sábado, 30 de janeiro de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 193


Sábado, 30 de janeiro de 2016

03:34

A madrugada está quase na metade. Não consegui dormir, como várias vezes não consigo. Silêncio no asilo. Ontem choveu, trovejou, o céu chorando uma vez mais, e pensei depois de muito tempo que talvez não fosse um choro de dor, mas de alegria. Júbilo, pensei agora. Esta história talvez termine em um dia de chuva. Olhei pela janela e vi pequenos rios correndo lá por baixo, talvez alguns alagamentos por aqui, em volta do chafariz que a Garota Que É Mais Sorriso Que Garota gosta. Um chafariz sobrevivendo em meio ao dilúvio, glorioso na fúria dos deuses, que nem sei se existem, mas que derramam água aqui embaixo.

E não escrevi, eu, Maria Que Escreve Quando Chove.

Eu tive um sonho.

Não lembro de quase nada.

É claro que Sarah tem suas teorias, como sei que ela sabe como termina esta história de merda que não consigo escrever, a Lenda De Clara, A Garotinha Que Se Perdeu No Meio Do Caminho.

E sei que ela não vai me dizer, malditos psicanalistas do inferno, maldito Velho Tarado e a Melanie dos Seios Assassinos ou o Winnicott da Mãe Bacana.

Apenas lembro que sonhei com Maria, a mãe.

E ela estava em uma reunião, dessas que acontecem de vez em quando por aqui, talvez parecida com aquelas que Claudius, em meu delírio, ia e parou de ir, e Maria se apresentava. Ela dizia seu nome, e depois o outro nome.

Por um segundo, tenho vontade de chorar. Dou um passo mais perto do abismo.

Maria, a mãe, tinha um segundo nome.

Suspiro.

Mas ou não lembro, ou recalquei, ou essa merda se perdeu no buraco-negro do meu inconsciente, ou não pude ou não quis lembrar, ou simplesmente acordei antes. Ela dizia:

Meu nome é Maria.

E não lembro o resto.

Sei o que você está pensando, você que me lê quando durmo ou quando saio daqui, você, a voz muda e o rosto invisível, o espírito errante para o qual me dirijo: se eu lembrasse qual o outro nome de Maria (se é que ela tinha mesmo um outro nome e não foi apenas mais uma viagem de ácido onírico que meu cérebro criou para me confundir), talvez eu tivesse uma pista a mais sobre como vim parar aqui.

E também sonhei pouco antes, porque disso me lembro um pouco melhor, que todas aqui haviam ido embora, ou era eu que havia ido embora, mas não havia mais Maria Estranha por aqui, tipo, eu saindo de uma empresa ou fortaleza ou submarino em que todas me conheciam, minhas colegas deste castelo perdido em algum lugar do mundo, e agora estou em um lugar deserto. Pode ter sido uma explosão nuclear.

Pode ter sido o incêndio que consumiu tudo.

Chuva, incêndio.

Símbolos, símbolos.

Sarah ia adorar isso.

Saudades das aulas dela, ela que vai me contaminando com esses absurdos psicanalíticos. Saudades do cheiro de infância dos brownies da garota que anda em slow motion, a garota que queria esquecer, enquanto tento lembrar. Acácia e seu jeito de Alice, inocente e perdida aqui, a espera de Rodin, como Camille Claudel. Blossom e seu bloquinho de notas – será que ela continua rabiscando seus pensamentos?

Paro de escrever.

Penso.

Isso nunca acontece. Apenas escrevo o que meus pensamentos ditam, em tempo real, sem nunca ter a menor noção do que vou escrever, desde as primeiras palavras que escrevi aqui, eu que tenho vontade de mandar cartas às pessoas, e é isso que talvez seja o que faço aqui: uma imensa carta para alguém-ninguém, que virá salvar a princesa presa no alto do castelo do Hotel Hospício, e então parei e pensei.

Fiquei muda em meus pensamentos.

Olhei para o horizonte dentro de minha cela.

Lá embaixo, a chuva parou.

Acordei com o som do piano.

Um solo de piano na madrugada.

O piano que fazia muito tempo que não escutava.

Sonhei com Maria.

Acordei com o som do piano.

Perdido dentro de mim.

Então sorrio, como talvez o céu tenha sorrido com toda aquela chuva.

E acredito.

Um passo mais perto do abismo.

Obrigado, Maria.

Agora eu sei: um dia vou sair daqui.

E é então que começo a chorar.

