quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 202




17 de agosto de 2016

23:48

A porta se fecha. Começo a escrever. Dói, mas dói mais não escrever. Não tenho a menor ideia do que vou escrever e jamais tive e, sabemos, isso não importa. A verdade é que hoje lembrei de uma frase de Virginia Woolf, que dizia que o verdadeiro prazer é escrever; ser lido é um prazer secundário. Aliás, se ninguém vai ler esta bosta, para que me preocupar? Escrevo para mim mesma, escrevo porque de alguma forma faz sarar todo esse caos que habita em mim. Mas não era isso que eu queria falar. Estou fugindo da raia, fugindo de mim mesma, como sempre.

Fugir de mim mesma sem ser encontrada.

A mágica começa a acontecer.

Meus dedos estão de novo possuídos.

E não consigo parar.

Agora vamos direto ao que interessa, Maria: estava há pouco fechando a porta para me recolher ao meu quarto-cela, me perder na imensidão de mim mesma, transitar por este castelo no qual sou a princesa no alto da torre, escrever qualquer coisa, escrever porque preciso dar um sentido para essa dor que me volta quando fujo, e sempre fujo, e encontrei Sabby, saída do nada, caminhando pelo corredor, já escuro, porque acho que minhas irmãs-zumbis já foram dormir, e a madrugada é meu reino, e ela me deu uma facada:

Estou curiosa para saber do incêndio, Maria. Houve um incêndio, não? Ou foi apenas um delírio? Ou fui eu que sonhei isso?

Quase caí no chão, e quisera eu que tivesse caído, desmaiado, morrido, me esfarelado por aí. Ela foi embora, como se tivesse apenas vindo para largar a faca e decidiu não ficar para ver o que vou fazer com ela.

Como ela sabe do incêndio?

Será que ela sonhou isso, e o inconsciente dela se comunicou com o meu?

Meu deus, de novo as teorias do velho tarado.

Um incêndio.

Tenho queimaduras. Tenho cicatrizes. Talvez eu já tenha sido uma das Garotas Que Se Cortam. Sim, claro que fui, quando fui visitar a ala delas nos reconhecemos.

Não há uma ala para Garotas Com Fendas Sobreviventes De Incêndio aqui.

Talvez um fogo. Talvez uma chuva.

Claudius, aquele filho da puta. Que abusava da pequena Clara. Batia em Maria, a mãe. A mãe de todas, ouvi Lady Brownie falando. Claudius que comia a cunhadinha gostosinha jovenzinha putinha Lara, com quem teve um filho não assumido, Marcos. Irmão de Clara. E de Jonas, o irmão de Clara que talvez tenha ficado deficiente depois do que aconteceu. Depois do incêndio? pareço ouvir Sabby perguntar.

Talvez sim, Sabby. Um suicídio que não deu certo, pensei agora.

Alguém tentou se matar.

Ligou o gás.

Ó, meu deus.

Quem foi?

Maria, a mãe?

A pequena Clara?

Todos morrem, devo ter escrito em algum lugar.

Talvez eu chorasse, mas ainda estou angustiada.

Ajude-me a decifrar este mistério, Sabby.

O incêndio foi real ou apenas um delírio?

Às vezes acho que estou morta.

Estamos, Sá?

Não pode ser esse o final de tudo.

Pode?

Continuo escrevendo, a angústia não passa. Mas não posso parar e pensar, senão a mágica desaparece. Tenho que confiar nela. O velho tarado dizia que na verdade a gente não esquece. Pode estar recalcado nos confins do porão de nós mesmos: mas a gente não esquece. O incêndio está lá, de alguma maneira. Um suicídio que não deu certo, é o que penso agora.

E sei lá por que me vem à cabeça uma frase:

Não me chame de puta.

00:12

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