quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 184


Quinta-feira, 1 de outubro de 2015

23:03

− Nossa estrutura tem marquinhas como em um cristal, disse Sarah.

Era outra de suas explanações em nossa pequena sala de aula. Pelo menos aquele dia me pareceu pequena e – não posso deixar de registrar que pensei isto – aconchegante. De novo ela voltava a citar o velho tarado, o messias dela, e acrescentou: − Se a estrutura for frágil, ela pode ruir.

Tive uma vontade de chorar, mas foi só um segundo, tipo um sopro, um cochicho, um espirro de melancolia, e imaginei tudo isso que me rodeia ruindo, como teias de aranha ou cacos de um vaso que se quebrou e não pode ser consertado, um castelo de cartas talvez esperando esse sopro do qual falei.

Estou cansada. Nem sei por que decidi escrever nesta merda de novo.

Não sei. Não gosto de escrever. Não gosto porque dói.

Mas também não consigo parar.

Acho que as provocações de Sarah são apenas para eu começar a escrever. Porque ela sabe que não vou parar depois de colocar a primeira letra, a primeira palavra, as frases que vão sendo vomitadas de dentro de mim.

De dentro de mim.

Onde está a resposta.

Malditos psicanalistas. Sarah conseguiu me infectar.

Então ela disse na aula que estava pensando em fazer uma feira das artes, um salão do sonho. Isso depois de ela dizer que essas pessoas que escrevem vivem permanentemente em dois mundos, e por “essas pessoas”, suponho, ela se referiu a mim, porque me olhou de soslaio quando disse isso, e citou aquele Winnicott, do sou-eu-mas-não-sou-eu, e falou em um tal de espaço transicional, que para os artistas é matéria, mas também é sonho.

Um sonho bom, pensei. Um sonho sem dor.

Meu deus, sem dor.

Então ela falou nesse salão que ela talvez faça e cada uma de nós tinha que aparecer com algo que soubesse fazer bem. Qualquer coisa. Mesmo que fosse um sonho.

Lady Ballet disse que poderia tentar dançar. Uma dança, por que não?

Lady Brownie disse que faria seus brownies. Com cheiro de infância, lembrei.

Dafne disse que poderia pintar. Que inclusive tinha pinturas novas. E uma novidade.

Blossom disse que poderia citar um pensamento. Uma citação de Nietzche.

A Garota Cheshire disse que traria ela mesma.

E riu.

Minhas irmãs de asilo foram conversando e suas vozes foram ficando distantes, e já nem sei se aquela sala era pequena, embora me tenha parecido naquele momento, e elas foram para o corredor, e não vi mais nada, fui apenas caindo dentro de mim.

Será que Sarah espera que eu fale da minha história para uma plateia?

Se eu não estivesse tão cansada, talvez me arrepiasse. Talvez chorasse.

Então, mesmo cansada, me arrepio.

Talvez sorrisse.

Talvez cantasse.

Que bom que pelo menos isto que estou escrevendo agora ninguém vai ler.

Não sei, acho que nunca soube, o que sentir.

Penso no pátio lá embaixo. Escuro. Deserto. Se Cris estivesse por aqui, talvez fugíssemos para um passeio. Talvez, não sei.

Mostrar minha história? Que nem é uma história, não é nada, mostrar esta merda?

Mostrar Claudius, aquele filho da puta miserável? Lara, aquela vadia?

Mas então temos Jonas, que talvez fosse um bom irmão, mesmo – tenho pensado nisso – ele também vivendo dentro de seu mundo, e talvez só lá. Temos Marcos, que defendeu Clara, quando Claudius quis que ela bebesse, e ele bebeu em seu lugar. Temos a pequena Clara.

Minha menina linda.

E temos Maria.

A mãe.

Não sei se suficientemente boa, e não quero pensar nisso agora.

Temos Maria.

Maria como eu.

Minhas meninas.

E talvez elas mereçam uma outra chance de voltarem a vida.

Voltarem? É só uma historinha que inventei.

Mas estamos sempre em dois mundos, Sarah, você tem razão. Maria, a mãe, precisa viver, nem que seja em minha historinha. Clara precisa viver.

E com ela, eu também.

Meu deus, eu também.

23:31

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