terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Piano Para Pequena Clara – Dia 207


Segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

23:06

Suspiro. Estou angustiada. Está para começar a chover. O vento frio vem fazer meus demônios dançarem frente ao absurdo da vida, como li em um livro hoje.

É o suficiente para começar a escrever.

Silêncio aqui no asilo. Primeiros escritos depois que fui transferida para A Casa, o lugar onde o tempo passa mais devagar, onde a loucura caminha mais lenta do que na Ala das Grades – mas loucura continua loucura. E ela é sempre linda. Feito um corte no pulso. Notei que aqui também há algumas garotas da fita preta, e notei algumas borboletas desenhadas nas folhas que ficam sobre as mesas, tipo um ateliê para Garotas Com Fendas.

Entendo minhas iguais.

E amo elas.

Eu que nunca pertenci a lugar nenhum encontrei os anjos a minha espera.

Anjos querendo voltar para casa. Lutando para não voarem pelos muros, para encontrarem um sentido na dor que deve passar. Um dia de cada vez. Hoje não vamos nos cortar, hoje vamos desenhar uma borboleta e cuidar dela, como se disso dependesse nossa vida – até porque depende mesmo.

Essa maldita história da qual sempre fujo e que me cobra com angústia cada vez que me afasto dela por muito tempo. Deve fazer quase um mês que não escrevo, e tenho certeza de que ninguém se importa, porque ninguém jamais vai ler esta merda. Mas soube de uma artista japonesa que está internada em um lugar parecido com este há muitos anos, e que precisa continuar pintando para lidar com seus pensamentos suicidas. Ela é uma artista consagrada, aliás, mas se parar de pintar, morre.

Sim, por isso escrevo.

Esses dias ouvi outra das preleções de Sarah, falando de pulsões e a angústia que não conseguimos deixar passar. Que passa e volta. Ela falou da depressão pós-parto e de, ah, lembrei: psicose. E de uma mãe nos Estados Unidos que depois de ter o quinto filho, matou os outros todos.

Naquele momento pensei se Maria, a mãe, pode ter feito isso com Clara e Jonas.

Meu deus, será que já tive alguém?

E esse alguém morreu?

De novo o abismo se aproxima.

Ouço a voz de Peter Steele de novo. Ele também, um garoto com fendas, outro anjo querendo voltar para o lar. Stay Negative, repito. Ouço o teclado junto, que é como o soar das trombetas anunciando o fim. E é lindo. Queria tanto encontrar minha família, meus anjos perdidos querendo voltar para casa, minhas Meninas e Meninos Com Fendas, e quero pegar nas mãos de todos e caminhar rumo ao paraíso, por esse caminho de giletes, que sangram e choram, mas acreditam que um dia a dor vai passar.

E ela vai fazer um sentido.

Não sei como termina a história da pequena Clara, e talvez ela não termine. Talvez as giletes encontrem uma borboleta e uma fita preta com poesia, e um sentido. Não desistam, meninas lindas. Estamos vivas. Não desistam, meninos lindos, não hoje. Estamos vivos.

Sei que vamos encontrar nossa família.

E a dor vai fazer um sentido.

23:39

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Piano Para Pequena Clara – Dia 206


Quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

16:26

Faz tempo que não escrevo. Não que alguém se importe, porque sei que ninguém jamais vai ler esta merda. E jurei mais uma vez que ia desistir para sempre de contar esta história sobre o nada, essa ladainha que comecei a escrever nem sei por quê. Mas lá fora troveja. Começou a chover. E estavam ouvindo uma música chamada “Nettie”. Perguntei o que era aquilo, me disseram que hoje seria aniversário de Peter Steele, que estaria completando 55 anos hoje.

Ouvi e ouvi de novo.

Lá fora chove. Chove, Maria escreve. Esse calor que odeio talvez diminua.

A chuva aumenta, talvez venha uma tempestade por aí.

Será que existe uma relação porque estou escrevendo agora?

Não sei, mas agora que comecei, vou seguir com esta bosta e ver até onde vamos. Sei que me disseram que o Peter se matou, ou teve uma overdose – que é mais ou menos a mesma coisa – e escutando isso aqui, pouco antes de começar a chover, vi em minha mente um filme cinza, com pessoas muito brancas, talvez vampiros, veias saltadas, um carnaval para usuários de drogas injetáveis, e o branco contrasta bem com o sangue vermelho, porque é vermelho de vida que se recusa a deixar de existir.

Que encontra um sentido na dor.

Somos todas Garotas Com Fendas.

Saí das Alas Gradeadas faz algum tempo. Sarah deve ter planos, porque agora estou em um lugar chamado A Casa, também dentro deste asilo que me parece do tamanho da Via Láctea.

A menos que eu tenha morrido e isto aqui seja uma espécie de umbral, o que também não descarto.

Vi de passagem a Garota Bossy.

Como eu disse, pessoas entram e saem desta história, e ainda não entendo por quê. Aliás, não entendo merda nenhuma. Mas sei que se eu ficar muito tempo sem escrever esta história para dentro e fora de mim, algo acontece.

Dizem que esse Peter era alguém bem triste.

Ele era um Menino Com Fendas.

Sim, eles existem aos montes, espalhados por aí.

Não tenho nada para escrever, como jamais tive, mas por uma força que ainda não entendo, uma pulsão que grita para sangrar e por isso escrevo, continuo.

Talvez lá pela última frase algo aconteça.

Não sei se verei a Bossy de novo, apenas escrevo as coisas em tempo real.

Papai que quis ficar com a filhinha.

Que merda. Eu fujo, mas tudo deságua nela: sweet Lady Clara.

A infância que se perdeu, a adolescência que não sei se houve. Talvez todos morram no fim, um incêndio consuma tudo. Mas ainda não sei como se chega lá. Ou sei, mas não sei que sei. Ou dói demais saber que eu possa saber, e por isso me enrolo para terminar esta merda de história.

E contar como termina a história da pequena Clara.

Ou de Maria, a mãe, cujo sorriso de dor rima com esta música. Com este asilo. Com esta chuva, que parece diminuir agora, enquanto os trovões seguem. Lembro que logo que conheci a Bossy tinha sonhado com Maria, a mãe, apontando um revólver para Claudius, Doutor Abusador, e houve um estouro, muito, muito alto.

Não sei se pegou em Claudius, não sei se pegou em... Jonas.

Em minha mente de péssima criadora, talvez tenha pensado que Jonas tenha algum problema mental. Isso tem alguma coisa a ver com o tiro? Ele era mais devagar, vivendo em seu mundo. Como algumas das pessoas que habitam A Casa. Presas em seu sonho.

Como eu, pensei agora.

Por que lembrei do sonho agora?

Por que a chuva parece diminuir?

Um incêndio e uma chuva.

Meu deus, é assim que termina?

Ainda ouço a música, não o piano, não hoje. Mas escuto e ela se comunica comigo. A trilha do asilo e um céu cinza, lindo como uma cachoeira de sangue escorrendo de um braço muito branco. O sangue que insiste em viver.

O abismo se aproxima. A chuva diminui.

Presos dentro do sonho. Sei como termina esta história, mas dói demais saber que sei. Sarah e esses psicanalistas do inferno. Mas no dia de hoje cheguei o mais perto que consegui, como acho que sempre chego.

Encontrar um sentido na dor.

Stay negative, ele dizia. Sorrimos e abençoamos. Estamos entre nossos iguais.

Feliz aniversário, Peter.

16:58