sábado, 10 de novembro de 2012

Entre Nós


“Precisamos conversar”, disse Selina, “Espere aí que eu já volto”, bateu a porta Franco, quatro horas antes de retornar ao quarto onde havia deixado a esposa. Já era madrugada quando ele trouxe consigo a fragrância etílica para desafiar o perfume de jasmim de Selina, dormindo feito morta na outra extremidade da cama. E eles duelariam por toda a noite, álcool e flor, homem e mulher. Antes de deixar-se desabar sobre o colchão, Franco tentou lembrar desde quando eram casados, mas tamanho suplício, deveriam ser vidas inteiras sem trégua. Quis enumerar quantos dias ficaram sem um olhar sequer. “Vidas inteiras sem trégua”, disse com ódio. E desabou.

Primeiro dia de aula. O jovem Franco e seu vizinho cuidam atentos os movimentos femininos do corredor. Fazem comentários, especulam oportunidades. “Bem que aquela gracinha ali podia ser nossa colega”, aponta Franco para a garota de cabelos lisos pelo ombro, pasta debaixo do braço. Ela se aproxima dos dois e entra na porta ao lado, na mesma sala em que permaneceriam o resto do ano. Seu vizinho diz que os deuses sorriram para ele. Franco sorri de volta. O sino toca. Todos entram, a professora fecha a porta. Dá as boas-vindas, diz que todos estavam cansados das férias e agora iam estudar pra valer. Os alunos riem, fazem piadas. Franco é o último da fila. A menina é a primeira, do outro lado da sala. Começam as apresentações. Os nomes e apelidos sucedem devagar. A espera é longa. A medida em que os nomes vão se aproximando do nome que mais queria saber, Franco respira menos e mais rápido. Nada mais havia ao redor, exceto aquele nome a seguir. Ela, enfim, ergue o braço.

— Meu nome é Selina.

 

* * *

 

Ao acordar, o corpo com o peso do mundo, Franco não olha para o lado. Vai para o trabalho sem se despedir da mulher. Como de costume. Apenas ao fim do caminho, ele recorda o sonho. Franze a testa, ao constatar que a realidade onírica foi fiel à realidade vivida. Foi exatamente daquele jeito que ele a viu pela primeira vez, naquele começo de ano letivo. Vidas inteiras sem trégua atrás. E seguiu com sua jornada de trabalho.

E seguiu com o inferno que era sua vida, sem pensar mais naquele sonho idiota.

Não sabia mais quando Selina estava em casa. E não fazia diferença. Chegar, ir embora, a dualidade que movia seus dias. Franco não suportava mais a esposa e, tinha certeza, o sentimento era correspondido. Achava ela feia, neurótica. Velha. Passava mal todos os dias a caminho do lar. Queria ele não mais ter que voltar. Mas sempre voltava. E os fins-de-semana eram os piores, intermináveis. Por conta disso, passou a dormir mais e mais. Foi então que aconteceu de novo.

Fim do segundo bimestre. Franco senta ao lado de Selina, classe a classe. O aluno mais bagunceiro pede ajuda à aluna mais inteligente. Ele a observa hipnotizado resolver aqueles cálculos trigonométricos extraterrestres. Ela vira para o lado e percebe que o colega pouco se importa com o seno do coseno.

— Você não está entendendo nada, não é? – ela pergunta, insinuando irritação.

— Não. Na verdade, estava aqui olhando para as suas mãos.

— O que tem elas?

— É que eu gosto de mãos e as suas mãos são muito bonitas. Aí, fiquei com inveja do seu namorado que tem esse belo par de mãos para fazer cafuné nele.

— Eu não tenho namorado – ela diz, voltando aos cálculos.

— Não quer arrumar um?

Ela larga o lápis, a face permanece austera.

— Essa é a sua melhor cantada?

— É. É sim. Mas posso pensar em algo melhor, caso não tenha funcionado.

Selina volta-se para o papel a sua frente. “Pois então, pense em algo melhor”. Franco a observa. Séria. Rígida. Absorta na resolução dos triângulos em cima da classe. Súbito, o lápis estanca. E a menina sorri. Um sorriso que se prolonga. E vira para o colega, que corresponde. Franco abre a boca para dizer, então:

O despertador estrondou. Franco, muitos anos mais velho, tentou lembrar o que havia dito para a colega na ocasião. Ao levantar da cama, rumou para o banheiro. Antes de fechar a porta, olhou para Selina, que ainda dormia.

 

* * *

 

O tempo foi passando. Segundo por segundo num interminável de minutos e momentos e semanas e meses. Há muito tempo que Franco não tirava férias. O único repouso que dispunha estava no serviço, que detestava. Não raro, buscava consolo em conversas com amigos, que levavam semelhantes vidas conjugais. Tentava em vão aliviar o sofrimento de uma dor que não doía, que era inércia, que era rotina.

Plantões exaustivos no trabalho seguiram-se. E foi num deles, esgotado e em meio à fria madrugada, que Franco não voltou para casa, adormecendo no sofá do escritório.

