terça-feira, 20 de outubro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 186


20 de outubro de 2015

21:33

Antes que chova, vou escrever.

Tive outra das aulas que Sarah ministra sobre essa gente louca que ela adora, e hoje ela falou sobre uma tal de Mahler, que dizia que quando o bebê nasce está na fase autista, durante o primeiro mês de vida, e ele só se importa com seu mundo interno; do segundo ao quinto mês ele fica na fase simbiótica, que não sabe exatamente o que vem dele e o que vem de fora; e lá pelo quinto, sexto mês... O que acontece mesmo? Esqueci. Mas fico me perguntando: como essa Mahler sabia disso? Chegava para o bebezinho e dizia: “fale mais sobre isso...”?

De qualquer forma, se bem me lembro, ela disse que no primeiro mês de vida o bebê ainda está em um prolongamento da vida intra-uterina, tipo, ele vai se portando como se ainda estivesse dentro do quentinho, castelo todo-poderoso e seguro do útero.

Que nem esse onde estou, pensei agora.

Acontece que nunca consigo criar uma infância tão infância para o meu bebê, Lady Clara. Minha criança linda. Minha princesinha. A Garota Cheshire me levou para ver o temporal que inundou tudo esses dias e abalou as estruturas do paraíso, mas por algum milagre não derrubou nada aqui, tirando as árvores, talvez por esta ser uma construção antiga, um hospital antigo, um asilo antigo, um cemitério antigo, um campo para almas penadas antigo. Não importa, mas lembro que vimos os relâmpagos que transformaram em dia a noite, que riscaram o céu, e a Cheshire disse que era lindo aquilo.

− Muito foda, foi o que ela disse.

E depois acrescentou que tinha medo. Dafne me disse que aquela exposição de artes para a qual Sarah tinha nos convidado, Festival Garotas Com Fendas, vai ser adiada. Agora que até cogitei, no escondidinho do de dentro de mim, ou na posição autista da Mahler, recém chegando do útero, mostrar um pouco desse monte de bobagem que escrevo aqui, mas tudo bem. Talvez Sarah tenha intuído que ainda não estou pronta.

Ainda não estou pronta. É por isso que não termino esta merda de história.

Mas antes que comece a chover, eu que só escrevo quando chove, e disseram que vem outro dilúvio talvez ainda hoje, me veio uma imagem na cabeça. Não sei se é invenção ou algum fiapo que escapou da floresta do meu inconsciente.

Maria que olha pela janela em um dia de chuva.

Parece uma foto interessante.

Mas não é essa imagem a que me refiro.

Uma garotinha em um dia cinza.

Um dia cinza que chove.

Uma garotinha caminha sobre a água, em um dia cinza, lindo feito um corte no pulso. Lindo feito a vida que ainda pulsa.

Cris, doce Cris. Que quer viver mais um dia. Como eu.

Às vezes pensamos pensamentos ruins. Queremos passar para o outro lado, e então decidimos ficar. Não podemos cruzar a ponte e depois decidir voltar atrás. Por isso não vamos.

Ficamos por aqui. Hoje.

Uma garotinha em um dia cinza, caminhando pelo verde da grama. Emolduradas pelo cinza do dia. Pelo cinza da vida. Maria Melancólica. Mas Maria Que Vive.

A pequena Clara que gostava de se atirar nas poças de água e escorregar pelas águas sobre as gramas, feito um bote rumo ao outro lado. Longe da dor. Me arrepio quando escrevo, mas de novo: não consigo parar. Não podemos passar para o outro lado, Cris. Não podemos, garotas. Temos que ficar aqui e fazer o melhor com isso que sobrou da vida – e se é isso que se chama esperança, então somos esperançosas. Talvez tenha sobrado muito mais do que consigamos ver. Dafne e sua novidade. Cheshire e sua risada. Tanta gente que entra e sai, e não sei como elas entram, nem saem.

Sabby, Acácia, Blossom. O Garoto Skinner. A Srta. Vygotsky. Sarah, a Sarah que sara.

Escrevi tudo isso e nem toquei no homem alto e moreno de cabelos lisos, Maldito Doutor Abusador. Talvez ele esteja morrendo dentro de mim.

De dentro dessa história.

