sábado, 2 de junho de 2012

Os Quatro Cavaleiros

Ano passado, RIP completou 18 anos. E hoje, 19 anos depois – e ainda escrevendo! –, decidi fazer a homenagem que fiquei devendo ano passado. O conto abaixo foi originalmente uma história de vinte páginas de word em espaçamento simples (quase cinquenta páginas de um livro) escritas entre 95 e 98. A versão abaixo, totalmente reescrita, foi composta em uma única madrugada de 2002, e rende pouco mais de duas páginas de word (falando em concisão...), e foi escrita para a versão original do Distantes Trovões. Sempre quis escrever contos com trilha sonora, mais por curiosidade do que por influenciar na leitura, mas para quem se interessa pelo processo de criação, tive as fagulhas iniciais do conto abaixo ouvindo as melodias de Older e, muito especialmente, Pilgrim. Acho que ele é um conto para ler em uma noite chuvosa. Ou pelo menos em uma noite de outono, como essas que estão fazendo. Uma singela homenagem às histórias de ação, a quem serei eternamente devedor, antes do vigilante RIP se tornar gente grande, com seus conflitos de vinte e poucos e de trinta e poucos, e reencarnar nos dois protagonistas das duas narrativas longas que escrevi anos depois.

Bom, it’s show time.


OS QUATRO CAVALEIROS

Um trovão. O céu e o inferno ameaçam abrir suas portas, e o barulho que se segue indica que os portões serão escancarados. A Terra treme junto com o ruído, casamento de bomba e terremoto. O estrondo causado pela descarga de eletricidade atmosférica funde-se com o estrondo causado pela descarga da moto de RIP. Os dois carros, um de cada lado, permanecem na velocidade da luz, reforçada pelo clarão que rasga o céu negro. Uma tempestade cai sobre a Cidade do Conde.

A ventania briga com a moto e os carros, dando passagem ao mais rápido. Jonah, Zaz, Luke e Traque: os Quatro Cavaleiros em seus carros-cavalo correndo para espalhar a ira de Deus sobre a Terra. RIP, o messias a quem deveriam dar uma coroa, é quase esmagado pelos veículos a sua volta. Ele freia, os carros aceleram, a briga persiste. A fúria do tempo também. A rua é castigada por um ensaio de vagalhões, o vento parece querer levar o asfalto consigo. Jonah, o motorista que guia o carro-cavalo vermelho, grita para Zaz ao seu lado, que pega a espingarda e atira no messias. RIP tenta desviar a moto, a água do temporal se transforma em óleo sobre a pista. Todos dançam, assumindo a coreografia assustadora. Não há controle sobre a inércia. A luta muda: precisam de equilíbrio. A oscilação significa morte. A Morte, a quem chamavam Traque, o líder Traque, cruza o braço frente ao motorista Luke, disparando contra o motoqueiro. As balas despedaçam o vidro do carro-cavalo vermelho do outro lado da rua. Guerra. Uma chuva, mais intensa que os pingos que caem feito cachoeira, é iniciada. Tiros, tiros e tiros, tiros que caem feito pingos, tiros que são cachoeira de metal e pólvora. Balas perdidas que procuram um refúgio. RIP ziguezagueia entre os cartuchos e a água. A calçada se faz presente. Ele empina sua moto, pulando sobre o meio-fio. As balas o perseguem. Janelas são despedaçadas, os estilhaços aterrizam nas poças d’água.

No começo, Melissa e Grudi, os namoradinhos, vieram caminhando pelas ruas desertas. Deviam estar perdidos, do contrário não estariam ali. Seus passos eram cansados, quase sofridos, desmotivados. Andarilhos namorados. Em silêncio. Rumavam para a esquina. Uma chuva forte estava para começar.

Eles olharam para o outro lado da rua, onde estávamos nós quatro. Suas expressões não conseguiram disfarçar o terror que sentiram. O pânico foi tamanho que sequer conseguiram gritar. Contudo, continuaram caminhando. Aquela era a única passagem possível, não haveria como não passar por nós. Ali se deu o primeiro trovão da noite.

O dilúvio aumenta. Tudo escurece ainda mais, as trevas envolvem a rua, fazendo desaparecer RIP e os Quatro Cavaleiros. Ninguém enxerga ninguém, apenas sabem que estão ali pelo ensurdecedor barulho que fazem. A sua frente, a visão se faz nublada, mentirosa. Nada é visto. A velocidade se agiganta até o infinito. E como cegos correndo em direção ao penhasco, a luta permanece sem tréguas.