Três semanas para o fim das aulas. Franco conversa com Selina dentro do ginásio, ao lado da quadra de vôlei. Ambos estão sentados nas arquibancadas, abandonadas aos dois. “Eu vou morrer se não te der um beijo agora”, diz ele. “Você não vai morrer”, diz ela. “Não. Mas ainda assim quero te dar um beijo”. Selina ergue os olhos para o teto semicilíndrico do lugar. “Me dê três motivos para eu te dar um beijo”.

— Olhe, eu não estou te pedindo em casamento. Eu só quero te dar um beijo.

— Bem, talvez se me pedisse em casamento, eu te desse um beijo.

Franco foi desperto do sofá antes de ver o beijo que iniciou o namoro com Selina. Um novo dia estava começando. A mulher do cafezinho, que tão somente era a mulher do cafezinho, lhe deu um bom-dia afetuoso. “Pra você também, um ótimo dia”, Franco disse, feito moleque faceiro.

 

* * *

 

A vida com Selina permanecia a mesma. Perfeitos estranhos condenados a viverem na mesma casa. Cúmplices, cada qual com sua solidão. Mas Franco deixou de se importar. Os sonhos ficaram mais freqüentes. E eram sempre fiéis ao que havia acontecido. E cronológicos. Franco passeou por todos os lugares que havia levado sua namorada Selina, uma vez mais. Repetiu todas as frases românticas que outrora encheram aqueles olhos femininos de lágrimas, de novo e de novo. Uma vez mais, viveu. E sentia-se muito bem. Sentia-se jovem. Estava apaixonado por Selina, mesmo que não suportasse a esposa da vida acordada. E a vida acordada não tinha mais sentido. E não fazia a menor falta. Cumpria suas obrigações com disciplina, dedicava-se ao trabalho, pagava suas contas. Mas tudo o que queria era chegar em casa e dormir. Sonhar com Selina, linda e jovem que era.

Certa vez, pensou em comentar de seus sonhos com a mulher, mas logo mudou de idéia. Sentia calafrios, tremia apavorado, com medo de que os sonhos o abandonassem. Talvez fosse parte de algum ritual, alguma mágica, cuja a condição para existir era: sigilo absoluto. E confortava-se com a certeza de que, mesmo que descrevesse em detalhes todos os sonhos que estava vivendo até então, nada mudaria entre ele e Selina. Afinal, eram apenas sonhos.

Entretanto, a medida que os sonhos evoluíam, aumentando a euforia e a paixão de Franco, tornava-se quase insustentável não comentar daquilo com alguém. Decidiu então que não faria mal se contasse para o melhor amigo alguns detalhes da sua outra vida. A vida que ele havia escolhido viver, que era muito mais real do que a vida acordada. E foi em um longo intervalo para o café que Franco contou tudo.

— Sabe – disse o amigo –, algumas religiões acreditam que os sonhos são um universo paralelo. Com uma linha de tempo e espaço diferente da nossa.

— Como assim?

— Você disse que os sonhos aconteceram em ordem cronológica, no passado. Mas você pode eventualmente ter um sonho sobre o futuro.

— De algo que ainda vai acontecer?

— Exatamente.

— Que idiotice – riu Franco. —Um sonho é um sonho e fim.

— Talvez. Mas por que você nunca contou nada pra Selina?

— Porque ela não ia se importar.

— Como você tem tanta certeza?

Tudo o que havia entre eles estava morto. Só o que tinha restado eram os sonhos. E ele preferia morrer a estragar isso. E nada mudaria, nada mudaria. O amigo balançou a cabeça, concordando. Voltaram ao serviço.

 

* * *

 

E os sonhos continuaram. Cada vez mais belos, mais reais. Sempre em sua cronologia rígida, imutável. Franco sonhava com as festas do cursinho, as noites acordado estudando para o vestibular, os livros lidos na faculdade. O primeiro emprego. O segundo, o terceiro. Os natais que passaram juntos, na época de seu noivado. Selina, sempre presente. Sempre bela, cheia de vida e ternura. Uma ternura que, talvez por intervenção divina, foi transposta do sonho. Pela primeira vez em muito tempo, Franco voltava a falar com a esposa. Era uma frase ao chegar em casa, outra antes de dormir. Depois, duas frases ao chegar em casa, três antes de dormir. Uma ou outra quando acordava. Vez ou outra, um telefonema no meio da tarde. A intensidade dos sonhos começou a diminuir.

Ao entrar na cozinha, certo dia ao chegar da rua, Franco perguntou ao abrir a geladeira, ares de distraído:

— O que tem de bom pra comer, Sel?

Ela nada respondeu. Depois de alguns segundos, ele ergueu o olhar e viu Selina sorrindo, um sorriso há muito esquecido. Franco perguntou o que havia acontecido.

— Você me chamou de Sel. Há anos você não me chama de Sel.

Franco sorriu, espelho. Ela adorava ser chamada assim, porque “Sel” rima com “Céu”. Ambos piscaram os olhos.

