domingo, 1 de outubro de 2017

Piano Para Pequena Clara – Dia 213


30 de setembro de 2017

23:06

Faz tanto tempo que não escrevo. Acho que uns dois meses. Mas hoje deu vontade de escrever, embora – como sempre – eu não tenha nada para falar. Esses dias Sarah me falou sobre a exposição do Queermuseu e da polêmica que gerou por mostrar umas imagens de famílias.

Não posso dizer como a minha, porque não lembro da minha.

Mas de famílias ou de garotas ou de pessoas que talvez se enquadrassem na história da pequena Clara. Pelo menos na família em que papai Doutor Claudius brincava de médico com a filhinha Clara, batia na esposa Maria – sim, o mesmo nome que o meu – e comia a cunhadinha Lara, com quem teve um filho não assumido, Marcos.

E havia Jonas, filho de Claudius e Maria, a mãe.

Não sei qual o sentido da arte. Uma das zumbis daqui, talvez tenha sido Daf ou Sabby, porque elas também pintam e escrevem, disse que a arte desacomoda. Lembro de Sarah ter dito que a psicanálise também desacomoda.

Ela falou que o velho tarado dizia que ninguém mente. Que quando alguém diz que não era bem aquilo que ela queria dizer, é porque era exatamente aquilo que ela queria dizer. O inconsciente é mais poderoso do que se imagina, e lá não há mentira: a gente quer e finge que não quer. Mas não pode enganar.

Tipo assim, se a gente quiser colocar sentimentos no cantinho da sala, e deixar de castigo, eles voltam.

Feito memórias que a gente não consegue apagar.

De onde tiro a história da pequena Clara?

Suspiro.

Mas encontrar um sentido na dor, mesmo que eu não entenda de onde ela vem, nem para onde ela vai, talvez já seja um bom motivo para escrever estas bobagens que jamais serão lidas. Talvez os espíritos anônimos das Meninas Com Fendas que, suspeito, me leem quando durmo, precisem descansar e para isso também preciso continuar tentando contar esta história.

Que nem história é.

Apenas um corte no pulso, e de novo olho para as cicatrizes em meus braços.

Fazia tempo que não pensava no incêndio, que talvez seja o fim disto tudo.

Como vim parar neste asilo?

Sei que passei de novo pelo Corredor Eterno, onde pouco tempo atrás eu estava recebendo coisinhas intravenosas e lá fiquei ao saber que o bichinho que mordeu Lady Brownie me mordeu também, e agora sou a Maria Em Slow Motion, caminhando devagarzinho. Parando aos poucos. Bem os poucos. Feito uma vida chegando ao fim, com pernas queimando por dentro, como se não bastasse meus braços e suas queimaduras.

Uma vida chegando ao fim, mas que insiste em continuar caminhando. Em slow motion, sim, mas sempre em frente.

Sou a Maria Que Quer Estar Viva.

O piano que jamais saiu dentro de mim. Ele toca enquanto escrevo.

Lindo feio um corte no pulso.

Encontrar um sentido na dor.

O piano que chega aos meus ouvidos e toma conta de mim.

Feito um abraço de mãe.

Feito Maria abraçando sua princesa Lady Clara.

Tenho vontade de chorar quando escrevo isso.

Posso ver Maria, a mãe, tocando o piano de cauda negro, sobre o tapete branco da sala, em sua casa que parecia um centro comercial de tão grande. Maria tocava para sua filhinha linda.

De novo, tenho vontade de chorar.

Mas preciso continuar. Chorando ou não, caminhando ou não.

O Corredor Eterno fez sua mágica em mim, e tenho que fazer minha mágica e descobrir com termina a história da pequena Clara.

Talvez em um incêndio.

Talvez não.

Talvez ainda possa mudar o fim da história, porque sou a Rainha Todo-poderosa e soberana em meu castelo. Que não sabe o que fazer, Maria Perdida.

Por isso escrevo.

Enquanto o piano continuar tocando, devo continuar escrevendo.

Talvez não seja nenhum absurdo retratar cenas assim na arte. A vida é absurda. Se a arte recria a vida, então recriemos esta vida que não basta. Se ela não pode ser, que passe a ser – e encontremos um sentido na dor.

Na dor da pequena Clara, que é a mesma minha, e talvez sua, ó espíritos errantes das Meninas Com Fendas. Meninas Que Voam Pelos Muros, Meninas Que Se Cortam. Porque no fundo somos todas uma só. E quero mais que tudo libertar vocês, como a mim mesma, dentro deste Asilo Eterno.

Do qual não sei se sairemos um dia.

Mas que, enquanto o piano segue tocando e iluminando meus cantos escuros, abriga uma saída. Sim, no fim de tudo haverá amor. É o que mais desejo para mim e para você.

Dançaremos abraçadas. Feito Lady Brownie dizendo bonjour, bonjour, naquele sonho que tive.

Um sonho bom.

Sonhei com você hoje, embora ainda não nos conheçamos.

E foi um sonho bom, embora eu não me lembre.

O velho tarado disse que a gente não lembra que lembra.

Mas está lá.

Onde está o amor, onde está a família que quero encontrar. Está tudo lá, no porão do dentro de mim.

Canso fácil. O bichinho da slow motion me faz parar, escrever cansa, pensar cansa.

Mas sei que escrevi e escrevi e ainda não disse o que queria dizer. O abismo se aproxima de novo. Penso em uma exposição para a pequena Clara. Daf disse que tinha pintado novos quadros de Maria, a mãe, pegando a pequena Clara pelas mãos, talvez girando ela no ar, brincando com seu nenê, e acho que nenhuma delas tinha rosto.

Qual é a cor do cabelos dos personagens que tento descrever? Como é o rosto de Maria, a mãe? De Claudius, esse homem que demorei tanto a batizar? Lara, Jonas, Marcos? Conheço apenas minhas irmãs-zumbis porque vejo elas, e mesmo assim elas aparecem e somem por essas alas e quartos e grades e tudo mais pelo que tenho passado.

Anjos, diriam as Meninas Que Voam Pelos Muros. Somos anjos querendo voltar para casa.

Mas ainda não é hora. Sei que no tempo certo, estaremos juntas, você e eu. E haverá amor.

Você, com quem já estive ou estarei no futuro.

De onde tirei isso?

Não sei, Sarah disse que era apenas para escrever, sem pensar, sem censura, feito livre associação. Meus dedos cansam. Acho que por hoje está bom. Chegamos mais perto do abismo.

Mas também chegamos mais perto de algo que talvez se chame amor.

Então suspiro, porque sei – agora eu sei – no fim de tudo haverá amor.

23:49

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