sábado, 2 de julho de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 200

#ProjetoBorboleta #ProjetoFitaPreta


2 de julho de 2016

02:23

Estamos descendo pela madrugada, onde sou a Rainha do Castelo, e ninguém para me impedir de escrever, de sangrar, chorar, sorrir, voar, porque são verbos irmãos neste mundo da criação e da loucura, e ninguém vai me impedir. Não agora. Faz quase um mês que não escrevo, e você que me lê sem que eu saiba, você que só existe em minha imaginação de péssima escritora, já sabe: não ia mais escrever nada aqui, e talvez Clara e Maria morressem para sempre, nos confins do meu inconsciente, naufragando sem vestígios, feito um sonho que acabou antes de começar.

Alguém ia sentir falta?

Alguém ia sentir falta de Maria, a louca que escreve trancada no quarto, voando e cortando feito giletes literárias no vazio das madrugadas, igual à poesia?

Giletes.

Acho que elas me fizeram escrever.

Acordei ontem com uma borboleta desenhada em meu braço, e com o dizer: te amo.

Não sei como ela veio parar aqui, mas como não sei nem qual é o meu nome inteiro, nem como vim parar neste lugar, e talvez sim, escreva e escreva e escreva para inventar uma história, que nem história é, e talvez descobrir uma pegada que se evaporou no clarão da memória sobre como vim parar aqui... Uma borboleta não é nenhum terremoto.

Não comentei com ninguém. Caminhei pelo pátio, pelos corredores. Nada. Até que comecei a notar alguns olhares das Garotas da Fita Preta. Enquanto eu passava por algumas garotas, separadas umas das outras, pingadas pelo pátio, com fitas pretas no braço esquerdo, sobreviventes da ala das Meninas Que Voam Pelo Muros, e frequentadoras da ala das Meninas Que Se Cortam, vi que algumas me olhavam e apontavam, discretas, para meus braços. É claro, está frio, e não saí com meus braços de fora, mas puxei um pouco as mangas porque ali pelo meio do dia esquentou um pouco e porque, talvez inconscientemente, sei lá, quisesse que a autora da borboleta se denunciasse. Já sabia do Projeto Fita Preta, mas não entendi essas borboletas – vi que mais garotas tinham borboletas nos braços –, se é que elas tinham algum significado, neste asilo onde nada é o que parece ser.

Até que alguém disse: Projeto Borboleta. O quê? me assustei.

Uma garota com a fita preta, morena, magra, de cabelos lisos, talvez recém saída da adolescência, que eu nunca tinha visto, disse que aquilo era o Projeto Borboleta.

O que é isso? perguntei. Não sei de nada disso, apenas acordei e essa borboleta estava aí.

Ela sorriu e me chamou de anjo.

Anjo é a denominação das Meninas Que Voam Pelos Muros, dos anjos querendo voltar para casa.

Me arrepio quando escrevo isso.

E quase tenho vontade de chorar, mas pode ter sido apenas saudade. Sei que ela me disse:

Sempre que a gente tem vontade de se cortar, desenha uma borboleta no braço. E não pode deixar essa borboleta morrer; a gente tem que cuidar dela, só pode deixar ir embora se sair no banho. Às vezes a gente coloca um nome na borboleta, e oferece para alguém, tipo assim: não me cortei por você.

E ela puxou a manga para eu ver melhor sua borboleta.

Estava escrito: Cris.

Quando escrevo isso, sim: tenho vontade de chorar. Ela me diz que às vezes se cansa de ser forte, de fingir que está tudo bem, e dá vontade de recair, mas que conheceu outra garota que colocou suas borboletas em um cartaz. Para cada dia sem se cortar, uma borboleta.

Tem uma garota que está completando um ano aqui. Então talvez eu também consiga.

Um ano sem de cortar?

Só por hoje, Maria.

Sei lá por que pensei em Claudius.

Como sabe meu nome?

Ela sorriu.

A gente se conhece só no olhar, anjo.