04:05

domingo, 10 de janeiro de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 192


Domingo, 10 de janeiro de 2016

00:51

Cris disse que não imaginava que eu fosse tão louca. Ela disse isso, acho, a partir da minha cara, que como sempre não consigo descrever. Aliás, não consigo descrever merda nenhuma, nem como me sinto, mas perguntei apenas o que seria uma pessoa normal. Ela conseguiu descrever o que seria, aos olhos da sociedade. E acrescentei: graças a Deus não somos assim. Ela riu e disse que eu deveria estar com abstinência de escrever.

É verdade.

Sempre que fico um tempo sem escrever, mesmo que lute – sim, eu luto, mas sempre perco – para não retomar aquela historinha insossa e cheia de dor que não consigo terminar, acontece isso. Fico mal. Maria Que Precisa Vomitar.

Me dói o estômago quando escrevo isso.

Lembrei de Ballet agora, que não vi mais.

Sei que um ano novo começou e não escrevi. Não que alguém sentisse falta. Além de mim, porque adoeço quando fico só presa dentro de mim, no mais fundo do inalcançável fim desta caverna. Não sei o que escrever, a mágica ainda não voltou. Meu peito dói. Sarah disse, desde o começo, apenas escreva. Escreva e não julgue, escreva e não pense.

O ano novo. Claudius voltou a beber depois de dez anos? Lara, titia putinha, estava junto, podia estar com uma roupa branca de réveillon, branca e apertadinha, ou talvez abrisse a camisa, mostrasse o sutiã, talvez eles já estivessem flertando, não, flertando, não. Talvez já estivesse rolando algo, certamente que estava. Claudius que deveria ter ido para o hospital cuidar de Maria, internada em plena noite de réveillon, mas preferiu fazer um brinde com a titia-putinha-com-roupa-branca-de-reveillon, ela que deve ter perguntado, vamos fazer um brinde, doutor?

Vagabunda.

E Clara, Jonas e Marcos?

Foram dormir mais cedo?

Se ele não tivesse tomado aquele gole, a história de Clara teria sido diferente?

Mas talvez ele não tenha tomado. Tenha dito não para Lara. Não sei se isso foi possível, mas depois de criar aquela cena da árvore de Natal gigante com papais noéis de chocolate – sim, isso eu lembro que escrevi; será que minha memória está voltando aos poucos? –, passamos pela virada do ano aqui no Asilo, e foi uma entrada tranquila.

Às vezes até esqueço do tempo que estou aqui.

Penso em sair, mas naquela noite, e às vezes: quis ficar um pouco mais.

Talvez um ano novo com um pouco de esperança, nem que essa esperança seja eu escrevendo para mim mesma, para sanar a dor que volta de tempos em tempos. A mágica ainda não voltou, não consigo mais escrever.

Jonas e Marcos. O que aconteceu com eles?

Minhas costas e meu peito doem. A escrita vem difícil. As palavras não saem. Mas Sarah disse apenas: escreva. Sei lá por quê, senti falta de suas aulas agora, na madrugada de sábado para domingo. Penso em Brownie, Cheshire, Acácia, Sabby e Blossom. O Garoto Skinner. Estarão dormindo? Passeando escondidos por aí? Cheshire e seu chafariz, Blossom e seu bloquinho. Brownie e seus doces com cheiro de infância. Dafne e sua novidade, dormindo – ou acordando, chorando, dormindo. A mágica não voltou. Não consigo mais escrever.

Cris falou em voar pelos muros.

Não quero perder minha garota.

Outra, não.

Eu voaria pelos muros, se pudesse. Mas não há nada do outro lado. Então ainda me resta continuar desenterrando esse fóssil em busca daquilo que não encontrei desde que comecei a escrever: Clara brincando na praça com sua mãe Maria, ou talvez deitada sobre suas costas, ambas sobre a grama, em um dia de sol. Uma praça em família. Aliás, uma família. Sem Claudius com cheiro de álcool, Dr. Inatingível E Alcoólatra, nem Lara Puta de Roupas Brancas e Apertadas de Réveillon, nada desse lixo.

Não, apenas uma família.

Talvez houvesse em algum lugar uma piscina inflável de gominhos em que a pequena Clara, seu irmão Jonas e seu primo Marcos, brincassem e rissem. Eles riam, eternos como uma risada infantil.

Um risada infantil com inocência.

Inocência eterna que não poderia ser quebrada.

Por um dia que eu gostaria de eternizar em uma foto, e acho que escrever é isso mesmo, a gente poder parar o tempo: a inocência e a risada infantil não seriam quebradas.

Suspiro.

Bem aos poucos, a mágica começa a voltar.

Não sei se sorrio. Mas sei que não tenho mais vontade de chorar.