Que espera a próxima chuva. Assim como aquela garotinha linda, a Menina Mais Linda Do Mundo espera. Um passeio pela chuva, por que não?

Talvez esta história termine em um dia de chuva.

E ninguém morra.

Mas sei que Clara vai passear, e sim: ser feliz.

22:01

sábado, 10 de outubro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 185


10 de outubro de 2015

00:00

Queria nunca mais ter que escrever.

Queria que passasse a dor.

Mas ela passa, e volta. Então preciso escrever. Uma nova madrugada começa. Tem chovido tanto. É bom poder escrever sem ser lida, sem ser encontrada. De novo a mágica acontece, e eu que jamais tenho algo realmente importante para dizer, parece que sei lá de onde, algo vem povoar minhas frases. Vem me fazer sonhar com ela: Lady Clara.

Que é no fim das contas o motivo de eu estar aqui.

De onde tirei isso?

Meu deus, a mágica acontece e não consigo parar de escrever. Meus dedos estão feito um trem em alta velocidade e não sei o que há do outro lado desta estação. Por isso escrevo. Vou esvaziando meu armário sempre tão cheio e sem saber o que escrever, caminho. A procura de Clara, perdida no fim desta caverna. Talvez lá onde o riacho corre. Longe do chafariz de Cheshire, ela que costumava conversar com Blossom e Acácia lá embaixo. Por onde andarão neste asilo que assim que a noite entra porta adentro começa a silenciar? Blossom, que me mostrou desenhos. Que escreve, sei lá, confissões. Que escreve para si mesma. Feito eu, Maria que escreve para si, na esperança de que ninguém leia este monte de merda que escrevo aqui.

Mas de novo me volta a mente a proposta de Sarah, que às vezes consegue me deixar atordoada, em sofrimento psíquico como se já não fosse o suficiente, e parece que nunca é suficiente, e odeio ela por causa disso – e então ela me diria que se a odeio essa tal de praga que o velho tarado foi espalhar na América está funcionando. Meu deus, essa maldita livre associação também faz parte de mágica. Eu tinha começado a falar na proposta de Sarah. Acho que ela quer mesmo que eu fale da minha não-história para os outros. A história que faço de tudo para que ninguém leia, mas que talvez – meu deus, Sarah realmente me contaminou com suas loucuras – meu inconsciente desgarrado queira que seja lida.

Se odeio mesmo Sarah, talvez não seja ódio. Talvez seja sim, mas disfarçado de dor. Porque dói se não escrevo. Se fico tempo sem olhar para esta historiazinha da qual fujo sempre que posso.

Vi mentalmente Lara, magrinha, novinha. A titia que deu pro papai, titia bobinha talvez, jovem, cheia de vida, que poderia ter cuidado de Clara, pelo menos não ter se divertido com o cunhado no réveillon, ele que não bebia há dez anos. E ele, maldito seja, pensou que o champanhe que escorria pelos peitos de Lara era mais importante que as lágrimas que escorriam pelos olhos de Maria, internada no hospital em plena noite de réveillon.

Maria, a mãe.

Mamãe linda.

Mamãe triste.

Mamãe abandonada.

Feito a filha, triste, abandonada. Esquecidas.

O que aconteceu com Jonas? Ele sempre foi assim, esquisito, quietão, falava coisas sem sentido, olhava para o nada, via coisas? Ele era como o cara do Rain Man? Ou o cara de Uma Mente Brilhante? Jonas Michel, pensei de novo.

Então me canso de escrever. O armário está um pouco mais leve. Não sei onde estão minhas irmãs-zumbis deste asilo. Dormem, passeiam, namoram escondido por aí? Lembrei da pequena Daf e sua novidade. Será que ela vai trazer pinturas novas? E penso em Cris, neste começo de madrugada. Talvez ela, que me disse, meio dormindo, meio acordada, que me ama, também faça parte, assim como a escrita, das coisas que não consigo mais viver longe por muito tempo.

De alguma forma que ainda não entendo, a cada madrugada, chego mais perto de Clara. Não sei explicar, mas é como se eu sentisse a sua presença. Não sei se em espírito, porque como às vezes cogito que esta história termina em um incêndio e talvez todos morram no fim, não sei se ela morreu.

Como morreu, porra? É só uma história que estou inventando. Só uma historiazinha.