E passou a mão pelo meu rosto. Pegou no meu braço, leu a frase e disse:

Você é importante para alguém, Maria.

E sim, tive vontade de chorar de novo.

Me senti em casa, depois de muito tempo.

Se eu tivesse uma borboleta, feita por mim, que nome ela teria?

Sorrio.

E me arrepio quando penso nisso, e sorrio agradecida.

Uma borboleta.

Linda, a mais linda de todas as borboletas deste lugar. Vou cuidar dela e não, não vou deixar ela morrer. Um dia de cada vez. Uma borboleta linda.

Com o nome de Clara.

02:55

terça-feira, 7 de junho de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 199


Terça-feira, 7 de junho de 2016

22:55

Faz frio no asilo. Tem feito noites frias e hoje um garoto está de aniversário. Ele é da cor do mogno e tem os cabelos crespos. Ouvi ele dizer no corredor “leiam o Édipo”, então percebi que ele é mais um desses perturbados que gostam do velho tarado. Ele veio para mim e pediu um cartão de aniversário. Faz tempo que não escrevo cartões, pensei. Aliás, faz tempo que não escrevo nada, e eu que jamais soube escrever fico ainda mais enferrujada a cada dia que passa. Mas vamos lá, vou tentar, disse.

Seu nome é Arlequim. Não sei se ele comemorou com alguma das minhas irmãs-zumbis neste lugar onde o tempo não chega. Ele é amigo do Garoto Skinner, que me disse que as brigas políticas continuam do lado de fora deste muro. Se eu estivesse lá fora, disse Skinner, ia nas passeatas para derrubar este governo.

Ele já foi um revolucionário, me disse.

O caso é que Cris me contou que não quer mais morrer.

Confesso que isso, por si só, já valeria eu escrever qualquer coisa.

Soube também do Projeto Fita Preta. São as pessoas que já tentaram se matar ou se cortaram demais e andam com uma fita preta no pulso esquerdo. Tipo assim, para se identificarem. Como uma irmandade das Garotas Que Voam Pelos Muros. Notei algumas garotas com fitas pretas nos braços caminhando, mas achei que fosse apenas moda. Não um código. Garotas que já tentaram passar para o outro lado. E me volta a ideia de que tenho que conduzir essas garotas rumo ao outro lado do abismo. Porque a dor delas é a minha dor.

A dor de Maria, a mãe.

A dor da pequena Clara.

Garotas da Fita Preta.

Será que já usei uma dessas fitas?

Olho para as cicatrizes em meus braços.

Cris não quer mais morrer.

Eu também não.

Hoje, não.

Cada palavra que escrevo, pensei agora, poderia ser um corte a menos. Poderia ser um corte a menos para elas. Penso em ir na ala das Garotas Que Se Cortam, passar por esses corredores e suas grades e dizer:

Escrevam, garotinhas. Escrevam até a dor passar. Escrevam até que a dor faça sentido. Escrevam para voar. Não pelos muros, mas pelo papel, pelo teclado. Cortem pelas palavras.

Talvez ainda exista algo para eu fazer neste asilo. De novo, a história perdida de Clara me chama. Tenho que continuar escrevendo esta merda sem sentido até chegarmos do outro lado.

Soube que houve um estupro coletivo do lado de fora destes muros.

Claudius deve ter seus seguidores.

Espero que todos queimem no inferno.

Lentamente.

Feito um corte que não pode parar.

Mas hoje penso que pode ser parado.

E a fenda, neste vale de Garotas Com Fendas, pode ser um caminho para uma vida nova. Não pelos cortes, mas um caminho: sem dor.

Cris não quer mais morrer, minha menina linda. Como Clara, minha menina linda.

Filha amada.

Por que este Arlequim disse para lermos Édipo?

Não sei. Talvez ele tenha visto em alguma das aulas de Sarah.

Não importa. Está frio, e a umidade invade cada canto deste asilo.