Obrigado, querida Cris.

01:23

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 191


25 de dezembro de 2015

01:34

Há pouco estava chovendo.

Faz quase um mês que não escrevo aqui. Não que alguém fosse sentir falta, nem você que suponho me ler escondido ou escondida, você que talvez só exista em minha imaginação, como também possivelmente tudo que me rodeia. As garotas, o Asilo. A pequena Clara. Não sei. Apenas vou escrever qualquer bobagem porque eu sei: ninguém vai me ler.

É madrugada de Natal.

Choveu faz pouco. Quisera que ainda estivesse chovendo. Pelo menos eu teria um motivo para escrever, embora ainda não entenda qual a relação que existe na chuva + eu + o fim desta história.

De novo me arrepio.

A coisa está voltando.

Maria Chorona Que Se Emociona E Se Arrepia.

Não escrevi mais depois que Cris voltou da ala das Meninas Que Voam Pelos Muros. Queria ter visto ela hoje. Ela, que eu saiba, não tentou mais voar pelos muros. Mas uma vez Sarah me disse que esse desejo de voar pelos muros, nas pessoas que têm tendência a querer voar pelos muros, para o infinito e além, volta de tempos em tempos.

Não quero perder minha garota.

Não quero perder outra garota.

Outra, não.

Do fundo da caverna do poço fundo e escuro do inconsciente, este lugar para onde detesto olhar, e Sarah sempre soube disso, e às vezes odeio ela um pouco por isso também, me sopra uma vontade de chorar. Não quero perder outra garota.

Suspiro.

As palavras escorrendo, caindo, chorando, gemendo, sarando. Feito vento em corte que deixa cicatriz.

É madrugada de Natal. Não consegui, nem sequer tive vontade de, escrever depois que Cris voltou da ala das Meninas Voantes. Claudius voltou a beber, depois de dez anos em abstinência, acho que em uma noite de réveillon, quando deveria ter ido para o hospital cuidar de Maria, a mãe.

Maria, como eu, em um lugar – pensei agora – talvez parecido como este.

Mas não quero falar de Claudius agora, nem da titia putinha Lara, que gostava de derramar champanhe sobre o corpo em vez de cuidar da sobrinha Clara, do sobrinho Jonas e do filho Marcos.

É madrugada de Natal.

Não sei se sonhei ou sonhei que sonhei, mas Sarah me perguntou algo sobre o Natal. E esses psicanalistas do demônio sempre largam as iscas para pessoas perturbadas que não conseguem se conter, e as palavras vão saindo. E a gente fala. Ou escreve. E as imagens aparecem. Mais ou menos do jeito que escrevo aqui, sempre a partir do nada.

Blossom estava com seu caderninho, escrevendo sobre o sentido da vida. Cheshire passeou pelo chafariz. Lady Brownie disse que quer fazer doces para o fim do ano. A pequena Dafne finalmente apareceu com sua novidade, e passeia com sua novidade, que chora o dia inteiro e de noite, mas quando dorme é sempre cuidada com carinho pela pintora que me prometeu voltar a pintar – talvez sua pintura seja outra daqui para frente. Daf, mamãe. Seria uma pintura e tanto. Uma grande árvore de Natal, Dafne e sua novidade, felizes como mãe e filho. A Garota Nêutron também veio conversar comigo e Brownie nos corredores, perguntou se eu estava escrevendo. Eu disse que ia escrever, mas na verdade não tinha a menor vontade, como aliás geralmente não tenho, de escrever. Mas Nêutron, a Garota Que Sabe Das Coisas, quer que eu escreva. Acho que Daf também. Sabby costumava dizer para eu escrever, ela que não tenho mais visto pelos corredores. O Garoto Skinner, não sei. Acho que a Srta. Vygotsky se importava também, assim como Lady Ballet, que sempre quis voltar a dançar e parar de jogar as coisas fora, e acho que ela também já foi uma garota que quer voar pelos muros.

Mas talvez antes de começar toda a desgraceira naquela família, pensei agora, Clara apenas corresse pela casa, uma casa grande, com uma sala para o piano e para uma imensa árvore de Natal, que ia até o teto, com pequenos papais noéis de chocolate pendurados, uma corrente com luzes que piscavam, bolas coloridas. Clara, Jonas e Marcos pegavam os papais noéis antes da meia-noite, e comiam. Lá pela meia-noite só sobravam os papais noéis que ninguém tinha achado. Eles comiam, se sujavam de chocolate. Eram felizes, riam, devoravam papais noéis.