E de onde estou tirando ela, pareço ouvir a voz sem-vergonha de Sarah me perguntando.

Nesses momentos não é dor: odeio mesmo ela.

Então suspiro.

De onde estou tirando esta história?

O abismo se aproxima de novo. O trem segue rumo ao desconhecido. Entro em um túnel dentro de uma rocha gigante. Sinto o brownie com cheiro de infância, vejo as sapatilhas de Lady Ballet, o caderninho de Blossom. A risada de Cheshire, ela que também gosta de chuvas e trovões. O trem segue, curando. Sarando. Afinal, Sarah sara. O trem que não me deixa em paz que talvez me conduza a um lugar melhor. Mesmo com medo, eu, Maria Medrosa, sigo conduzida por este trem.
Então sorrio.

O trem rumo a próxima estação, do outro lado desta rocha sem fim, o fim do túnel.

Lá onde me esperam Clara e Maria, a mãe.

00:31

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 184


Quinta-feira, 1 de outubro de 2015

23:03

− Nossa estrutura tem marquinhas como em um cristal, disse Sarah.

Era outra de suas explanações em nossa pequena sala de aula. Pelo menos aquele dia me pareceu pequena e – não posso deixar de registrar que pensei isto – aconchegante. De novo ela voltava a citar o velho tarado, o messias dela, e acrescentou: − Se a estrutura for frágil, ela pode ruir.

Tive uma vontade de chorar, mas foi só um segundo, tipo um sopro, um cochicho, um espirro de melancolia, e imaginei tudo isso que me rodeia ruindo, como teias de aranha ou cacos de um vaso que se quebrou e não pode ser consertado, um castelo de cartas talvez esperando esse sopro do qual falei.

Estou cansada. Nem sei por que decidi escrever nesta merda de novo.

Não sei. Não gosto de escrever. Não gosto porque dói.

Mas também não consigo parar.

Acho que as provocações de Sarah são apenas para eu começar a escrever. Porque ela sabe que não vou parar depois de colocar a primeira letra, a primeira palavra, as frases que vão sendo vomitadas de dentro de mim.

De dentro de mim.

Onde está a resposta.

Malditos psicanalistas. Sarah conseguiu me infectar.

Então ela disse na aula que estava pensando em fazer uma feira das artes, um salão do sonho. Isso depois de ela dizer que essas pessoas que escrevem vivem permanentemente em dois mundos, e por “essas pessoas”, suponho, ela se referiu a mim, porque me olhou de soslaio quando disse isso, e citou aquele Winnicott, do sou-eu-mas-não-sou-eu, e falou em um tal de espaço transicional, que para os artistas é matéria, mas também é sonho.

Um sonho bom, pensei. Um sonho sem dor.

Meu deus, sem dor.

Então ela falou nesse salão que ela talvez faça e cada uma de nós tinha que aparecer com algo que soubesse fazer bem. Qualquer coisa. Mesmo que fosse um sonho.

Lady Ballet disse que poderia tentar dançar. Uma dança, por que não?

Lady Brownie disse que faria seus brownies. Com cheiro de infância, lembrei.

Dafne disse que poderia pintar. Que inclusive tinha pinturas novas. E uma novidade.

Blossom disse que poderia citar um pensamento. Uma citação de Nietzche.

A Garota Cheshire disse que traria ela mesma.

E riu.

Minhas irmãs de asilo foram conversando e suas vozes foram ficando distantes, e já nem sei se aquela sala era pequena, embora me tenha parecido naquele momento, e elas foram para o corredor, e não vi mais nada, fui apenas caindo dentro de mim.

Será que Sarah espera que eu fale da minha história para uma plateia?

Se eu não estivesse tão cansada, talvez me arrepiasse. Talvez chorasse.

Então, mesmo cansada, me arrepio.

Talvez sorrisse.

Talvez cantasse.

Que bom que pelo menos isto que estou escrevendo agora ninguém vai ler.

Não sei, acho que nunca soube, o que sentir.

Penso no pátio lá embaixo. Escuro. Deserto. Se Cris estivesse por aqui, talvez fugíssemos para um passeio. Talvez, não sei.

Mostrar minha história? Que nem é uma história, não é nada, mostrar esta merda?

Mostrar Claudius, aquele filho da puta miserável? Lara, aquela vadia?