Em algum lugar perdido no tempo, Maria toca para a pequena Clara.

Fendas, nunca tinha pensado, podem ser um espaço em branco esperando ser preenchido.

Pelo fim da dor, conduzindo as Garotas da Fita Preta até sua paz.

E se for por isso que passamos tudo que o passamos, garotas: vai ter valido a pena.

23:18

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 198



Quarta-feira, 11 de maio de 2016

01:58

Uma nova madrugada. Sou a rainha soberana do meu castelo onde todas dormem. A porta está fechada. Lembrei e agora registro: Sabby estava envolta em uma nuvem de fumaça negra. Ela parecia caminhar pelo corredor de paredes altas de uma das alas daqui. Estava calor. Muita fumaça, muito negro, comecei a me sufocar e ela disse:

Fale mais do incêndio, Maria.

Levantei da cama em um susto, acordei com o coração batendo e batendo. Mas havia silêncio. Como se todo mundo tivesse morrido. Era de madrugada e não pensei em maiores significados para aquilo. Sarah provavelmente diria que o incêndio era um símbolo, esses psicanalistas do mal sempre querendo nos enlouquecer.

Ontem o Garoto Skinner, que se interessa por política, disse que do lado de fora destes muros estão querendo derrubar o governo, fazendo passeata para impedir um golpe de Estado. Não sei, como alguém pode se preocupar com isso quando estamos confinados neste fim de mundo?

Talvez ele também ache que um dia vai sair, e talvez até tenha uma família esperando ele do lado de fora.

Será que eu tenho alguém me esperando?

Será que, se tiver, alguém sabe que estou aqui ou fui abandonada por todos?

Não sei. A escrita sai difícil, quanto mais fico sem escrever esta merda mais difícil fica seguir em frente. Pelo menos ninguém vai ler essas bobagens – então para que se importar? Para que se importar com qualquer coisa quando nem tenho certeza de em que ano estamos. Mas coloquei a data aqui.

Não posso estar tão perdida.

Não.

Sorrio.

Não posso estar tão perdida.

E sei lá por quê, mas Sarah me disse que era só para escrever, captar meus pensamentos em tempo real, pensei naquela historiazinha que jamais chega em lugar nenhum. Pensei em Maria, a mãe. Que vivia sendo espancada por Claudius. Pensei em me matar algumas vezes, mas hoje não. Hoje não, como talvez Claudius tenha dito em algum daqueles grupos em que ele ia, antes de voltar a beber depois de dez anos em abstinência. Hoje não.

Maria, a mãe.

Mamãe linda.

Maria, mãe de Clara.

Maria quis fugir.

Me arrepio quando escrevo isso. A coisa está voltando.

Maria quis fugir com Clara e Jonas para longe de Claudius. Maria deve ter dito, vamos meu amor. Vamos, Clara. Jonas, ande logo. Vamos, vamos. Para onde vamos, mamãe? Não sei, mas vamos embora. Para outro lugar melhor. Vai dar tudo certo, meus amores. Vamos embora. Nós vamos voltar, mãe? Não. Não? Eu não quero voltar. Papai vai nos buscar? Não se a gente for rápido. Papai sabe que a gente vai embora? Vamos logo. Mãe, estou com medo. Vai dar tudo certo, vamos embora. Estou com medo, mãe. Vem comigo, Jonas. Leve sua irmã. Mãe, quero pegar minha boneca. Eu te compro outra, Clara, vamos embora. E meu sapo, mãe? Outro dia a gente volta para buscar, Jonas, agora vamos embora. Vamos embora, merda.

Então Claudius chegou em casa.

Posso quase sentir o cheiro de álcool daqui.

Claudius e Maria começaram a discutir. Claudius levantou a voz, xingou Maria.

Depois empurrou ela.

E então...

E então...

Ó meu deus.

E então...

Começou um incêndio.