 

* * *

 

Selina e Franco voltaram a jantar juntos, conforme permitia o tempo. Voltaram a jogar cartas, a tomar sorvete juntos, a andar de bicicleta. Os sonhos agora se faziam muito raros, quase inexistiam. Na madrugada do dia em que comemorariam bodas, Franco sonhou com um altar. A sua frente, o padre. Ao seu lado, padrinhos e madrinhas. A música inicia, o coral se faz presente. A platéia vira para trás, ao fundo da igreja. Selina vem caminhando. Lenta. Soberana. O branco do vestido parece se espalhar por todo o lugar. Pétalas de rosa de variadas tonalidades caem do teto. Franco não lembra de flores descendo do céu em seu casamento, e tampouco se importa. O sonho é ainda mais belo do que foi a realidade. As mulheres choram, os homens assoviam. Todos aplaudem. As aias vêm na frente, fazendo festa. A música dá lugar ao discurso. As alianças reluzem. Os dedos são preenchidos. Ambos se aceitam, até que a morte os separe.

Algumas horas mais tarde, em sua vida acordada, Franco trocou presentes com Selina, comemorando seu aniversário e quebrando uma abstinência de anos. Consumiram champanhe sobre a mesa iluminada pelos candelabros. Ao fim de sua ceia particular, Franco, já bêbado, começou a lembrar da noite do casamento, e recordou com tamanha riqueza de detalhes que Selina emudeceu. E começou a recordar todos aqueles sonhos, um a um, na ordem em que foram vividos. Franco só interrompeu a narração quando Selina começou a chorar. Um choro que nasceu contido e foi se afetando, afetando. Franco perguntou o que houve, meu deus, o que houve? Selina começou a narrar os sonhos, um a um, em ordem cronológica. Franco levou as mãos à cabeça. As lágrimas vieram ligeiro para ele também. Só agora havia percebido. Ela sempre esteve presente. Em todos os sonhos, desde o primeiro, ela sempre esteve lá. Todo aquele tempo. Selina havia sonhado o sonho de Franco.

E as lágrimas que caíram ajudaram a fundir os corpos.

Como um romance impossível entre o Sol e a Lua.

Eclipse ao som de violinos.

Cordas que podem parar o tempo.

Congelando um momento passageiro eterno.

 

* * *

 

Os meses seguintes foram costurados por um romance inabalável. Tudo era novo, mesmo aquilo que já haviam feito milhões de vezes. Estavam renascidos, rebatizados. Vivos novamente. Franco não mais queria dormir. Cada minuto a menos acordado era um minuto a menos com sua amada. A magia florescia deles e ao redor deles. Todos percebiam, era nítido: estavam felizes. Os sonhos cessaram por completo.

O casal continuou fazendo as mesmas coisas com vivacidade por mais sete meses. A estação estava mudando e, aos poucos, o novo começou a ter gosto de reciclado. Custaram a acreditar. As risadas não eram mais tão intensas, nem tão espontâneas. As cobranças e os defeitos voltaram, tímidos. Uma ou outra briga. Os diálogos diminuíram. Junto deles, a magia. Junto dela, seu tempo. “Deixe as folhas caírem”, disse Selina na cozinha. Franco sabia que jamais seria a mesma coisa. Era começo de outono e seu tempo havia acabado. E desta vez, os sonhos não voltaram.

Duas semanas antes de completarem novo aniversário, pediram o divórcio. Selina foi morar no campo. Casou com um fazendeiro. Franco mudou de emprego. Começou a dar aulas. Seu apartamento era coberto por objetos e roupas espalhados pelo assoalho. Feito cacos desorganizados, tal qual sua vida. As estações continuaram mudando. Os anos fugiam, apressados.

Na noite de Natal, época de nascimento, Franco dormiu sozinho em seu apartamento. Na madrugada gélida o cobertor não se fez suficiente. Seu corpo tremia. Os sinos que orquestraram seu sono foram os mesmos que anunciaram o seu presente. Um sonho a mais.

Franco está sentado no banco da praça. O ar que o circunda é cheio de juventude, rejuvenescedor. Ele ouve seu nome. Selina vem em sua direção. Ambos trazem a paixão adolescente no olhar. Franco se assusta com tamanha beleza, Selina nunca esteve tão linda. Ela se aproxima, senta no banco. Franco faz um carinho em seu rosto e a beija. Permanecem a encarar um ao outro, encantados. Ele olha para as mãos entrelaçadas, feito um elo inquebrável.

E só então percebe: estão com noventa anos.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Escrever a sério


Escrever não é um hobby. É um chamado (...) Se você quiser que outras pessoas o levem a sério, é vital que você leve a sua escrita a sério (...) Você não vai melhorar sua escrita, a menos que realmente escreva (...) Escrever regularmente é a chave aqui.

Ainda sobre a discussão de manter o foco, sentar e escrever ali do post abaixo, encontrei três textos muito legais se você quiser treinar o inglês. Reserve um tempinho para ler, eles valem o ingresso. O primeiro fala sobre por que jamais haverá uma hora perfeita para escrever. O segundo sobre cinco razões por que sua escrita é importante (mesmo que ninguém leve você a sério). E o terceiro são 7 hábitos dos escritores sérios. Sérios no sentido de profissionais.

Sei que os carinhas do Nanowrimo estão na contagem regressiva para escreverem um livro em um mês, agora em Novembro. Sorte deles que lá vai ser Outono, infinitamente melhor e mais convidativo para escrever, mas como comecei dizendo: jamais haverá uma hora perfeita para escrever. A hora perfeita é agora.