Mas então temos Jonas, que talvez fosse um bom irmão, mesmo – tenho pensado nisso – ele também vivendo dentro de seu mundo, e talvez só lá. Temos Marcos, que defendeu Clara, quando Claudius quis que ela bebesse, e ele bebeu em seu lugar. Temos a pequena Clara.

Minha menina linda.

E temos Maria.

A mãe.

Não sei se suficientemente boa, e não quero pensar nisso agora.

Temos Maria.

Maria como eu.

Minhas meninas.

E talvez elas mereçam uma outra chance de voltarem a vida.

Voltarem? É só uma historinha que inventei.

Mas estamos sempre em dois mundos, Sarah, você tem razão. Maria, a mãe, precisa viver, nem que seja em minha historinha. Clara precisa viver.

E com ela, eu também.

Meu deus, eu também.

23:31

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 183



Quinta-feira, 24 de setembro de 2015

21:44

Chove, choveu tanto, chove todos os dias.

Não agora, mas choveu hoje.

E ela veio pelo corredor e me segurou pela mão enquanto eu olhava pela janela. Virei para o lado, assustada.

− Pensei em voltar a dançar. A fazer os passos que eu fazia. Se a Brownie pode sonhar em caminhar, eu também posso sonhar com minha poesia.

Era Lady Ballet. Ela estava com ar diferente, talvez porque ande enamorada, mas acho que era algo mais. Notei um fundo de melancolia, o mesmo que noto em todas nós, garotas com fendas, e ela apontou para a chuva.

Tive vontade de chorar.

E por isso mesmo, sorri.

Entendi naquele momento que ela estava esperando eu vir para minha cela e escrever. Sangrando, sorrindo, dançando, amando, odiando e tudo mais que viesse pelo caminho, porque cada vez que escrevo vêm mares revoltos – mas que às vezes acabam em lagoas tranquilas.

Prometi a ela que iria escrever hoje, porque estava chovendo, e quando chove, sabemos, cúmplices: escrevo. A Garota Cheshire também é minha cúmplice. Mesmo que não a tenha visto ultimamente, e nem sei se ela ainda está neste asilo, porque personagens entram e saem daqui, de mim, de todas nós, mas cada vez que olho para o chafariz lá embaixo lembro da garota que é mais sorriso do que garota, a risada que é a própria encarnação da loucura e da beleza que ronda por esses corredores.

Então sei que tenho que escrever.

Não só por isso, mas também porque a dor voltou. Ou Dor, maiúscula de respeito. Ela volta cada vez que paro de escrever esta história que corre atrás do próprio rabo.

Que procuro a pequena Lady Clara.

E não encontro.

Mas sei que ela está lá. Estamos todas, perdidas dentro de mim, e isso pode significar flertar com a loucura neste lugar onde somos todas...

Normais.

Sei que Sarah falou em um tal Winnicott, um papo muito louco de falso self e verdadeiro self, que é mais ou menos assim: sou eu, mas não sou eu. Ou não sou eu, mas sou eu. Talvez nessa frase que escrevi assim sem pensar, como tudo o mais nestas palavras que ninguém lerá, esteja o coração de tudo que procuro. A resposta daquela família de dores, abusos e alguns amores que acabaram se perdendo. Maria, a mãe, Clara, Jonas, o irmão que era considerado estranho, muito quieto. Seria ele autista? Teria ele ficado assim depois de uma ou várias surras de Claudius, Dr. Filho Da Puta? Dr. Abusador, Dr. Maldito Seja, Dr. Queime No Inferno?

Sou eu, mas não sou eu.

Não sou eu, mas sou eu. Talvez esteja aí o coração desta história de merda.

Balanço a cabeça, mas ela não está doendo, não agora. Sou a rainha todo-poderosa no alto de meu castelo. No reino das meninas com fendas.

Lindas e doídas.

Sei que esse Winnicott também falava de uma mãe suficientemente boa. É claro que quando ouvi Sarah falando isso, provavelmente mais uma de suas charadas psicanalíticas, pensei, porque isso ainda me faz revirar na cama de madrugada: Maria, a mãe, foi suficientemente boa?

Ó, Maria você foi?

Será que a melhor mãe do mundo foi suficientemente boa?