02:21

terça-feira, 26 de abril de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 197



Segunda-feira, 25 de abril de 2016

23:10

Mais ou menos um mês que não escrevo. Me aqueço aos poucos. Choveu e choveu, pensei em escrever, a chuva sempre convida. O tempo está mudando, o frio de volta. Algumas garotas estavam comentando no corredor que do lado de fora destes muros está havendo uma guerra política, parece que querem tirar o presidente ou a presidente, falaram em uma revolução, e me toco que não tenho certeza de em que ano estamos. Não que faça muita diferença, porque tenho que fazer alguma coisa com esta vida da qual não lembro e se não lembro também ignoro o tempo em que estou aqui.

Como vim parar aqui, quem me mantém. A quem importa que eu esteja aqui. Já tive alguém lá fora. Sei que tive. Tenho saudades, tantas que me fazem olhar para meus braços e percorrer com os olhos devagar o caminho de algumas cicatrizes.

Aliás, andei por aí neste asilo sem fim. Fui, mesmo sem avisar para Sarah, até algumas outras alas. Talvez ela saiba que fui lá escondida, esses psicanalistas do inferno não dormem no ponto. Conheci mais das Meninas Que Se Cortam, e algumas Meninas Que Mataram. No começo, me trataram com indiferença, como se eu tivesse que dizer a senha para entrar no clube. Mas assim que mostrei meus braços, elas assentiram com a cabeça.

Seja bem-vinda, anjo.

Talvez escrevesse sobre elas, pensei na hora, e na verdade penso que escrevo não mais para mim, mas para as outras Garotas Com Fendas desta terra, que são várias. E por algum motivo, nos encontramos.

Como voltar para casa, não posso deixar de registrar.

Como sempre, não tinha nada para escrever, como nunca tenho, jamais tive, e esta mágica estranha da livre associação começa a movimentar meus dedos. E algo acontece. Escrevo possuída.

Talvez por um anjo, se for possível.

É assim que as Meninas Que Voam Pelos Muros se chamam: anjos.

Esperando voltarem para casa.

Falei com Cris hoje. Ela está melhor. Não quis mais voar pelos muros, e confesso que fico mais aliviada em saber disso. Tenho visto pouco as outras, mas Dafne perguntou se eu estava escrevendo, a pintora – e agora mãe – dos dedos magros que parece que vai se quebrar no meio, assim como Acácia, ela também, o sorriso da inocência, da dor travestida de doçura. Sabby, a garota com pele cor de leite desnatado e cabelos longos como feitos de um tapete, e que também escreve para preencher suas fendas. Cheshire, o sorriso da loucura em volta do chafariz, o Garoto Skinner, alegre e feliz como todos os gordinhos.

Até esqueci que no fim das contas tudo volta para ela: a pequena Clara.

Estou enferrujada, não sei mais o que escrever, mas lá fora venta, ouço trovões se aproximando, talvez mais chuva, então devo continuar escrevendo.

A dor vai ficando para trás, porque ela some, mas volta, e porque volta, tenho que escrever até o fim desta história que nem história é.

Claudius de aniversário, pensei agora. Maria, a mãe, Lara, a cunhadinha. Seus filhos Clara, Jonas e – mesmo que ninguém soubesse – Marcos. Quem mais? Colegas médicos, talvez. Não sei detalhes, Maria, Péssima Escritora. Mas ele comemorou seu aniversário e talvez, por um dia, não tenha havido desgraça naquela casa. Um só, mas já é um começo.

Brownie está de aniversário no fim deste mês, deve ter ficado no meu inconsciente, que imagino ser o celeiro de onde sai tudo o que escrevo. Penso no cheiro de infância que a garota que anda em slow motion produz quando faz seus doces.

Maria, a mãe, escrevia? Ela contava histórias para Clara. Clara escrevia, contava histórias?

Seria uma bonita fotografia, não? Ambas lendo e contando histórias uma para a outra. Tocando piano e contando histórias em volta da lareira, aproveitando que o frio está voltando. Uma história depois da outra.

Tipo essa que estou tentando inventar.

