quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 194

Quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

22:13

Eu tive um sonho.

Sarah disse para eu anotar quando lembrasse.

Sonhei com elas: Maria brincando com a pequena Clara na sala. Foi lindo. Maria, a mãe, linda, jovem, ensinando sua Clara a fazer um colar, que brincava com... o que era mesmo? Pareciam pétalas de rosa. Estavam sobre o sofá da sala.

Suspiro.

Claudius apareceu. Ficou olhando para Clara, que continuou brincando com o colar. Maria, a mãe, levantou do sofá. Disse para Clara que estava na hora de dormir. Está na hora de dormir, meu amor, foi o que ela disse. Clara olhou para Claudius.

Você me leva até o quarto, mãe?

Claro que sim.

E Maria pegou na mão de Clara, levou ela até o quarto. Não apague a luz, mãe, ela disse.
Vou ficar aqui até você dormir, meu amor, ela disse e ficou segurando a mão de Clara. Maria começou a contar a história da princesa presa no alto da torre do castelo. Clara sempre dormia antes de saber o fim da história. Ela tentava ficar acordada, queria descobrir o que acontecia com a princesa. Maria enchia a história de detalhes, a cada noite.

Ela também contava as histórias de improviso.

Me arrepio. Ela contava as histórias assim, com um fundo de verdade, sei lá de onde ela tirava suas histórias, mas Maria contava e contava até que Clara adormecesse. Clara, no outro dia perguntava como terminava a história, mas Maria falava sobre Sherazade e dizia que na próxima noite ela ia dizer como a história terminava, e então contava um relato improvisado, sempre com alterações, e depois de um tempo Clara desistiu de perguntar. Ela gostava de ouvir Maria, não importava como terminava a história.

Nem se terminava.

Então Clara dormia. Às vezes Maria contava para Jonas, sempre atento, e quando o primo Marcos ia dormir lá, para ele também.

Mas Clara acordou. Era meio da madrugada. Ela caminhou pelo corredor de meias, mesmo que Maria dissesse para ela não fazer isso, ia encardir o branco. Não importava, era só uma rápida ida até o banheiro. Não ia sujar muito. Então Clara foi, lavou as mãos, bem devagar, sem fazer barulho para não acordar ninguém. E voltou, pé ante pé, pelo corredor. Antes de entrar no quarto, ela parou. A luz do corredor estava acesa. Jonas estava acordado. Marcos não estava lá, devia estar dormindo com Lara. Maria, a Maria que talvez você que me lê enquanto durmo tenha pensado, porque eu mesma pensei isso, que nunca ia reagir, estava apontando um revólver para Claudius. Clara ficou no meio do caminho entre banheiro e quarto.

Eu vou te matar, Claudius.

Clara, muda. Jonas também. O colar que ambas fizeram estava sobre o chão. Pétalas de rosa espalhadas.

Maria, abaixe esta arma.

Jonas, até aquele momento, não parecia ter a doença que deve ter contraído de alguma forma mais tarde. Acho que não havia nada de errado com ele. Pelo menos não até aquela madrugada. Clara e Jonas, afastados. Maria apontando a arma para o pai deles.

Então ouço um estouro.

Muito, muito alto.

E ouvi outro estouro em seguida, um som de martelo batendo em uma rocha. A imagem foi sumindo, fumaça. Não sei se Maria atirou, se o tiro pegou em Jonas, não sei. Ouvi mais um estouro.

E acordei.

Mais um estouro, em ritmo, aos pares.

Não sei como termina a história.

Apenas que acordei com alguém batendo na porta, e levei alguns segundos para entender que o sonho havia acabado. Havia mesmo? Fui esquecendo, e talvez até tenha havido mais do que consigo recordar – o tal papo de Sarah sobre conteúdo manifesto e latente e todas aquelas saladas oníricas do velho tarado; quando a gente acorda, ergue-se uma barreira protetiva vinda do nosso inconsciente para nos proteger, lembro de Sarah  falando.

Quando abri a porta, uma garota com os cabelos lisos da cor do ouro, branca feito um palmito e com os óculos parecidos com as da Mulher-gato, disse apenas:

Queria que você me desse um presente de aniversário. Sei que você escreve, e quero que você escreva um personagem baseado em mim.

Ainda tentando me acostumar com a volta traumática à vida em vigília, perguntei apenas:

Quando é seu aniversário?

Em dezembro, mas pode escrever já. Um personagem baseado em mim.

Ela fazia gestos circulares sobre a cabeça, como se estivesse reverenciando a si mesma. Ela tinha jeito de mandona, me acordando daquele jeito, só para me ordenar escrever sobre ela. E como se tivesse ouvido meu pensamento, ela disse:

Eu sou meio bossy.

Olhei para ela. Poderia ser a rainha que não sei se escapa do castelo no fim da história, mas também pensei naquelas reuniões que Claudius deve ter parado de ir, e sei lá de onde tirei isso, quando me veio o sopro: viciados conhecem viciados.

Pensei nisso ao olhar para a Garota Bossy.

E perceber que por trás de seu jeito de rainha, ela era tão frágil que um vento poderia levar ela embora.

O dia lá fora estava cinza. O cinza que amo. Lindo feito um corte no pulso.

Na hora notei que ela era uma de nós.

Mais uma para o Grupo Das Garotas Com Fendas.

Sorri para ela. Se a gente se conhece só no olhar, viciadas que somos, talvez a Maria Estranha Que Escreve Em Seu Quarto-cela deva liderar seu povo, e conduzir suas Meninas com Fendas até o outro lado do oceano. Talvez, pensei agora, estas palavras mal escritas que não quero que jamais leiam, algum dia sirvam para alguém aqui. Encontrar um sentido na dor, e saber se no fim das contas alguém nos salva do alto do castelo. Se Brownie voltou a fazer seus doces e conseguiu esquecer (e se eu conseguir lembrar), se Blossom continuou a colocar sua filosofia no bloquinho, se Daf voltou a pintar, se Lady Ballet voltou a dar seus passos. Se Sabby continuou escrevendo, se Cheshire encontrou o sentido da vida em seu chafariz. Se Antônia, que ainda fala com as mãos sem parar, continuou fazendo seus rabiscos para sublimar a loucura. Se Cris não quis mais voar pelos muros.

Sim, Bossy, talvez minhas palavras tirem a todas nós deste asilo sem fim. Sem tempo.

E então descobrirei como termina a história que Maria contava para sua pequena Clara.

23:05

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