Será que ela poderia ter parado o que aconteceu com Clara? Com Jonas, que também era seu filho? Suspiro.

Maria, mãe suficientemente boa. Sou eu, mas não sou eu. Talvez aí esteja a chave. Algo está para acontecer. Hoje quando parou a chuva, fiquei olhando aquele céu cinza, branco, sem cor, lindo, feito uma explosão nuclear. Talvez essa história termine em um dia de chuva. Talvez em um incêndio. Talvez, ó meu deus, em um incêndio e um dia de chuva.

A luz que nos cegou a todas.

Mas não importa. Suspiro uma vez mais. A dor está indo embora. O texto, cujo sentido jamais descubro, vai se mostrando para mim. Para você, que talvez me leia quando durmo ou me distraio.

Maria, mãe suficiente boa.

Obrigado, Sarah.

22:09

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 182


Segunda-feira, 14 de setembro de 2015

22:45

Estava caminhando pelo corredor enquanto Sarah dava uma de suas aulas e a porta estava aberta. Pode ter sido coincidência, mas como sempre acho que esses psicanalistas não dão ponto sem nó, na exata hora em que eu passava pela frente de sua sala ela falou de novo no trauma. E disse que o trauma pode ser apenas sugerido.

E então como se eu fosse possuída por um demônio, algo me soprou a ideia para você, que me lê quando durmo ou apenas me distraio, você, que certamente tem teorias sobre quem sou eu e qual a relação minha com a história que conto, com Maria, a mãe, com a pequena Clara, com Dr. Claudius, Lara, a vadia, etc, etc, etc.

E se nada daquilo aconteceu?

E se tudo for um incrível pesadelo?

De onde tirei essa merda de história, Sarah?

Mas algo aconteceu, disso tenho certeza. Ainda vejo queimaduras em meus braços. Algo me fez esquecer. Eu não sei se aconteceu mesmo, ou como, ou quanto aconteceu. Mas, meu deus, como dói. Às vezes dói menos, às vezes até me esqueço da dor. Mas ela está lá, me esperando. Para que eu, segundo li por aí, gaste a energia do trauma. Vá escrevendo e falando, mesmo que ninguém leia ou escute.

Além de você.

O caso é que fui até o chafariz em que Cheshire costumava passear e lá estava ela, como uma aparição. Ela perguntou se eu estava escrevendo, porque andou chovendo, e o friozinho voltou, então já está na hora de alguma coisa acontecer. Alguma coisa o quê, perguntei. E ela riu e me entregou um pedaço de papel. Comecei a ler. Era uma carta de Dafne. Ela dizia que estava com saudades, Saudades, Querida, Maria, e tinha novidades. Não ia falar ainda, na hora certa eu saberia, mas o que importa é que ela voltou a pintar e pintando podia quase sentir a minha presença, e como se suas tintas tivessem algo de espiritual, ela pôde meio que me ver: falando de esperança, falando de amor.

Tive certeza que a pequena Daf era louca naquele instante.

Mas sorri.

Loucas, lindas, meninas com fendas.

Lindamente tristes e dentro da dor encontrar novas cores. Tipo um arco-íris vindo das profundezas. Pensei em no que Dafne estava desenhando. Perguntei para Cheshire de onde ela tinha tirado aquela carta, mas ela já havia ido embora.

E se nada daquilo aconteceu, como talvez você suponha?

O que está por trás do mistério da pequena Clara?

Não ouço o piano. Nem fora, nem dentro de mim. Lá fora, faz frio. Não chove hoje. O riacho está distante. Ninguém passeia pelo campo escuro. Clara não está brincando na pracinha, nem Jonas ou Marcos descendo pelo escorregador, nem voando pelos balanços, em queda livre como se fossem pequenos super-homens.

Amanhã tem outra aula com Sarah, para quem quiser. Tenho certeza que ela e minhas colegas-zumbis, minhas queridas irmãs deste asilo, estão plantando sementes, charadas para eu decifrar. Uma vez mais penso que todas sabem como vim parar aqui – mas ninguém vai me dizer.

Cris já foi dormir. Silêncio neste lugar que às vezes é tão enlouquecedoramente barulhento. Mas agora há silêncio. Não ouço o piano, não vejo Clara. Não vejo Daf, nem Cheshire. Não vejo nem o abismo se aproximando.

