Lady Clara.
É assim que chamavam ela. Uma dama, uma princesinha.
Lady Clara. Lembrei disso hoje, e me deu saudades e, claro,
uma tristeza, daquelas que a gente sente quando pensa no passado e percebe que
é apenas isso, o passado. Que passou, acabou e não volta, não importa o quanto
a gente queira voltar. Ele não vai voltar.
Um pouco por isso, escrevo.
Escrever é uma forma de parar o tempo. A gente tira
fotografias que não vão se perder, o que está escrito, fica. A pequena Clara,
em meu sonho, ainda brinca no quadrado de areia, depois que cai do
escorregador. O maior dos tombos a esperava pouco tempo depois, e a esse tombo seguiram-se outros, um pior que o outro. Mas até ali, ela apenas brincava. O
homem alto e moreno ainda brincava com ela. Apenas brincava. No quadro de hoje,
as duas mulheres não estão presentes. Talvez a mãe ainda esteja no hospital.
Onde está a irmã? Talvez tenha ido no armazém, que já está aberto. Hoje é um
novo dia. Ela compra pão de centeio. Clara adorava roubar o miolo do pão, fazer
bolinhas com ele. Da casca, não gostava muito. Fazia a maior sujeira, e os caquinhos
de pão ficavam espalhados pela mesa de madeira, redonda e azul. Mesa de armar,
lembrei agora. Tudo que arma, se desarma um dia. E assim foi com aquela
família.
A história vai voltando aos poucos. Comecei a escrever isso
porque achava que ia encontrar essa história, e ainda acho. Minha cabeça dói de
novo, como se ela tivesse sido atingida por uma pedrada. De tempos em tempos,
ela volta a doer. Adoeci esses dias, como você bem notou. Você, que aos poucos
deixa de ser meu personagem para ser meu interlocutor. É para você que escrevo,
mas para mim, pois preciso chegar ao fim disso. Preciso, pelo menos, tentar. O
relógio continua seguindo em frente, assim como tento seguir. Não olhe para
trás, quem olha para trás não é digno do reino dos céus. Mas preciso fazer
alguma coisa com essas memórias. Não posso mais fingir que não estão lá. Não
posso, ao contrário do que acreditei todo esse tempo.
Preciso continuar escrevendo, porque acredito que essa luz
vai aparecer se as frases forem se acumulando. Como é o nome disso, livre
associação? É assim que pensamos, é assim que escrevo. O homem moreno, daqui a
pouco lembro do nome dele, trabalha em um hospital. Veja, não tínhamos nada.
Agora já temos uma praça, um armazém e um hospital, que surgiu hoje. Ele
trabalha em um hospital. Enfermeiro, médico? Ainda não sei detalhes. Por isso
continuo escrevendo. Para entender tudo que passou, quem sabe mudar alguma
coisa. A história é minha, posso fazer o que quiser com ela. Ou será que não?
Apenas devo escrever o que ela me dita. Apenas obedeço a sua voz. Na busca por
Clara, Lady Clara. Seu nome é Clara. Você gostou dessa frase, não? Eu também
gostei. E acho que ela também teria gostado.
Nunca gostei do meu primeiro nome. Mas ainda não é hora de
me revelar para você. Senão vai perder a graça, e espero que você continue
lendo mais um pouco. Espero que, de alguma forma, a gente mantenha esse
suspense, pelo menos por enquanto. Tudo que posso dizer no momento, e é isso
que eu queria que você guardasse, nunca gostei do meu primeiro nome, e um pouco
por isso não vou dizê-lo a você hoje.
Imagino que a essa altura do dia, e pelo fato de eu ainda
não ter dado notícias, você tenha pensado que eu não ia escrever. Pois se
enganou. Se eu parar, ambos morremos, lembra? Então vou continuar. Tarde, mas
vim até aqui, assim como sei que você vai aparecer, você que já está se
mostrando.
Enquanto isso, a pequena Clara desce uma vez mais o
escorregador.