quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Isis & O Grito

Quase no fim do mês das vocações, a internet foi pro espaço de novo, uma ex-colega minha morreu esta semana, minha progenitora foi para o Leste Europeu hoje e amanhã teremos, quem diria, entrevista para emprego em outra cidade. Enquanto isso, um pouco de ficção para matar as saudades, outro conto da Isis:


Knoc, knoc, bateram na porta de Isis. Detestava o som de porta batendo, knoc knoc, não ia atender. Sempre nas horas erradas, nunca quando mais se sentia sozinha e queria companhia. Podia ser alguma coisa importante, não, devia ser o vizinho altista querendo vender seus quadros pintados com a boca, ou então mais uma conta, knoc knoc. Isis levantou da cadeira, passo rente ao chimarrão que pretendia tomar e entrar em contato com o Deus Vazio, e caminhou até a porta da sala. Suspirou, tentando não parecer irritada por emergir do fluxo constante de pensamentos nos quais estava mergulhada. Esboçou sua cara de paisagem e abriu a porta.

— Oi.

Era a Bebel Puft.

— Oi, Isabel, disse Isis, com ares de surpresa.

— Posso entrar?

Isis deu espaço para que a mulher grande que no dia anterior a tratara tão mal pudesse entrar. Perguntou se ela queria sentar, Isabel disse que não. Disse que ia ser direta. Isis colocou a mão por sobre o estômago mais uma vez. Aquela frase nunca era seguida de coisa boa, mas Isis não tinha mais como fugir. Estava em sua própria casa, e não podia sair correndo pela porta da frente. Ou podia? Seria uma boa ideia, talvez a impedisse de ouvir o que ela temia ouvir, mesmo que não tivesse a menor ideia de por que Isabel a estava visitando, ela que jamais vinha em sua casa.

— Acho que eu não fui legal com você ontem.

Isis disse que tudo bem, às vezes a gente tem uns dias meio estranhos mesmo.

— Tem uma coisa que eu queria dizer.

Isis trancou a respiração. Aquela frase também não era prenúncio de boas novas.

Geralmente não era.

— Lembra do Marcos?

Os polos dentro de Isis se deslocaram.

— Qual Marcos ? perguntou ela, com naturalidade.

— O seu ex.

Isis fez que sim, ainda com naturalidade.

— Sim. Foi o último homem com quem fiquei, antes de me tornar – como você me chamou ontem? – sapata.

— É verdade que vocês eram noivos, estavam até com o casamento marcado?

Isis disse que sim, mas aquilo fazia muito tempo.

— Vocês acabaram por que ele ficou com a Marylin, não foi?

Isis sorriu, disse que nem lembrava direito. Perguntou se Marylin era uma loirinha. Isabel disse que sim, a rainha do colégio. Isis, com desinteresse, disse que tinha se lembrado, é, foi por causa disso mesmo.

— Tem uma coisa que você precisa saber.

— A Marylin é lésbica?

Isabel fez que não. Estava com expressão grave. Ela caminhou de um lado ao outro da sala, percorrendo o olhar pelo sofá branco, talvez na tentativa de encontrar as palavras para dizer o que viera ali para dizer.

— O que foi? A Marylin morreu?

Isabel fez que não, ainda hesitando. Disse que tinham feito uma aposta. Ela e as gurias, as gurias da fotografia que Isis tinha ido procurar em sua casa, no dia anterior. Isis perguntou que aposta.

— Que Marylin não seria capaz de beijar o Marcos, um beijo de cinema, na hora em que ele estivesse esperando você sair do colégio.

Um instante de silêncio.

— Quer dizer que ela não era amante dele?

— Não.

Isis passeou os olhos pelo tapete da sala. Deu de ombros. Disse que bem, aquilo tinha sido há muito tempo, era passado, não tinha mais importância. Então perguntou se Isabel aceitava um chá, ela disse que sim, e Isis foi até a cozinha, colocou água na chaleira e a pousou sobre o fogão, que fez uma coroa de fogo embaixo dela, e Isis pediu licença, disse que precisava ir ao banheiro. Antes de entrar ali, olhou para o quadro O Grito na parede do corredor. Então trancou a porta, com cuidado para não ser ouvida. E finalmente entendeu o que Edvard Munch quis dizer. Isis não tinha voz, colocou a mão sobre as têmporas e quis gritar tão alto que as paredes a seu redor iam se entortar, derreter com sua fúria, num lago de fogo, tal qual inundadas por um vulcão, a lava da raiva e da dor, malditas sejam, filhas da puta, arruinaram sua vida por causa de uma aposta estúpida, e para quê? por que tudo aquilo? E Isis se curvou, também queria se atirar da ponte, mas não havia ponte, apenas o banheiro e seu espaço de cápsula, nada além daquela gorda nojenta a esperando na sala. Também era um personagem andrógino querendo gritar, porque Isis era homem, era mulher, mas se fez de mulher andrógina porque passou a vida a odiar os homens depois de depositar a promessa de uma vida, o sonho de casar e ter sua própria família, nas mãos do homem que a estava traindo com a Rainha do Baile, a putinha que todos no colégio queriam, e todos no colégio, ou todas – invejosas, recalcadas, assassinas – estavam rindo da sua cara, da sua ingenuidade: se derreter por um homem que estava colocando galhos e mais galhos em sua cabeça, uma vida que acabou antes de começar. E agora, depois de anos, ela descobre que seu ex-noivo, ex-quase-marido, ex-futuro-pai-de-seus-filhos, que jurou pela memória de sua vó que jamais a tinha traído, aquele cara: era inocente. As pessoas apagadas que estavam observando o personagem de longe provavelmente eram as suas amigas, rindo de sua cara ao observarem sua miséria a distância.

Isis saiu do banheiro e colocou a água, quase fervendo, na xícara. Colocou as ervas do chá a boiar e pegou um prato para cobrir o vapor e impedir que as propriedades medicinais fossem embora. Um laxante com gosto de hortelã, tiro e queda. Depois de alguns minutos, tirou o prato e, com cuidado uma vez mais para não fazer barulho, cuspiu sobre o chá e mexeu com a colher. Levou a xícara para a sala, perguntando a Isabel se ela preferia açúcar ou adoçante, ao que ela respondeu:

— Adoçante. Não quero engordar.

Isis sorriu e esticou a xícara para ela, o adoçante e a colher. Isabel tomou o primeiro gole. Agradeceu pelo chá.

— Então, sem ressentimentos? perguntou ela.

— Claro, sorriu Isis. Sem ressentimentos.



2 comentários:

  1. Estou acompanhando com curiosidade e afinco a tua jornada em Taquara! Meus parabéns! Não te escrevo tantgo quanto eu gostaria porque estou vivendo essa vida equlibrista. Mas sempre no caminho da firmeza. Envio mais linhas na sequência. Abração

    p.s: não li o conto, ainda.

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  2. Tá, então deixa de ser preguiçoso e lê! :)

    Ah, não é Taquara, é Taquari. E a aventura continua.

    Grande abraço, e manda notícias do front.

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