E talvez isso seja o maior sinal de que estamos para colidir.

23:07

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 181


Segunda-feira, 7 de setembro de 2015

00:22

Uma nova madrugada começa. Já tinha decidido, mais uma vez, oficialmente abandonar esta historiazinha. Esta história de merda. Eu que nunca soube escrever, que jamais tive o que escrever. Mas a memória do piano me trouxe de volta. A este quarto, a esta madrugada. Cris dorme às minhas costas. Preciso escrever, disse a ela. Ainda perguntei se ela queria que eu escrevesse algo de especial, talvez para me deixar em paz e eu pudesse escrever.

− Escreve aí que eu amo você.

Olhei para trás e ela estava de olhos fechados.

Não sei se ela estava dormindo quando falou aquilo.

Sorri, apenas. Não vou parar de escrever para pensar no significado disso.

Cris me ama.

Maria que é amada.

É um bom começo de madrugada.

Silêncio neste asilo. Nenhum movimento no pátio lá embaixo, nem em volta do chafariz, nem no riacho lá distante. Nenhum movimento na praça onde a pequena Clara brincava. O único som que ouço, e só eu ouço neste lugar habitado por zumbis, por garotas com fendas, por gente louca e linda, é o piano. Maria, a mãe, tocando para a pequena Clara. O piano que me faz voltar a essa história.

E hoje penso que talvez Maria não tocasse apenas para Clara.

Talvez Jonas estivesse junto.

Jonas, irmão de Clara, sobre quem nunca escrevo.

Talvez Marcos fosse mais rebelde, mais irritadiço, foi ele quem defendeu Clara de Claudius e bebeu no lugar dela, quando o tio (e pai, embora o tio não assumisse que também era pai) quis que Clara também bebesse. Dr. Abusador & Alcoólatra.

Mas penso em Jonas. Ela era mais quieto. Hoje pensei que talvez ele tivesse um problema. Como dizem? Um certo retardo. Que palavra horrível. Por que Jonas era quieto? Autista? Problemas no parto? Será que Claudius bateu nele e ele ficou assim?

Dr. Maldito Filho da Puta.

Não sei, mas Jonas, pelo menos o Jonas que imagino hoje, o Jonas que também ouvia o piano de Maria, era um bom irmão (será que pensei nisso porque ontem foi dia do irmão?). Talvez Clara amasse ele. Se é que ela entendia o que era amar e ser amada. Talvez, de alguma forma, entendesse.

Pelo menos neste começo de madrugada, eu queria que eles três entendessem: Maria tocando o piano sobre um tapete gigante na sala dedicada a isso, a sala do piano, mãe tocando para seus filhos, Jonas e Clara. Nunca sei qual deles era o mais velho. Jonas era o mais quieto, pensei hoje. Por quê? O piano continua em minha mente. Triste e lindo, como desde o começo. Lindamente triste.

Sangrando e cicatrizando.

Mas talvez sorrindo também.

Jonas que talvez não soubesse o que era o amor, mas talvez sentisse. Maria, a mãe mais linda do mundo. Havia amor suficiente para todos. Todos, não sei. Clara e Jonas. E talvez Marcos, quando viesse visitar a família, mas que talvez já estivesse morando com eles, quando titio-papai-médico brincasse de médico com mamãe-titia-putinha, enquanto Maria, a melhor pianista do universo, deste e de outros mundos, estava ausente. Internada em lugares... como este onde estou, pensei agora.

Não importa. Talvez não haja dor no piano. Não na cena que tento capturar, naquela casa que não consigo descrever. Apenas a sala do piano. Talvez algumas escadas, imagino que uma casa grande, talvez uma casa que tenha pegado fogo, que é – volto a pensar – o fim desta história.

Um incêndio que consumiu a todos.

O fim de tudo.

Mas não sei se foi em uma casa ou um apartamento.

Talvez em uma cozinha.

Não quero falar disso agora.

Quero ir dormir pelo menos um pouco em paz.

Sim, o abismo se aproxima de novo.

Mas não vou pular hoje. Ainda não é hora.

E se posso parar o tempo, e talvez possa, porque aqui em meu castelo posso tudo, eu queria esta pintura, plasmar um momento no tempo. O piano que ligou os três, mãe e filhos.

Um momento de amor em família.

00:49