terça-feira, 8 de março de 2011

Isis e o Dia das Mulheres

Em homenagem a todas as meninas do mundo hoje, publico o segundo conto da Isis, continuação do conto publicado neste post:


Isis entrou no restaurante de beira de estrada, igual road movie. Procurou o homem que dissera que ia estar ali, de novo um homem a sua espera, feito encontro adolescente. Ele era grande como uma carreta e estava sentado em frente à mesa de madeira, ao lado da janela, alheio ao movimento dos carros que vinham da rodovia e estacionavam no posto ali perto. Enterrava a bomba na cuia do chimarrão e a girava como manivela. Colocou a água no abismo de erva-mate e tentou tomar os primeiros goles. Pela cara de nojo, estava entupido. Isis parou ao seu lado:

— Olá, caminhoneiro.

Ele olhou para ela, que completou:

— O segredo é soprar dentro da bomba e tampar com o dedo.

E disse, sem alterar a expressão:

— Assim fica melhor para chupar.

O caminhoneiro sorriu.

— Essa foi a coisa mais linda que eu já ouvi de uma mulher.

Isis ainda não tinha certeza do que estava para fazer. Um segundo de suspiro foi suficiente para recobrar a chegada da faculdade e a cegueira que a fez ir direto para casa, nem bem sentir as pernas ou os bairros pelos quais o ônibus passou e seguir possuída até sua casa, seu quarto, o armário e o álbum de fotografias. Assim como nem bem sentiu as fotos que vieram antes, a obsessão depois que entrava na cabeça só saía por milagre. Encontrou a foto da festa na qual vinha pensando nos últimos quilômetros, semáforos e paradas de ônibus. Duas meninas abraçadas que pareciam felizes, e que foram felizes, em meio a pessoas estranhas, que as fizeram estranhas, mas que ali agrupadas nem desconfiavam que um daqueles abraços tinha uma história oculta, igual a maioria dos abraços, mas ao contrário do senso comum do que seus pais esperam para seus filhos. Abraço de ovelhas negras. Isis segurou a fotografia com as duas mãos, pensou em rasgar imagens para limpar o espírito do passado que causou dor no presente, parecia papo de revista para adolescentes. O peito doía, queimava, e fez a única coisa que poderia fazer: jogou a foto sobre a mesa e recomeçou a chorar.

Depois de vários minutos, impossível saber quantos, e da limpeza que provocam as lágrimas, enxergou a fotografia com serenidade. Reparou no em volta delas, e nas outras meninas rindo para a câmera, amigas de colégio, depois de faculdade. Lembrou do cartão de natal que recebera, esperando uma resposta, e na resposta que nunca chegou. As cartas que nunca foram escritas. Vasculhou o armário, abriu o pote com os Ursinhos Carinhosos, sortido em cartas. Procurou o endereço. Jogou as cartas no chão, uma a uma. Não encontrou o remetente. Tinha que sair de casa, colocar alguma ação naquele momento até que passasse o dia, e depois outro dia, e ela pudesse esquecer, tudo o que queria era não pensar. Suas mãos tremiam. Foi até o telefone, discou o número. A voz feminina atendeu do outro lado, oi, sou eu. Isis perguntou se podia passar lá.

Caminhou as quadras que a separavam da voz do outro lado da linha, ainda respirando ansiedade. Ao se aproximar da casa de madeira verde ao fundo do pátio com areia e casinha de cachorro, Isis contemplou a morada e gritou pelo nome de Isabel. Lá dentro, uma criança pulando. A porta se abriu e uma mulher de cabelos lisos negros e compridos, que balançavam sobre o corpo gordo, veio até o portão.

— De novo por aqui? perguntou ela, sorrindo com sarcasmo.

— É, eu. Queria saber se você não tem o endereço das gurias.

— Que gurias?

— As gurias.

Isabel disse para ela entrar. Seu rosto parecia uma bolacha Trakinas, e quando estava de mal-humor – o que acontecia sempre que Isis a visitava – parecia ainda mais gorda. Isis a seguiu até entrarem na casa. A filhinha dela corria pela sala. Filha sem pai. Isabel escreveu o endereço de uma das meninas da foto, disse que era o único endereço que ainda tinha, e lembrou dos tempos em que eram colegas. Do tempo em que ficavam debochando dela por ser gorda e a chamavam de Stay Puft. Isis disse que aquilo era passado, e que nunca quis magoá-la. Isabel disse que não estava magoada, estava apenas lembrando os velhos tempos. Quando deixavam de sair com ela, com medo de os caras não chegarem nelas nas festas.

— Que ironia, não? Imagino que agora isso não seja mais importante para você.

Silêncio. Isis sequer conseguiu engolir em seco. Tentou remendar, disse que aquilo tinha sido há muito tempo, e Isabel disse que tudo bem, passado é passado. E então perguntou:

— Quer mais alguma coisa... sapata?