Suspiro.

O abismo se aproxima de novo.

Meus braços doem. Minha coluna também.  

Acho que houve um incêndio. Me perguntei quem me banca aqui, algumas linhas atrás.

Pensei, e não me pergunte de onde tirei isso, Sarah disse que era apenas para escrever, sem pensar, sem omitir nada, mesmo que parecesse bobo ou absurdo, aliás, o velho tarado diria que era para falar especialmente se achasse que era irrelevante, então lá vai: alguém pode ter morrido, alguém que tinha bastante dinheiro, e como herança devo ficar aqui até me lembrar, talvez até eu tenha matado alguém, ou alguém ligado a mim morreu, e sei lá por que um dinheiro apareceu para me manter neste lugar até eu encontrar o que me trouxe aqui, e não sairei até terminar esta história.

E a pequena Clara tem a ver com isso.

Touché, Sarah.


23:42

domingo, 27 de março de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 196




Domingo, 27 de março de 2016

00:00

Dizem – porque perdi contato com o mundo lá fora faz algum tempo – que hoje é Páscoa. Ovinhos, chocolates, coelhinho – memórias da infância que não lembro. Cris, que está por perto lendo algum trecho de livro – sim, a única que deixo ficar por perto enquanto escrevo – disse para eu escrever hoje. O trato é sempre o mesmo: eu escrevo, nem ela nem ninguém lê. Até porque não há o que ler. Não há história, não há nada.

Não há Claudius, não há Lara. E talvez não haja Clara, embora gostaria que ela houvesse. Sim, gostaria que essa garotinha linda acontecesse. Vingasse, como no conto do Machado de Assis.

Lembro vagamente de ter cogitado de eu ter matado minha mãe e ter vindo parar aqui, quando falei nas garotas das Alas Gradeadas. Mas algumas delas, em algum surto, podem ter matado as filhas.

Sinto vontade de chorar. E se eu já tive uma filha e matei, ou tentei matar, ela?

Será que essa busca frenética pela pequena Clara, no fundo, é um símbolo disso?

Sarah me contaminou com suas aberrações psicanalíticas – mas e se for algo parecido com isso?

De novo, a história se afunila.

Maria Encurralada.

Sei que o outono começou há alguns dias, e isso é bom. Não gosto de calor. Talvez o fogo do inferno, ou o fogo do incêndio que me volta de tempos em tempos e que talvez seja o fim desta história, tenha a ver com isso.

Um incêndio em um dia de chuva.

Ouvi dizer que existe por aqui uma ala especial, ou um canto especial, para as Garotas Que Se Cortam, e já ouvi dizer que elas são muitas. Como uma tribo. Talvez nem seja um lugar especial para elas, mas acho que elas se reúnem e se comunicam  feito maçons suicidas – e que o passe é ter cicatrizes nos braços.

Eu tenho. E tenho queimaduras. Acho que em algum momento eu pertenci às Garotas Que Voam Pelo Muros, e as Garotas Que Se Cortam.

Mas será que já tive uma filha, e se tive, o que aconteceu com ela?

Maria Que Não Sabe O Que Escrever.

Maria, a mãe, vivia internada em hospitais – talvez em um lugar parecido com este. Maria tomava remédios. Se algum dia ela tomou mais do que devia e quis voar pelos muros, para o Grande Salto Sem Volta?

Meu deus, acho que sim. Talvez ela não tenha aguentado a dor de saber que o marido comia a maninha, abusava da filhinha e... o que mais? Precisa haver mais do que isso? Talvez haja mais, sempre existe algo mais nesta história de gato e rato que nunca chega a lugar nenhum. Mas que aos poucos, bem aos poucos, avança rumo ao penhasco. E ainda não decidi, como talvez Maria, a mãe, tenha mudado de ideia na última hora, se vou pular também.

Talvez não.

Hoje não.

