segunda-feira, 23 de março de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 165



Segunda-feira, 23 de março de 2015

21:08

Sinto cheiro de outono. O friozinho volta aos poucos. Desde sexta passada, espero. Sarah me convidou para participar destes grupos de estudos que ela faz. Tipo assim, para eu ter mais ideias para minha história. Do grupo de vítimas de incesto, ela não falou mais. Disse que um dia talvez conhecesse, da mesma forma: para ter ideias para a história de Clara. Algum tempo atrás, disse que não teria o que fazer em um grupo desses e ela não insistiu. Apenas fez o convite. Talvez, um dia. Esse é mais um dos grupos que ocorrem aqui, e talvez esse para o qual ela me convidou seja parecido.

Talvez ela queira me convencer daqueles absurdos do velho tarado.

Talvez seja algo mais.

Esses psicanalistas sempre vêm com algo mais.

Mas nunca contam.

A gente tem que chegar lá, e acho que odeio eles um pouco por causa disso.

Não quero falar de abuso nenhum, nem lembro mais do que criei para a história de Clara. Talvez Maria, a mãe, tenha passado por isso com seu pai, e passado a desgraça adiante quando casou com aquele médico maldito, Dr. Claudius Que Quis Fazer Da Filha Sua Bonequinha. Bonequinha, talvez ele chamasse Clara assim, mas não se contentou em apenas olhar e tratar com carinho – e cuidado, pelo amor de deus – a bonequinha da família. Lara, a vagabunda, contribuiu para isso, quando ele voltou a beber depois de dez anos. Sei lá se contribuiu mesmo, talvez Claudius já tivesse traços. E talvez a bebida o tenha liberado para fazer o que ele lutava para não fazer. Não sei, apenas escrevo o que me vem a mente.

E em minha mente Claudius e Lara são dois filhos da puta.

Achei que nunca mais fosse escrever esta merda de história, e não ia mais falar do que aconteceu.

Aconteceu?

Mas era apenas uma história que criei para lembrar.

Meu deus, quanto mais escrevo, mais me enrolo, e mais chego perto daquele abismo.

Posso ser tanta gente dentro desta história maluca. De alguma forma, todos esses personagens têm algo de mim, e odeio esta história por causa disso. Posso ser Clara, posso ser Maria, a mãe. Claudius pode ser uma projeção minha, e eu ser a abusadora. Lara, titia vadia, pode ser eu também – por que sempre me dá um certo nojo quando penso em sexo? Aliás: não quero falar de sexo.

O piano soa ao longe. Ele é a única coisa capaz de me dar paz. Uma última esperança. O piano que talvez dê um sentido a esta merda de história mal contada. Muito mal contada. Maria Que Não Sabe Escrever. Mas que ainda sonha. Sim, ainda sonho.

Cheshire estava especialmente risonha hoje. Ela é uma risada ambulante. Não vi mais ela de pijamas, mas suas risadas continuam dando graça dentro da loucura, que é dela, que é de todas nós. Blossom também sorria. Acácia, vi de relance no corredor. Cheshire e Blossom trocavam seus jabs verbais, com Cheshire sempre ganhando, já que não para de falar um minuto. Elas combinaram de passear em volta do chafariz. Agora é noite de novo. O frio está voltando aos poucos. Não sei o que escrever, nunca soube. Desde o começo quando era apenas uma narradora a procura de uma história. Ainda sou. Ainda não quero enxergar. Ainda não consigo enxergar.

Como termina a história da pequena Clara?

Talvez em um dia de chuva.

Talvez na próxima chuva.

Mas com ou sem ela, o piano vai continuar tocando sua melodia. Triste e linda.

E isso me faz sorrir.

E sentir como se estivesse de volta ao lar.

21:29

domingo, 15 de março de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 164

                             #PianoParaPequenaClaraNoJoSoares #josoares


15 de março de 2015

21:16

Cris está meio triste. Ela pediu para eu ficar por perto e nesse meio tempo me deu vontade de escrever – escrevo de outro lugar, não do meu quarto-cela, ao lado da única pessoa que deixo ficar por perto enquanto escrevo. Ela só não pode falar, este é o trato. Talvez ela apenas queira ter alguém com ela, talvez pense em sua família, da qual sei quase nada, assim como sei quase nada da minha – ou melhor: nada. Sei que ela deve ter existido, e talvez a história da pequena Clara, de Maria, a mãe, do maldito Claudius, doutor dos infernos, da vagabunda Lara, de Jonas e Marcos, tenha algo a ver com isso. Talvez seja por isso que sempre acho que vou conseguir viver sem escrever esta história horrível, que nem história é, sem chegar ao fim disso – e os fantasmas contidos nela voltam, e tenho que retomar a busca dentro desta caverna.

Sei que Sarah e seus delírios psicanalíticos tem alguma explicação para isso, assim como provavelmente aquele velho tarado, ídolo dela.

De alguma forma vai voltar, ouvi ela dizer um dia.

Aquilo que não quero ver. Aquilo que me dói.

Aquilo que tive de esquecer.

Aquilo que esqueci vai voltar, de alguma forma. E de alguma forma, já está voltando. Posso quase tatear, mas não sei dar nome. Não sei, como é a palavra, simbolizar. Por isso escrevo.

Blossom estava escrevendo em seu caderno semana passada. Hoje de tarde essas malucas estavam em volta da televisão vendo uma passeata de um protesto que aconteceu, cheio de bandeiras. Que diferença faz o que está acontecendo lá fora quando estamos todas presas aqui dentro, me pergunto – a menos que alguma de nós saia para viver em definitivo lá fora, o que não é impossível. Talvez quando eu descobrir como vim parar aqui, saia. Talvez quando eu lembrar.

