terça-feira, 25 de agosto de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 180


Terça-feira, 25 de agosto de 2015

20:45

Eu tive aquele sonho de novo.

Estava falando na rádio convidando todos a lerem a história de Clara, a história que não é história, que não é nada, que jamais será lida, e estava falando sobre o lançamento do livro que estou escrevendo, o absurdo dos absurdos, até que o entrevistador me perguntou de onde tirei essa história.

E então acordei.

Quase queria ter dormido um pouco mais para descobrir: o que eu diria?

Talvez aquilo que não consigo lembrar e que está perdido dentro de mim.

O grande sei lá o quê.

Que dói, mesmo que eu não lembre.

Ou não lembre que lembro.

Eu, Maria Que Não Lembra.

Sarah e suas paranoias estão me enlouquecendo.

Pensava nisso hoje quando assisti outra de suas explanações. Ela falava da tal Melanie. Quando tinha certeza de que ela não nos traria nada mais doente do que o velho tarado, ela me vem com a Melanie dos Seios Assassinos, dos filhos que arrancam os bicos dos seios das mães.

Seios destruidores.

Quase levantei e fui embora, até o momento em que ela disse que a criança depositava a raiva no seio, como sendo para a mãe, porque a criança tinha medo da aniquilação, e achei aquilo tão esquizofrênico quanto qualquer desses pervertidos psicanalistas (aliás, essa Melanie falava em um tal de esquizoparanóide, que devia ser um amigo imaginário dela), mas pensei, porque acho que Sarah fica largando umas charadinhas para eu pescar, tipo assim, é tudo inconsciente, e então pensei: será que Clara tinha raiva de Maria?

Aquilo silenciou meus pensamentos.

Na verdade, eles gritaram tão alto que silenciaram.

Ela falou em uma mãe com depressão e por isso ausente.

Meus pensamentos gritaram tão alto que achei impossível ninguém ter ouvido: mas ninguém ouviu. Apenas eu, que tive que vir aqui escrever, para o de dentro de mim, ou justamente do de dentro de mim. Fiquei pensando: Clara talvez tivesse raiva de Maria, a mãe, talvez a culpasse por ela não ter feito nada quando o papai quis brincar de boneca inflável com a filhinha, maldito seja. Me arrepio quando escrevo isso, mas não consigo parar. Esse é o veneno que Sarah injetou em mim, como a Melanie disse que o bebê injetava coisas na mamãe – e não consigo parar.

Meu coração.

Suspiro.

Maria, a mãe.

Mãe com depressão.

Vivia internada em hospitais.

Meu deus: talvez em lugares parecidos como este onde estou.

Maria que amava Clara. Que talvez não soubesse, não pudesse saber – mas uma mãe sempre sabe.

Tenho certeza de que existe uma conspiração para que eu escreva esta merda de história que ninguém jamais vai ler, e só escrevo porque sei que não será lida.

Ou talvez meu sonho tenha arrancado meu medo de ser lida. Meu medo de terminar esta história. De descobrir como termina a história de Clara.

Como vim parar aqui.

Blossom estava escrevendo escondidinha em seu caderno. O Garoto Skinner estava prestando atenção. Até parecia feliz em ouvir sobre a Melanie, que se bem entendi, disse que os bebês viam apenas partes da mãe.

Tipo a história dos seios assassinos, seios destruidores, e os seios anjos da guarda, seios protetores do céu e da terra.

Enquanto Sarah falava, pensei que não queria ver partes de ninguém, queria ver as pessoas inteiras, e então como se ela lesse meu pensamento, porque é isso que acho que esses psicanalistas do inferno fazem, ela disse que a Melanie falava que depois as crianças conseguem enxergar o objeto inteiro.

E tive vontade de chorar.

Como juntando as peças deste quebra-cabeça sem fim, pecinha por pecinha, formando a totalidade dos objetos.

Inteiros.

Vivos.

Felizes, penso agora.

Inteiros, mais que tudo.

Como mãe e filha.

21:12

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