Os olhos de Isis faiscaram e um calor estourou corpo acima. Mas nada disse. Apenas agradeceu o endereço e se dirigiu à porta. Isabel foi quem abriu, acrescentando:

— Deixa que eu abro. Senão você pode não voltar.

Isis mal enxergou os metros que a separavam do portão e da liberdade. Demorou ainda para recobrar a respiração, até que parou na esquina. Olhou de volta para a casa. Podia ir lá, colocar tudo em pratos limpos. Talvez pedir desculpas pelos anos de deboches. Talvez dizer que ela nem era gorda, a ofensa suprema a uma mulher, qualquer mulher. Caminhou de volta ao portão, mas quando chegou em frente à casa, desistiu. Não estava com espírito para reparações. E provavelmente não estaria nos próximos meses, então decidiu dar um tempo de Isabel.

Entrou no ônibus até perder-se em mil pensamentos, e travou diálogos e possibilidades em sua cabeça além daquele endereço. Se tivesse o e-mail, seria tão mais fácil. O que andaria fazendo da vida, o que andariam, as outras todas, fazendo? Com o pensamento nublado, estava quase fora dos limites da cidade e seu estômago a lembrou que estava sem comer há horas. Não sabia onde estava, mas puxou a cordinha e desceu em frente a um restaurante de beira de estrada. Caminhou até ali e entrou, sentando ao lado de um homem grande em frente ao balcão. Devia ser caminhoneiro. Isis pediu uma torrada e um café, a garçonete disse para ela aguardar um minuto. O homem a seu lado a encarava, lobo sedento. Isis o encarou de volta.

— Este aqui não é lugar para meninas bonitas virem sozinhas.

— Não se preocupe. Eu sei me defender. Se não souber, talvez eu peça a você.

O homem sorriu.

— Que bom. Pelo seu jeito de caminhar, achei que você não gostasse de homem.

Isis sorriu de volta:

— Eu gostava. Não gosto mais.

O homem a olhou dos pés à cabeça.

— Que pena. Até pensei em convidar você para dar uma volta.

— Você dirige caminhões?

— Sim. Por quê?

Isis tirou o papel com o endereço do bolso.

— Sabe de alguém que vai passar por aqui?

Ele leu o endereço. Disse que não. Isis recolheu o papel. Suas mãos ainda tremiam.

— Mas se você quiser, posso mudar meu itinerário.

Isis olhou de volta para o caminhoneiro. Dessa vez conseguiu engolir em seco. A torrada e o café chegaram. Isis nada disse. Comeu a torrada, abocanhando grandes pedaços para terminar logo. Jogou o café goela abaixo e se levantou para pagar, ainda muda. O caminhoneiro disse apenas:

— Se mudar de ideia, estarei aqui amanhã a essa hora.

Isis olhou para trás uma última vez, e acenou com a cabeça. No dia seguinte, telefonou ao chefe dizendo que não ia trabalhar, que estava doente. Dormiu até tarde, tentando não pensar mais naquela fotografia, mas tudo o que viu ao acordar foram aquelas quatro meninas perdidas no tempo sorrindo juntas sobre a mesa. Meio-dia, uma hora, uma e meia. A tarde demorou a passar. Nem tudo passava, ao contrário do que diziam os que tinham fé. Ela não tinha, não depois do dia anterior, mas como ouviu de Bob Dylan que quando você não tem nada, não tem nada a perder, resolveu arriscar. O coração aos galopes de novo, malditos seres que eram só sentimento.

Já era de tardezinha quando Isis subiu no ônibus e pediu ao cobrador para descer perto daquele restaurante de beira de estrada, embora não tivesse certeza se aquele era mesmo o lugar. Na pior das hipóteses, o homem não estaria lá, e aquilo seria um sinal de que deveria esquecer aquela fotografia, rasgá-la e seguir em frente. Então Isis desceu do ônibus, entrou no restaurante e agora ali estava ela, em frente ao homem tentando montar seu chimarrão:

— E então? Ainda tem lugar no seu trem?

O caminhoneiro sorriu malicioso:

— Sempre tem lugar para mulheres bonitas.

Isis sentou a seu lado e disse, com voz tranquila:

— Se encontrarmos alguma pelo caminho, paramos para dar carona.

2 comentários:

  1. Essa série da Isis é uma espécie de on the road lésbico? Promete, quero dizer, faz a gente esperar algo mais adiante. To be continued...

    ResponderExcluir
  2. Hehehe. On the road lésbico, é? :)

    Bom, talvez tenhamos uma novela nascendo aí. Escrevi mais alguns textos com a Isis, e tenho outro no forno. O teu comentário me reativou a ideia de ligar os textos todos e trasformar em uma narrativa longa.

    Mas sobre isso falamos melhor quando rolar aquele tão esperado coffee com letras.

    Sim, to be continued...

    ResponderExcluir