Enquanto isso, a história de Carol já passou na primeira fase do processo de seleção da bolsa da Biblioteca Nacional (a dos documentos). Enquanto você me lê, eu escrevo, e pessoas no mundo todo correm para cumprir o prazo de 50.000 palavras até 30 de novembro, diversos projetos para escreverem seus livros (incluindo o meu) estão sendo avaliados. A roleta está girando, para mim e para Carol.

Vamos que vamos.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Concentração, Perseverança e Palavras por Minuto


“Em toda entrevista me perguntam qual a qualidade mais importante que um romancista deve ter. Isso é bem óbvio: talento. Não interessa quanto entusiasmo e empenho você põe em escrever, se for totalmente destituído de talento literário, pode esquecer a ocupação de romancista. Isso é mais um pré-requisito que uma qualidade necessária (...).
Se me perguntarem qual a segunda qualidade mais importante para um romancista, essa também é fácil: concentração – a habilidade de focar todos os seus limitados talentos no que for mais crucial no momento. Sem isso não se pode realizar nada de valor, ao passo que, se você for capaz de se concentrar eficientemente, conseguirá compensar um talento errático ou até a falta de talento. Eu geralmente paro para escrever de três a quatro horas todas as manhãs. Sento em minha mesa e me concentro totalmente no que estou escrevendo. Não olho para mais nada, não penso em mais nada. Mesmo um romancista muito talentoso e com a cabeça fervilhando de novas ideias provavelmente não consegue escrever uma linha se, por exemplo, estiver sofrendo com uma cárie. A dor bloqueia a concentração. Isso é o que quero dizer quando afirmo que sem concentração você não realiza coisa alguma.
Depois de concentração, a coisa mais importante para um romancista é, sem sombra de dúvida, perseverança. Se você se concentra em escrever três ou quatro horas por dia e se sente cansado após uma semana fazendo isso, não será capaz de escrever um livro longo. O que um escritor de ficção necessita – pelo menos aquele que sonha escrever um romance – é a energia para se concentrar todo dia durante meio ano, ou um ano, dois anos (...).
Felizmente, essas duas disciplinas – concentração e perseverança – são diferentes do talento, uma vez que podem ser adquiridas e aperfeiçoadas por meio de treinamento. Você aprenderá a ter tanto concentração quanto perseverança quando sentar todo dia diante de sua escrivaninha e treinar a mente a se concentrar em uma coisa só. Isso parece um bocado com o treinamento muscular de que falei agora há pouco. Você precisa transmitir continuamente o objeto de sua concentração para seu corpo todo, e se certificar que ele assimilou por inteiro a informação necessária para que você escreva todo dia e se concentre na tarefa diante de si. E gradualmente você expandirá os limites do que é capaz de fazer (...) Paciência é um componente obrigatório do processo, mas garanto que os resultados virão.
Em sua correspondência particular, o grande escritor de policiais Raymond Chandler certa vez confessou que mesmo que não escrevesse nada, obrigava-se a sentar em sua mesa todo dia e se concentrar. Entendo a finalidade por trás disso. Esse é o modo como Chandler arrumava para si mesmo a resistência física de que um escritor profissional precisa, aumentando tranquilamente sua força de vontade. Esse tipo de treinamento diário era indispensável para ele.
Escrever romances, para mim, é basicamente um trabalho braçal. Escrever, em si mesmo, é um trabalho mental, mas terminar um livro inteiro está mais próximo do trabalho braçal. Não envolve levantar peso, correr ou pular. A maioria das pessoas, contudo, enxerga apenas a realidade superficial da escrita e acha que os escritores vivem silenciosamente concentrados em um trabalho intelectual em seu gabinete ou escritório. Basta ter força para erguer uma xícara de café, imaginam, que você pode escrever um romance. Mas assim que você arregaça as mangas para começar, percebe que não é um trabalho tão tranquilo como parece. O processo todo – sentar em sua mesa, concentrar sua mente como se fosse um raio laser, imaginar alguma coisa em um horizonte vazio, criando uma história, escolhendo as palavras certas, uma a uma, mantendo todo o fluxo da história nos trilhos – exige muito mais energia, por um longo período, do que imagina a maioria das pessoas. Pode ser que você não mova seu corpo de um lado para outro, mas há um exaustivo e dinâmico trabalho operando dentro de você. Todo mundo usa a mente quando pensa. Mas um escritor veste um traje chamado narrativa e pensa com todo seu ser; e para o romancista esse processo exige pôr em ação toda a sua reserva física, geralmente ao ponto da estafa.”

O inspirado trecho acima, retirado de Do que eu falo quando eu falo de corrida, do escritor e maratonista Haruki Murakami, me incentivou a fazer um belo exercício de aquecimento, que a partir de hoje pretendo que seja diário, treinando os dedos e a concentração, com este belo teste para aumentar a velocidade de digitação. Digito relativamente rápido, sem olhar para o teclado, mas preciso estar em constante exercício. Seja através da correspondência eletrônica, seja atualizando estes trovões de muitos acessos e poucos comentários, seja compondo ficção. Até ler esse livro, tão bem escrito que até um sedentário confesso quanto eu é capaz de se encantar – desde que também seja encantado pela literatura –, achava que não praticava regularmente nenhum esporte (desde que mudei para apartamento, alguns anos atrás, o estudo e prática da bateria ficaram totalmente comprometidos, infelizmente, afinal a bateria não foi feita para condomínios). Mas se mantiver a concentração e a perseverança, começando por hoje, posso me exercitar e treinar meu instrumento, colocando óleo nas engrenagens da escrita.
Então, vamos ao foco.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Sobre a inveja e as potencialidades reprimidas


Eu não sou alguém invejoso.