E acho que este é o melhor presente que posso imaginar, eu também me sujar, ser feliz e rir do absurdo da vida: devorar papais noéis, longe de toda dor, de todo o vazio que existe perdido nesta caverna, mas que aquele piano há de limpar.

E então, quando acharmos que é quase meia-noite, e não há mais papais noéis de chocolate a serem encontrados, descobriremos que no fim de tudo ainda haverá papais e mamães noéis nos aguardando.

E mais uma vez: seremos felizes.

Feliz Natal, doces crianças.

02:06

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 190


1 de dezembro de 2015

21:25

A rainha perdida no alto do castelo volta à vida. Anoitece. Silêncio no asilo. Não tenho a menor ideia do que vou escrever – ninguém vai ler esta merda mesmo, para que se preocupar? Mas queria registrar que Cris saiu da ala das Meninas Que Voam Pelos Muros. Um dos médicos disse que não gosta da palavra “cura”, acho que mais ou menos como diziam – pelo menos vou escrever o que meu inconsciente dita neste instante – naqueles grupos que Claudius ia, que talvez a pequena Clara tenha ido, talvez Maria, a mãe, que sofria junto vendo o Sr. Doutor tomando uns traguinhos – mas ele não bebia. Ele voltou a beber depois de dez anos quando, em vez de cuidar de Maria, a mãe, internada em um hospital – parecido com este lugar onde estou, não posso deixar de mencionar – estava se divertindo com a cunhadinha jovenzinha, titia putinha que deveria ter cuidado da sobrinha. Lara.

Suspiro.

Sempre volto ao mesmo assunto: a pequena Clara. Sua mãe. Maria.

Maria, como eu.

Internada em um hospital. Como a doce Cris, que ficou na ala das Meninas Que Voam Pelos Muros.

Maria, a mãe, tentou se matar?

Meu deus, nunca tinha pensado nisso.

Será que foi isso que aconteceu naquele réveillon?

A pequena Clara também?

Sim, Lady Clara tentou. Meu deus, a coisa está voltando. Todos morrem no fim?

Como vim parar neste fim de mundo?

De novo, me volta o medo de enlouquecer.

O que soa irônico vindo de alguém neste fim de mundo.

Suspiro de novo.

Ouvi pelos corredores que Sarah está meio doente. Ela não ministrou a aula hoje. Fiquei na dúvida com aquele Lacan (quando acho que ela não pode vir com nada mais insano que o velho tarado, ela sempre dá um jeito de se superar), mas acho que ele falava em estádios do espelho, tipo assim: Clara vê outra Clara, Clara percebe que vê uma imagem de Clara, Clara percebe que vê a própria Clara. Mais ou menos assim. Quem diria, essas loucuras andam me contaminando, como se fosse possível piorar em um lugar desses.

Maria Psicanalista.

Meu deus, onde nós vamos parar?

Sei que Sarah, antes de adoecer, tinha liberado Cris para vir me ver. Aliás, talvez ela venha aqui daqui a pouco. Não entendi bem por quê, e se há mesmo um motivo (deve haver, esses psicanalistas do demônio não dão ponto sem nó), mas Sarah permite algumas regalias entre Cris e eu, tipo, visitas no quarto depois do horário permitido, jantar mais tarde, depois do horário oficial.

A história que não compreendo está se desenhando e ainda não consigo decifrar.

Penso em Lady Ballet, a pequena Daf. Tanta gente que entra e sai daqui e tenho dúvidas se elas existem ou são apenas frutos da minha imaginação, como talvez tudo o que escrevo trancada aqui. Dafne e sua novidade – estaria ela pintando como disse que ia fazer? Lembro que uma vez a Ballet falou em recaída, não sei por que lembrei disso agora. Todas temos coisas que queremos jogar fora, pensei agora. Coisas que entraram e devem sair. Vomitando ou escrevendo, que no fundo são a mesma coisa.

O Garoto Skinner.

Cheshire, que não vi mais em volta do chafariz, junto com Blossom e seu caderninho. Acácia, correndo de um lugar para outro.

Vou escrevendo e essa coisa que não consigo nomear – que pode ser dor, vazio, vida ou esperança – vai se ajeitando feito as melancias da carroça. Acho que é por isso que escrevo. Ainda não entendo qual a mágica que acontece que me faz cuspir, digo, vomitar essas palavras do de dentro de mim – e no fim algo acontece. Que pode ser uma luz, esperança, um sentido.

Um amor de mãe a espera de que sua pequena princesa volte.

Tenho vontade de chorar.

Mas sorrio.