Hoje eu só queria sonhar com a pequena Clara descobrindo um ninho cheio de ovos de chocolate em uma cesta de palha no boxe do banheiro no domingo de manhã e Jonas descobrindo outro cesto debaixo do tanque na área de serviço. E Marcos, que depois iria passar o feriado com os primos, também ganharia uma barra de chocolate, quem sabe todos ganhariam ovos recheados com amendoins, pintados e decorados com fitinhas por Maria? Parece um final melhor para um feriado, e se esse feriado já teve momentos ruins, em minha história – já que sou a dona dela e escrevo o que eu quiser – eles foram apagados. E ficamos apenas com os sorrisos das crianças, e seus dentes pretos de chocolate e se isso for um pedaço do céu, porque deve ser mesmo, então é assim que quero terminar minha história.

Feliz Páscoa, meus amores.

00:25

terça-feira, 15 de março de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 195


Terça-feira, 15 de março de 2016

A porta está fechada. A dor volta. Ela tem voltado porque parei de escrever esta merda – quase um mês que não escrevo. Esta história me adoece, mas adoeço ainda mais quando não escrevo. Maria Que Precisa Seguir Em Frente. A Garota Bossy, a Rainha Que É Tão Frágil Que Um Vento Poderia Partir Ela Ao Meio me parou no corredor outro dia e ordenou: escreva. A Garota Cheshire, o sorriso da loucura, perguntou por que não tenho escrito. Não tenho nada para escrever, como nunca tive, desde a primeira frase que escrevi neste pesadelo.

Mas o pesadelo tem que acabar.

Estaremos perto do fim?

De descobrir como afinal termina a história da pequena Clara, Maria, a mãe, tocando para sua garotinha, Dr. Abusador Claudius, Titia Putinha Lara, Marcos, Jonas. Quem mais? Acho que esse é o núcleo daquela família.

Mas aqui há a ala das Garotas Que Voam Pelos Muros. Não sei por que escrevo isso, se estava pensando em Clara. Talvez porque descobri que por aqui há mais lugares que eu não conhecia. Não conheço a história de Clara, não conheço os confins deste asilo. Há outras alas, gradeadas, para gente mais perigosa, acho que aquela presidiária que chamava Cris de Monique veio de lá. Não sei bem o que escrever, mas sei que há outras alas por aqui, e não sei como falar disso. Não sei descrever, mas este lugar é maior do que eu pensava.

Bem maior.

As Alas Gradeadas, na falta de um nome melhor.

Garotas Que Mataram.

Garotos, talvez.

Essa história começa a se afunilar. Talvez a loucura que conheci seja apenas uma pontinha do mais que há aqui. Talvez a loucura mansa que conheci tenha sido levada até o lugar onde as grades afastam as loucas perigosas das loucas mansas. Poderia ser uma Ala das Garotas Perigosas. Mas talvez não sejam mesmo perigosas. Sarah me mostrou um texto em que conta a história de como um tal de Pinel associou a loucura com periculosidade, porque na Antiguidade ser louco não era ser perigoso; depois veio o ser louco é ser mau, ser do diabo, e todo aquele papo de tocarem fogo nas pessoas para acabarem o mal.

De novo, o incêndio me volta a mente. O incêndio que talvez seja o fim da família de Clara. Claudius bem que poderia ter morrido carbonizado. Mas não sei como isso aconteceu, se é que aconteceu. Ou não sei como vou conduzir esta história a um fim desses, Maria, péssima escritora.

O que as garotas fizeram para irem para a Ala das Grades, dos corredores pintados com poesias, loucura tatuada nas paredes, como já ouvi falar?

Mataram as mães?

Ó, meu deus, mataram as mães?

Mereceria eu ir para uma ala dessas?

Será que eu matei a minha?

Queria chorar, mas não consigo. Estou paralisada, o ar entra e sai com dificuldade, a dor vai e volta, arranhando, sangrando, e hoje não há como cicatrizar, não há como parar, puta que pariu.

Será que todo esse tempo... foi assim que vim parar aqui?

23:30