Todavia tenho muitos outros defeitos.

Aconteceu-me uma coisa estranha nos últimos anos.

Um boato sobre mim, um boato tão grande que me paralisou como ser humano e também economicamente.

Isto me permitiu entender que o sentimento de inveja é onipresente e fonte da maior parte da discórdia nesta Terra, e pode ser, talvez, a Terceira Guerra Mundial.

E com base em meus sentimentos passei a me interrogar sobre o que é inveja.

Eu compreendi que pode ser simplesmente inveja, o potencial de uma pessoa mesmo que não seja necessariamente conquistas recentes: podemos invejar o seu bom humor, o seu olhar sobre o mundo e especialmente a sua maneira especial de ter este olhar, mesmo sem perceber.

Ali está também sua fraqueza, ela não sabe que é invejada, ela não percebe os golpes da espada.

Ela vê muito potencial e realizações em outras pessoas e não suspeita que dela parte uma inveja castradora e maledicente.

Como tenho que transformar chumbo em ouro, eu tento perceber o meu potencial latente e alcançar grandes coisas, às vezes, eu não tenho como suspeitar de mim, da minha inveja em relação às realizações das outras pessoas.

Podem ser coisas simples, apenas arrumar a sua casa com amor.

Com isso, dirijo-me a todas essas belas pessoas que gostam de mim e estão paralisadas economicamente e socialmente: fazer o quê?

Pois é: a grande maioria dos desempregados que mantenho contato são pessoas com enormes potencialidades reprimidas.

Desemprego existe é talvez exprimir-se é trabalhar no sentido que cada um tem a sua maneira de assim fazer uma atividade; e que trabalho como nós o conhecemos não é a única maneira de existir.

Tudo que você faz de maneira benévola, mesmo voluntariamente, mesmo para ti, podes colocá-lo em teu ‘curriculum vitae’.

Tu és uma micro-empresa.
 
(tradução livre do francês – comentário, feito em francês, de um ‘anônimo’ em um blog em língua espanhola escrito dia 3.10.2012, às 11:39 a.m. Obrigado, Augusto de Amorim, pela colaboração.)

 
Enquanto isso e as mudanças se demoram neste outubro de revoluções, penso em Joshua e Oleo, essa última gravada ali pelo meio do Relaxin' with the Miles Davis Quintet, com a certeza de que a vida deve seguir em frente.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Por que ainda não traduziram On Writing, de Stephen King?


“O seu tempo é valioso e o meu também, e ambos entendemos que as horas que passamos falando sobre escrever não são as horas que passamos de fato escrevendo. Serei tão animador quanto possível, porque é minha natureza e amo este trabalho. Também quero que você o ame. Mas se você não quiser suar a bunda trabalhando, você não tem negócio algum tentando escrever bem. (...) Se Deus deu algo que você pode fazer bem, por que em nome de Deus você não faz? (...) Não se pode transformar um mau escritor em um bom escritor, nem um bom escritor em um grande escritor, mas é sim possível, com muito trabalho duro e perseverança, transformar um escritor competente em um bom escritor (...) TV é a última coisa que um aspirante a escritor precisa, e se você não vive sem saber as notícias da CNN e os jogos do ESPN, ou assistir Jay Leno todas as noites, está na hora de você se perguntar a sério sobre seu futuro como escritor (...) Para ser escritor, você precisa fazer duas coisas acima de tudo: ler muito e escrever muito. Até onde eu saiba, não existe outro caminho; não existe atalho.”

  
No fim de Oficina de Escritores, que considero a Bíblia para quem quer escrever (ou melhor, uma das Bíblias), Stephen Koch fala de On Writing – A Memoir of the Craft, de Stephen King, que ele considera talvez o mais útil e abrangente livro escrito sobre o ofício de escrever, e de onde grande parte (partes demais, eu diria) da Oficina foi tirado. Pois que tive a honra e a boa vontade de ler On Writing (esta edição da Scribner, com hard cover), no original em inglês, já que ele ainda não foi traduzido. Aliás, por que ainda não traduziram On Writing? Juro que quando o traduzirem compro um exemplar para reler.

O livro já começa bom, com King dizendo que sua intenção é contar como um escritor se forma, e não como ele é feito, já que para ser escritor a pessoa tem que vir com algumas peças de fabricação. Em seguida começam as memórias da infância, o pai que sumiu para sempre porque estava enterrado em contas, logo quando King era bem pequeno, depois uma baby-sitter que era “grande como uma casa”, que vivia o sufocando e peidando em sua cara, que ele lembra de ser “escuro, terrível, mas também gerava algumas risadas”, e nesse sentido ela também o preparou para a crítica literária. Sua voz nos conduz como se ele estivesse conversando com a gente. Aos seis anos de idade, ele plagiou uma história e deu para sua mãe ler, que gostou, mas quando confessou não ter sido ele quem inventou, ela disse: “Escreva suas próprias histórias, Stevie. Você pode fazer melhor que isso”. Então ele escreveu sobre quatro coelhos dirigindo um carro e ajudando crianças. Ela leu, perguntou se ele mesmo tinha escrito aquilo. Depois que ele confirmou, ela disse que aquilo bem poderia estar em um livro. Stephen disse que desde então nenhum elogio que recebeu em sua carreira foi melhor que aquele.
 
