

Mas fingem que não sabem.

Como eu.

00:34

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 111


10 de julho de 2014

23:20

Penso no piano. Tão lindo, tão triste, tão soberbo que pareço ouvir as teclas e sua melodia preenchendo este vazio que é tudo o quanto penso em preencher quando começo a escrever aqui, noite após noite. E não preencho nada, mas penso no piano enquanto ele toca.

Em algum lugar perdido dentro de mim.

Quero encontrar esse lugar.

Hoje eu quero.

Por isso escrevo.

Me arrepio e até penso em chorar. Maria Chorona. Hoje não. Tive um sonho esses dias. Sonhei que eu estava bebendo. Que estava empinando uma garrafa atrás da outra. Em algum bairro da minha infância. Não me pergunte como sei que era um bairro da minha infância se não me lembro sequer do meu segundo nome. Mas por algum motivo lembro do meu primeiro nome, talvez porque nunca gostei dele e escrevendo aqui, neste processo e, por que não, jogo maluco no qual Sarah me meteu, acho que comecei, de alguma forma, a gostar do meu nome. Acho que faz parte de criar e, vá lá, assumir uma identidade.

Meu nome é Maria.

Não me lembro de muito mais que isso, mas me lembro que naquele bairro do sonho, no qual eu estava bebendo, eu já estive.

Talvez você não tenha prestado atenção quando escrevi, mas: eu não bebo.

Imagino que Maria, a mãe, também não bebesse. Claudius voltou a beber depois de todo aquele tempo e bateu nela. Algumas vezes. Talvez muitas vezes. Clara viu isso. E também, imagino, não bebia. Claro, ela prometeu que nunca ia beber na vida. Um dos garotinhos, Jonas ou Marcos, bebeu para proteger Clara.

Meu deus, eu me esqueci de tudo.

Me esqueci da minha história.

Sei que no sonho, quando eu estava bebendo, e deixe-me dizer que estava adorando beber, lá pelas tantas, passou pela rua um desses caras estranhos, um desses que parece incrivelmente igual aos outros, a todos os outros, como se fossem clones, um clone da loucura e do esquecimento do mundo, do esquecimento alheio, passou por mim. E viu que eu estava bebendo. Senti vergonha. Senti mais do que vergonha. Quis voltar ao passado, quis apagar tudo.

A Estranha Que Escreve Trancada No Quarto.

E então acordei.

Ainda não contei para Sarah. Esses psicanalistas adoram sonhos. O que será que ela diria? Sim, sonhos vêm do inconsciente. Mas e daí? E a história de Clara, que escrevo aqui pelo que imagino ser uma livre associação – porque jamais sei o que vou escrever antes de realmente escrever, nunca, nunca – vem de onde?

Tem uma outra garota aqui que, percebi esses dias, parece uma personagem. Sei lá se pelo fato de eu tentar contar a história de Clara e mesmo com esse processo de vir aqui e tentar juntar palavras, eu que nunca soube escrever – ou soube e não sei, porque me esqueci, que já sabia? –, eu acabe vendo as pessoas como personagens, todas passíveis de serem inseridas em uma narrativa, que no fundo acho que é isso o que todos somos.

Personagens de uma história contada, não sei por quem e não sei para quem.

Mas pensei nessa garota. Vou tentar descrever: ela tem os cabelos laranja e parece uma boneca assustada. Uma boneca, sim, mas assustada. Ouvi dizer que toda sua família se matou e ela veio para cá.

Será que foi isso o que aconteceu comigo?

Acho que o nome dela é Emília. Uma boneca assustada que parece que vai se quebrar no meio. Ela tem medo de ficar entre outras pessoas. E não vou negar que isso, de alguma maneira, me atraiu. Não nesse sentido que você imaginou, mas tive vontade de escrever sobre ela. Todas temos nossas histórias.

Assim como Clara tem a dela.

Maria, a mãe, também.

Me arrepio ao pensar em Maria tocando piano para sua princesinha. Se tudo o que eu pudesse descrever, se tudo o que eu pudesse mostrar nesta história, fosse esta mãe tocando o piano para sua garotinha, eu estaria feliz. Mas por enquanto tudo o que consigo fazer é suspirar.

Ó Clara, mostre-me como termina essa melodia. Que me faz chorar escondidinha aqui nesta cela.

E que me dá saudades.

Meu deus, saudades. Daquele lugar que se perdeu dentro de mim. Mas sei que ele está lá.

Ele está lá. E é então que começo a chorar.

Chorar de saudades.

23:46

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 110


4 de julho de 2014

23:15

Estou cansada. Falei com Cris, que também estava cansada. Eu estava uma zumbi, decidimos dormir antes. Ela no quarto dela, eu no meu. Fui, mas levantei para escrever. Essa maldita história que nem dormir sossegada me deixa. Ou talvez seja apenas o ato de escrever, esse sim, que me chama e eu, mesmo quando não quero – leia-se: quase sempre –, acabo atendendo.

O caso é que também vi Brownie hoje e ela disse que vai fazer novos doces em breve, vai me avisar, Jade, Cris e mais uma ou outra. Novos doces.

 Com gosto de infância? perguntei.

Sei lá de onde me ocorreu perguntar isso, ou por que perguntei, mas ela apenas sorriu e disse que sim. Com gosto de infância.

Então Lady Brownie olhou para o vazio, para o distante, para o fundo.

Perguntei se ela estava pensando no passado.

Não sei que tipo de merda eu tinha na cabeça ou, de novo, por que perguntei aquilo. Mas ela disse:

 Se eu não pensasse tanto em passado, talvez eu não estivesse caminhando tão devagarzinho hoje. Talvez eu pudesse voltar a caminhar. Eu só queria esquecer.

Lady Brownie Que Quer Esquecer.

E eu que quero lembrar.

Quer dizer, quero, mas – como provavelmente diria Sarah – não quero. Tenho certeza que ela sabe qual o mistério da história de Clara, se é que há realmente um mistério. Esses psicanalistas e suas charadas. O caso é que também li em um desses artigos espalhados por aqui, como pistas para eu decifrar, que se a gente dormir menos de seis horas por noite, vai ficar com a memória prejudicada. Não sei se fui dormir por isso, eu que não lembro sequer de todo meu nome, como vim parar nesse lugar ou qualquer coisa a mais do que... nada.

Mas dormi e voltei, como quem volta de um sonho. Que hoje não foi ruim, mas também não posso dizer que lembro de meus sonhos. Acho que estavam algumas dessas pessoas daqui lá – que merda, isso tudo aqui parece um sonho, e às vezes é o que imagino estar acontecendo. Mas então: como ele acaba?

Pensei de novo em Lara. Pensei que ela pode ter se tornado feia. Mas mesmo feia, e duvido que ela tenha se tornado feia, mas é uma hipótese, o Sr. Doutor Abusador ainda se dedicava a ela mais do que a Maria, a mãe. Talvez, sei lá por que me ocorre escrever isto agora, ele tenha dado um tempo em ficar traçando a filhinha.

Mas aí o estrago já tinha sido feito na pequena Clara.

O piano me volta como algo distante. Não como um sonho, mas como algo além do sonho.

Imagine, existe algo além do sonho.

De alguma forma, quando penso que não há mais esperança – e você sabe que penso isso não tão raramente –, essa mágica que ainda não sei explicar e que acontece depois que começo a escrever me mostra, e também não sei de onde ela vem: esperança.

Há algo além do sonho.

E nós vamos encontrar esse algo, doce Clara.

23:33