Tudo é sobre ela. Sobre o piano. Sobre a chuva. Sobre o alto do castelo. O jardim, o chafariz. Um amor de mãe que jamais esquece a filha. Jamais abandona a filha.

Jamais abandona.

E resgata sua princesa das profundezas do pântano.

Uma mãe jamais abandona, jamais esquece.

Maria, mamãe linda.

Pequena Sweet Lady Clara.

Não sei mais o que escrever, mas sinto que cheguei mais perto hoje.

Um pouco mais perto.

De resgatar uma princesa.

21:55

domingo, 22 de novembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 189


22 de novembro de 2015

00:50

Uma nova madrugada está começando.

Silêncio no asilo.

Silêncio fora, barulho no de dentro de mim.

Visitei Cris hoje. Fui até a ala das Meninas Que Voam Pelos Muros. Apesar do dia quente, ela estava com um moletom negro invertido e de chinelos. Perguntei como ela estava. Ela ficou feliz de me ver. Doce Cris. Ela me contou que as garotas de lá esticam as mãos para andarem de mãos dadas com ela, e nesse momento nós duas saímos caminhando. De mãos dadas, como ela gosta. Cris disse que algumas das Meninas Que Voam Pelos Muros gostam de olhar para ela e para elas entre si enquanto tomam banho, algumas das mesmas que gostam de andar de mãos dadas.

− Isso aqui é uma coisa muito lésbica, disse ela.

Caímos na risada.

Doce Cris. Perguntei se ela ainda pensava em voar pelos muros.

Ela disse que hoje não.

Quis levar ela de volta, mas sei que não posso. Não posso resgatar ela do de dentro de si, e talvez Cris tenha o mesmo problema que eu: ambas queremos encontrar nossa pequena Clara.

Minha filhinha linda, garotinha especial. Não mais linda como um corte no pulso, mas apenas: linda.

Em minha mente de pretensa escritora, imaginei Clara tocando o piano de Maria, a mãe. Clara tocando seu próprio piano, ou o piano que um dia seria seu. Maria ensinando ela a tocar, talvez começasse com parabéns a você, depois fosse para o Beethoven, não sei.

Cris disse que tem uma das Meninas Que Voam Pelos Muros, que havia ido para lá porque tentara se matar na prisão, que sempre chama ela de Monique. Meu nome não é Monique, ela disse várias vezes, mas acaba sempre sendo chamada de Monique. Lembrei na hora de quando Sarah, falando daquele Winnicott, disse que a gente tem que conversar com o falso self para saber como ele pensa. Quer dizer, a gente não, só os perturbados dos psicanalistas. Conversar com o falso self é conversar com a loucura, entrar na paranoia alheia. Disse isso para Cris e sugeri, para não puxar briga com a Menina Da Prisão, que se ela quisesse chamar ela de Monique, que deixasse.

− Que diferença faz? Aqui eu posso ser quem eu quiser. Estou num hospício.

Rimos de novo.

Se todo mundo soubesse como faz bem para a sanidade vir para um lugar como esse, pensei, acho que este lugar deveria ser maior. Aliás, enquanto passeávamos, vi uma vez mais como este lugar é imenso. Paramos ao lado de um barranco de concreto, passando por um estacionamento (acho que eles colocam ambulâncias lá), caminhando pelos verdes, as pedras, longes do chafariz que Cheshire adora. Como nunca reparei em nada disto? Apenas tinha uma vaga memória de um riacho lá embaixo, em algum lugar disso que parece uma floresta, mas que na verdade é cheio de jardins e bancos, onde também sentamos para conversar.

Fiquei com medo de Cris querer voar pelos muros de novo. Hoje ela não vai, disse. Ainda há esperança. Podemos encontrar nossa pequena Clara. Aquela criança linda que era a mais linda do mundo antes que a vida fizesse esse monte de merda que fez. Sim, a pequena Clara está nos esperando, esperando a todas nós, Garotas Com Fendas, Meninas Que Voam Pelos Muros, Meninas Da Prisão, Meninas Que Sonham. Todas sonhamos, então ninguém vai pular pelos muros. Estamos vivas.

Sonhamos.

Podemos voar.

Não pelos muros, mas pela estratosfera. Sobre as nuvens, rumo ao céu. Onde encontraremos nossa paz, mas antes dele encontraremos aqui: nesta terra, neste solo. Neste lado dos muros enquanto não chegamos do outro lado. Então não haverá mais muros. E seremos todas rainhas dos castelos de nossos reinos encantados. Rainhas eternas.

Soberanas.

Com sentido.

Rainhas felizes.

Rainha deste lado do paraíso, querida Cris.

01:15