Depois das experiências com o jornal da escola, e com um conto que fez como uma releitura de O Poço e o Pêndulo, de Edgar Allan Poe, e terem perguntado por que ele perdia tempo escrevendo aquele lixo (onde ele acrescenta: “todo escritor, pintor, cantor, já teve alguém que perguntou “por que você está desperdiçando seu tempo com isso?”), King foi trabalhar na biblioteca onde conheceu Tabitha Spruce, com quem casou um ano e meio depois, e ainda é casado, e se apaixonou por sua poesia em um sarau entre amigos.
Quando finalmente conseguiu vender Carrie, em um contrato que foi de 2.500 a 400.000 dólares, King conta a triste história das duas garotas que inspiraram Carrie, as duas já mortas quando o livro foi publicado (uma por ataque epilético, a outra por suicídio). Ele também conta que jogou o esboço de Carrie no lixo, e foi sua esposa Tabby quem resgatou o texto da lixeira e disse que ele deveria continuar escrevendo, e que seu apoio foi fundamental para que ele seguisse a carreira de escritor. Em seguida sua mãe morreu de câncer no hospital, e depois que saiu O Iluminado (cujo protagonista é um escritor alcoólatra), King teve que admitir que estava falando dele mesmo, um escritor e adicto (ele também estava usando cocaína) e disse que pedir para um alcoólico maneirar na bebida é como dizer para alguém que está sofrendo de diarreia maneirar na caganeira.
A segunda parte do livro (Toolbox) fala nas ferramentas que todo escritor deve trazer consigo, e tê-las a mão quando precisar delas. Em primeiro lugar está o vocabulário (inclusive o vocabulário de rua) e a gramática, que vai melhorando conforme vamos lendo. No fim do capítulo anterior ele alerta que a partir de agora vamos falar a sério sobre o ofício de escrever, e se você não quer levá-lo a sério, feche o livro e vá fazer qualquer outra coisa. Como lavar seu carro.
“Não se deve pensar muito sobre onde o parágrafo começa ou termina, o truque é deixar a natureza fazer o resto. Se você não gostar mais tarde, então conserte. É sobre isso que é reescrever (...) O objeto da ficção não é o senso de correção gramatical, mas fazer o leitor bem-vindo e contá-lo uma história, e se possível fazer ele esquecer que está lendo (...) Escrita é pensamento refinado (...) O parágrafo de uma única frase está mais perto da conversa do que da escrita, e isso é bom. Escrever é sedução (...) A batida na qual o escritor desenvolve sua prosa, é a batida que ele escuta em sua cabeça. Descobrir essa batida é o resultado de milhares de horas de prática, e de dezenas de milhares de horas lendo (...) Estamos falando sobre ferramentas e carpintaria, sobre palavras e estilo, mas conforme vamos nos movendo (no texto) você faria bem em se lembrar que também estamos falando de mágica.”
 
King diz que lê onde pode e que salas chatas de espera foram feitas para ler (eu acho que ônibus também, mas anyway). Para ele, as manhãs pertencem a tudo que for novo – a composição atual. As tardes são para cestas e cartas. As noites são para leitura, família, jogos do Red Sox na TV e quaisquer revisões que não podem esperar. Basicamente, as manhãs são seu horário nobre para a escrita.
“Como todos os outros aspectos da boa escrita, a chave para escrever bons diálogos é a honestidade. A Legião da Decência pode não gostar da palavra merda, e talvez você também não, mas nenhuma criança vai correndo até sua mãe para dizer que sua irmãzinha defecou (...) Toda semana recebo uma carta (muitas vezes mais de uma) acusando-me (ofendida com o que meus personagens disseram). A chave é deixar os personagens falarem livremente, sem se importar com o que vão dizer a Legião da Decência ou o Círculo de Leitura das Senhoras Cristãs. Do contrário, além de ser desonesto, seria covarde, e a escrita de ficção não é trabalho para covardes intelectuais (...) Honestidade é fundamental (...) Como disse Frank Norris, o que me importa as opiniões deles? Eu contei a verdade (...) O que acontece com os personagens conforme a história progride depende do que descubro sobre eles conforme vou avançando (...) e se você continuar escrevendo, vai perceber que todos os personagens são parcialmente você.”

King fala sobre deixar o manuscrito recém-escrito descansar por umas seis semanas, ler, revisar e reescrever. A segunda versão é a primeira versão menos 10% (como sugeriu um editor em uma carta de recusa durante sua adolescência). Ele também fala sobre termos um Leitor Ideal (no caso dele, sua esposa) e mandar a cópia para seis, oito pessoas e pedir sua opinião sobre o que funciona e o que não funciona na história, antes de fazer a versão final.