Traque grita com Luke, “mas nós somos quatro, ele é apenas um”. Luke diz que ele é diferente, que ele é louco e pergunta da Esquina do Lamento. “No Natal?”, quer saber Traque. “É, perto da Esquina do Lamento, no Natal”, Luke está desesperado. Traque diz que se lembra, Luke diz que foi ele, RIP. “Os jornais disseram que foi um acerto de contas, alguma coisa com gangues”. “Mentira, mentira, foi ele”, Luke está histérico, mal consegue manter a direção do carro. Os tiros recomeçam.

Quando pegamos o casalzinho, Grudi foi quem mais tentou resistir, logicamente, querendo defender a namorada. Melissa tinha uns vinte e cinco anos. Arrancamos a camiseta dela, uma camiseta branca que transparecia os abastados seios, um detalhe que atiçou nossa curiosidade. Ela estava chorando, agora sei, seus olhos boiavam na água, mas pensei ser apenas um estranho efeito da chuva que recém começava sobre seu rosto. Às vezes – e às vezes, muitas vezes – isso pode acontecer. Sua maquiagem escorreu sobre o pescoço e depois os seios nus, mas pensei que fosse a chuva, só isso.

Algemamos os dois em frente ao beco, perto dos sacos de lixo. Ouvimos um barulho de moto e nossa atenção foi desviada. Foi então que ele apareceu.

Jonah, em seu cavalo vermelho, dá a ordem. Zaz aponta a espada na escuridão. E atira. Os sons se confundem, impossível saber o que está sendo atingido. Como num sonho, tudo acontece rápido e lento, como um milhão de fotografias vistas em um segundo. Vindo do nada, ou detrás da neblina, um ônibus. O cavalo vermelho se espatifa, fundindo metal e carne humana.

RIP freia. Seus pneus param, mas a moto não. Entre o atrito com o asfalto e o deslizar sobre a água, ele tenta se afastar de ambos. Cambaleia. Treme. A moto diz a ele que vai se quebrar ao meio. Implora. Fecha os olhos. Tudo ao seu redor gira em torno de si. RIP não vê, mas ouve o barulho de outro carro chocando-se contra uma parede de vidro. Outra chuva, agora branca, cai sobre o asfalto, feita de minúsculos pedaços de cristal. O motorista Luke não mais respira.

E então, ele disse olhando para o céu:

— “Eu sou o Alfa e o Ômega. Mas só nos traga de volta se formos dignos de continuar vivos”.

RIP arrancou em sua moto. Quem voltasse primeiro ficaria com os namorados, essa era a aposta. Depois disso, eu não ouvi mais a sua voz. Aliás, ouvi sim. Mas apenas mais uma vez.

Traque inspira mais sangue do que oxigênio. Sua mente confunde as informações, não mais distingue alucinação de realidade. Um espectro vindo da mesma neblina em que há segundos estava, se aproxima. Um espectro de longos, lisos, negros e bem cuidados cabelos. De cavanhaque e óculos escuros. “Vai me matar agora?”, pergunta ao espectro. Ele balança a cabeça, sorrindo. “O que pensa que eu sou? Um assassino?”, responde RIP. E completa:

— Eu quero que você transmita um recado meu.

A luta parece terminada. As sirenes crescem, polícia e ambulância se aproximam ao longe. RIP pega as chaves ali perto e solta as algemas, libertando Melissa e Grudi. Desaparece. Menos de um minuto depois, a rua é cercada. Pessoas de branco, que mais parecem fantasmas do que médicos, seguram e retiram Traque com cuidado, esperando a maca. “I-isto é”, ele balbucia. Gritos e choros. Os curiosos dificultam o serviço. “Isto é”, diz Traque. Seu tempo está se esgotando. A maca se aproxima, seus condutores tropeçam. Um policial diz que o homem ali deitado parece estar querendo dar um recado.

— Is-to... Isto é apenas o começo.

Foram minhas últimas palavras. Ali terminava a saga de Jonah, Zaz, Luke e Traque. A nossa saga. A Cidade do Conde havia ganhado um novo dono. Seu nome era RIP. Um messias maldito, um cavaleiro das trevas abençoado por Deus. Alguém cuja presença se mostrava tão confusa para mim quanto ainda é hoje. E para sempre talvez seja. Uma presença extremamente insegura, apesar de tudo. Mas não se pode negar, ele merece crédito. A sua promessa foi cumprida. Porque sim: aquilo seria apenas o começo.

3 comentários:

  1. Um beijo direto da biblioteca Clovis Vergara Marques!

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  2. Outro beijo, direto do escritório da Distant Thunders Administration!

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  3. Esse conto dá uma ótima música....Inspiração é tudo! Da mesma forma como vc utiliza a vida como ferramenta, eu utilizo seus contos para formar os acordes!

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