Talvez quando eu quiser lembrar.

Blossom estava escrevendo em seu caderninho. Perguntei o que era, ela me disse que era uma carta de amor, depois disse que estava brincando, e olhou para baixo, procurando aquilo que se perdeu. Vi em seu rosto que ela devia estar escrevendo mesmo uma carta de amor e se arrependeu de ter me dito. Não sei se para alguém aqui de dentro, e só agora me pergunto isso. Cris me pergunta se quero jantar, respondo que daqui a pouco. A verdade é que quanto mais me afasto da história de Clara, mais difícil fica escrever.

Você sabe, sou uma péssima escritora. Péssima mesmo.

Mas em uma dessas madrugadas perdidas no tempo me ocorreu: esta história ruma para o fim.

Acho que já sei como ela termina.

Só não sei que sei.

Ou não quero saber que sei.

Esta merda de calor também ruma para o fim. Não sei mais em que estação termina esta história. Mas o penhasco, o penhasco do qual sempre fujo, se aproxima uma vez mais.

Quem sabe na próxima chuva?

21:43

terça-feira, 3 de março de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 163




Segunda-feira, 2 de março de 2015

23:56

Estou com problema de memória. Isso é óbvio, mas não me refiro a ter esquecido tudo antes do acidente ou seja lá o que foi que tenha me trazido a este lugar. Me refiro ao meu cérebro, ou aquilo que restou dele, estar se apagando mais a cada dia, e tive medo, não sei se pela primeira vez ou já tinha pensado nisso, de enlouquecer. Quero dizer, enlouquecer antes de chegar no fim desta maldita história e quanto mais me convenço de que sou capaz de seguir sem escrever, o fantasma de Clara volta para me assombrar.

Sim, faz dias que não escrevo e jurei de novo que nunca mais ia escrever esta história horrível, terrivelmente mal escrita, um lixo que jamais será lido – mas então Sarah me para no corredor e pergunta se estou escrevendo. Ela deve saber que não. Não imagino como, mas esses psicanalistas veem coisas que não nos contam, não até a gente descobrir por nossa conta, ou admitir o que fingimos que não está lá.

Acho que odeio ela por isso.

Todas as nossas relações são baseadas em amor e ódio, ela me diz, então talvez ela ria escondido de mim.

Maria Sozinha No Canto Da Sala Com Todos Rindo De Sua Cara.

Não soa muito bem, mas pelo menos acho que Claudius, o Dr. Abusador, talvez esteja ficando escondido em algum canto desta história – e isso talvez seja bom, ele não ter mais aparecido em minhas livres associações. Sarah disse que a angústia é o afeto que fica vagando dentro de nós sem encontrar um porto e quando dizemos que não sabemos o que estamos sentindo, e de alguma forma isso é desconfortável, isso também é angústia.

Portanto, Maria Angustiada Que Escreve Para Se Livrar. Sem ter nada para escrever, como sempre, mas de alguma forma confiando que meu cérebro febril vai soltar as palavras certas. Só tenho que escrever, não pensar.

Mas tive uma visão bonita hoje. Na verdade, não foi hoje, mas registro agora. Vi elas três da minha janela: Cheshire, Blossom e Acácia. Elas estavam em volta do chafariz que Cheshire adora. Fiquei observando aqui de cima. Cheshire falava e ria, Acácia também falava, mas não ria – falava com aquele misto de alegria e tristeza contida dela, talvez uma loucura mansa. Elas duas pareciam duelar enquanto conversavam. Pelo que conheço das duas, cada uma deveria estar falando de um assunto diferente ou pelo menos ambas trocavam os assuntos muito rapidamente, feito jabs entre lutadores de boxe. E Blossom seguia quieta, como sempre. Às vezes tentava falar, e até conseguia, uma ou duas frases, e Cheshire e Acácia continuavam o carnaval verbal que era tão típico delas, e Blossom se recolhia de novo.

Fiquei com saudades delas, olhando aqui da minha janela, presa dentro de mim, tanto que me arrepio, tanto que quase choro.

E então penso em Maria, a mãe, tocando seu piano para sua doce garotinha. Sweet Lady Clara. Acho que tudo o que escrevo aqui, madrugada após madrugada, é sobre Clara. É sobre o piano. Sobre Maria, a mãe que se perdeu no tempo.

Talvez eu escreva para dar paz aos seus espíritos.

Não sei de onde veio essa frase, apenas escrevo o que me vem à mente em tempo real.

Talvez elas não tenham morrido ou talvez sim, e isso que escrevo aqui, às vezes em um desespero, é uma tentativa de mudar o passado. O final desta história. A cada madrugada, a cada vez que chove. O tempo talvez esteja para mudar. E isso me deixa feliz. E se é isso que se chama esperança, então talvez possa reacender este espírito errante aqui. E ver que aquelas três garotas, lindas em sua loucura, em volta daquele chafariz, perdido aqui no meio do pátio, deste lugar de onde falo, elas estão lá para mim. De alguma forma, elas vão estar lá me esperando. Acácia em sua loucura inocente, Cheshire, talvez a mais louca das três, a garota que passeia de pijamas e ri, e que rindo às vezes torna isso aqui suportável, embora também eleve o nível de insanidade que ronda em volta de mim, e Blossom. Sempre quietinha, pronta a largar um jab ou outro quando menos se espera. Elas vão estar lá esperando por mim.

Como Maria, a mãe.

Como Clara.

Como o piano que deve continuar tocando.

A espera de mim.

00:26