“Você não precisa de aulas de escrita ou seminários mais do que precisa deste ou de qualquer livro sobre escrita (...) Você aprende melhor lendo muito e escrevendo muito e as lições mais valiosas são as que você ensina a si mesmo.”
 
* *

Os capítulos finais falam do acidente que quase o matou em 99, atropelado pela van de Bryan Smith, e de sua dolorida recuperação, e de como voltar a escrever o ajudou (“escrever não é a vida, mas às vezes é um jeito de voltar a vida”); também há um capítulo sobre edição e revisão, em que ele mostra como cortar e enxugar frases, citando seu 1408, e uma lista de seus livros favoritos. O que eu não entendo é por que ainda não traduziram esse livro por aqui. Aliás, quando estava quase terminando de ler o livro em inglês, descobri que “Escrever – memórias do ofício” foi traduzido em Portugal. Mas enfim, decidi fazer este mix de resenha e publicar em meu blog errante. On Writing é um grande livro (que esta semana se tornou meu companheiro de mochila no bus), um dos preferidos da casa. Quem escreve tem que ler.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Depois do Pablo Held Trio



Fui ontem ver os alemães do Pablo Held Trio (tem um show extra hoje, se correr ainda dá tempo) e no fim comprei seu belo e introspectivo Music, das mãos do próprio Pablo. Bem bacana o show. Antes de começar, ele avisa que nunca sabem que músicas vão tocar quando sobem no palco, apenas deixam a coisa fluir, e parece que estão lendo a mente um do outro, todos bem concentrados. Depois do fim do show, fomos lá bater um papinho.

Perguntei a ele se o trio apenas improvisava ou se a uma hora de música ininterrupta eram as músicas misturadas, e ele disse que um pouco dos dois. Ele começou na bateria aos 5 e no piano aos 10. Aos 25, já é uma das sensações do jazz europeu. Perguntei se ele nunca tinha pensado em desistir, ele disse que sim, durante a adolescência, até que seu pai perguntou “por que acha que estou apoiando e investindo em você, com todas essas aulas?” e então ele decidiu se dedicar a valer e ser profissional. Fiz a mesma pergunta ao batera Jonas Burgwinkel, de 30 anos, e ele disse que também pensou em desistir, quando as coisas pareciam não ir para frente. Perguntei se as pessoas incentivavam ele, que respondeu um irônico “mais ou menos”, e que só quando começou a ganhar algum dinheiro com a música começaram a respeitá-lo mais (afinal, ser artista, músico, escritor ou qualquer desses bichos-grilo, não é fácil. Nem aqui nem na Alemanha). E disse que podia ficar sentado no sofá, mas se em vez disso estivesse praticando, sentia que estava fazendo alguma coisa 
Só essas duas falas já valeram a noite.
E foi pensando neles que hoje, que não vamos ter reunião de equipe e posso chegar mais tarde, enquanto me preparo para encarar o (geralmente) dia mais corrido da Red Cross e, antes disso, me aventurar na chuva que não para de cair na cidade-sorriso, esquento o chimas e vamos a escrita. Faz uma semana que o escritório da Distant Thunders Administration está maravilhosamente perfumado com o Haiti Coffee, que mandei passar semana passada e ainda nem estreei – quem sabe hoje?
Ontem soube que tem outro concurso para publicar originais inéditos, acho que semana que vem sai a primeira leva da Funarte, e Mr. Vizinczey acaba de me dizer que, desde que ele tem um prazo para escrever, ele tem que escrever.
Então, ao trabalho.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Tema de Casa


Sem fôlego, César corre para dentro de casa. Atropelando todos os objetos em seu caminho e quase despencando pela escada, ele entra em seu quarto. Vai em direção de Mike, sentado na beirada da cama e o abraça. As lágrimas descem quentes pelo rosto de César, tatuando a alma. “Desculpe, desculpe”, apertou forte Mike contra o peito. Choro desesperado, de tremer o corpo todo. De faltar voz, de enlouquecer alguém. Choro — até quase desmaiar. “Desculpe”, implorou mais de mil vezes.

Ao chegar na escola, César avista Joana no corredor. Eles se cumprimentam, ela sorri para ele. Joana olha carinhosa para César e ele lembra do filme que nunca viu. Olhos de serpente. Ele sorri de volta. César a pega pela mão de forma suave, convidando. Joana não entende e recusa. “Vem, eu quero te mostrar uma coisa”, insiste ele. Educado, como sempre foi, como sempre exigiram que ele fosse. “Quero que tu veja uma coisa”, diz ele. “Que coisa?”, pergunta aos sorrisos. “Vem”, insiste César, conduzindo Joana pelo corredor até a porta do banheiro masculino, adentrando. Serena, Joana pergunta a César o que ele queria que ela visse. “Olha para a parede”, diz ele. Joana fica de costas para César, que lhe dá uma forte joelhada no pulmão direito, produzindo um ruído seco. A garota quase desaba sobre o chão. César a agarra pela camiseta, esmurrando seu rosto até ela se curvar, cuspindo sangue. Ele então agarra a cabeça da colega fortemente pelos cabelos e bate com ela repetidas vezes contra o concreto, quebrando o nariz de Joana, abrindo seu supercílio e um talho em seus carnudos lábios. César vira o corpo da garota, jogando-o violentamente para dentro do boxe. O barulho das costas dela tentando vencer a parede demonstram que algo foi quebrado – um alicerce ou uma costela. Com o impacto, o sangue do rosto dela espirra na parede, decorando o branco opaco de vermelho. César estrangula Joana sobre o vaso sanitário, olhando em seus olhos. Olhos de vidro nos olhos de serpente. Ele emite um grunhido, sem alterar sua expressão facial. E solta o corpo. Joana está morta, espalhada sobre as fezes de alguém que não quis dar a descarga. César sai caminhando do banheiro, atravessa o pátio e dirige-se até o portão da escola. Só então começa a correr.

Com a porta do quarto chaveada às suas costas, ele olha direto para a prateleira. Ao avistar o pequeno Mike, César avança. Passos rápidos de gigante dentro da criança que já não era mais. Passa desapercebido da cabeça de tigrinho branco de pelúcia sem corpo, jogada aos pés da cama, e bate violentamente no rosto de Mike, virando e agarrando a cabeça, batendo incessantemente com ela contra o armário. O corpo cai no chão. César aperta o pescoço de Mike com toda a força.

César entra em casa sem falar com ninguém. Durante o almoço, olha fixo para o prato, o qual esvazia muito rapidamente, se levantando da mesa em seguida. A mãe pede para ele ajudar a tirar os pratos, pois ela não pode fazer tudo sozinha. César pergunta se ela pensa que ele é um inútil e começa a xingá-la. Ela começa a chorar. Ele se tranca no quarto.

Na hora do intervalo, Joana está perto do quadro-negro perguntando para César, sentado na primeira classe, em que circo ele trabalhava, referindo-se à roupa listrada que o garoto vestia. Metade da turma gargalha. “Mas eu gosto”, ele diz, quase se desculpando. Mais gargalhadas. Ele fica sério. As piadas proliferam ao redor de seus ouvidos. Ele começa a rir. Sem graça.

Ele ergue a cabeça em direção ao canto do quarto, contemplando a sua vítima de todas as semanas, e completa em sua agenda: “hoje eu dei a centésima surra em Mike.”

César está cabisbaixo. “Eu queria poder me enterrar nesse concreto”, sussurra ele para o melhor amigo Francis, que ri cínico e diz a ele com firmeza que foi muito bem feito a namorada tê-lo traído e abandonado, pois ele tinha sido avisado. César vira o rosto em direção a Francis, tremendo as mãos. Dentes trincados. Respira fundo e conta uma, duas, dez vezes. “E não adianta me olhar com essa cara”, avisa Francis. César volta a encarar o chão.

No dia de seu aniversário, César encontra seu pai, quase um ano após a última vez em que se viram. Ganha um orangotango de pelúcia. O pai diz que sente muito não poderem se falar mais seguidamente e que vai fazer de tudo para reverter essa situação. Uma mulher o chama, ele se despede apressado. César nada diz e também se retira, após observar seu pai ir embora com a namorada. Põe-se a caminhar pela calçada, abraçando vez ou outra seu presente. Batiza-o de Mike.

Às vésperas de completar dois meses de terapia, o psicólogo finalmente ouve a voz de César. Ele conta uma história confusa, fala mal de seus amigos. O relógio marca cinco horas. César se despede do psicólogo com um forte aperto de mão e dirige-se a até o ônibus que o levaria para casa. Ao chegar, sorridente e falando alto, encontra sua mãe na cozinha e diz que mal pode esperar até a próxima semana, naquele mesmo dia. A mãe olha terna para o menino e acaricia seu pequeno rosto. Diz que seu pai ganhou a liminar que reduz a pensão e que seu tratamento com o psicólogo seria interrompido.

Na escola, cada vez mais afastado dos amigos. Em casa, cada vez mais quieto, sobretudo nas manhãs seguintes ao acordar de uma madrugada de discussões familiares. Reuniões no colégio, bilhetes frequentes denunciando sua constante falta de atenção nas aulas. Seu pai acusa César de estar se drogando. Reprovação no final do ano. Seus pais se separam.

Com raiva, com muita raiva, ele percorre as paredes de seu quarto com os olhos. Acaba parando no tigrinho branco em frente aos livros. Caminha até a outra extremidade do quarto e começa a espancar o boneco.

César tem sua atenção desviada ao ouvir um dos meninos do outro lado do campinho de futebol gritar seu nome e não percebe o vizinho que segura seu calção e o abaixa até os joelhos, trazendo consigo as cuecas.  Todas as meninas sentadas no banco apontam para ele.

É Natal. Na casa da Tia Elaine, os adultos conversam perto da lareira. Dois casais com taça de vinho se encontram esparramados sobre o sofá da sala. Às duas horas da madrugada, quatro horas após o horário normal do toque de recolher, César é a única criança acordada. Caminha pela casa, ziguezagueando os parentes a sua volta, trazendo consigo o tigrinho branco de pelúcia recém ganho, até que puxa seu pai pela mão, interrompendo a conversa com suas tias, apontando para uma senhora no canto da sala, dizendo que ela era uma velha muito feia. Constrangido e irritado, seu pai o puxa pelo braço, dizendo que os meninos educados têm que ser discretos.