sábado, 23 de abril de 2011

Isis em Dois Tempos

Aproveitando o feriadão de Páscoa, e o fato de que ainda chove e troveja lá fora - sinal de que boas novidades se aproximam -, publico hoje mais dois textos da Isis, que deixo hoje em homenagem ao Mauro Paz, colega do Laboratório da 8inverso e conterrâneo, que está publicando sua Garota Azul do Lago em capítulos, e que gostou da história e me incentivou a terminá-la (em breve publico outro capítulo aqui).

I

Detestava acordar com aquela sensação de ressaca mesmo sem ter bebido, mas era o que a vida estava me oferecendo. Tinha que levantar da cama, e esse era o pior momento do meu dia. O mais difícil, o que eu sempre ficava postergando, fritando de um lado para o outro na cama, como se vira bolinho de carne. O corpo sempre demorava a entender que a noite de sono havia acabado, talvez porque não andasse com muitos motivos para viver um novo dia. Lavei o rosto, escovei os dentes, ainda zumbi. Esquentei o leite, não encontrei a Maracujina, nem o Lexotan, nem a Imipramina, que já não tomava há três dias, e essas coisas não são como aspirina, não são como curso de inglês que a gente desiste de fazer no meio do semestre. Meu estômago ainda doía, mas isso o psiquiatra não podia curar.

A buzina além da porta da sala chamou, e me apressei. Passei a escova nos cabelos para não chegar tão em fim de carreira na agência e saí. Letícia abriu a porta do carro, entrei, o carro partiu. Ela era loira, bem peruazinha, igual a maioria das mulheres do serviço. Perguntou se íamos para o melhor lugar do mundo, sorrindo ironia, e eu disse que sim, se aquele fosse meu último dia de vida tudo o que eu queria era estar trabalhando na agência. Ela colocou um cd do Cazuza, começou a falar do tempo, na previsão disseram que ia chover no fim-de-semana. Oxalá chovesse mesmo, eu não tinha grandes planos para o findi, e se todo mundo estivesse em casa reclamando do tempo, acho que não me sentiria sozinha. Letícia disse que seu time tinha perdido o campeonato, eu respondi que fazia parte, às vezes a gente ganha, outras não. Acho que ela esperava que eu dissesse algo mais condoído do que aquilo, mas a verdade é que eu não estava nem aí para futebol ou para o tempo. Até que entrou: “O teu amor é uma mentira / que a minha vaidade quer”. Contorci meu estômago e pus as duas mãos sobre ele. Ela perguntou se eu estava com dor de barriga, eu disse que sim, mas que ia passar. Ela disse que se era gastrite, o bom era espremer metade de um limão sobre um terço de copo d’água e tomar em jejum, era tiro e queda.

“O nosso amor a gente inventa pra se distrair / e quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu”.

Já tinha ouvido aquela música dezenas de vezes, mas ela nunca tinha sido uma facada no abdômen como foi naquele momento. Fizemos uns instantes de silêncio, e eu disse que estava ficando com uma pessoa.

— Ah, é? E como é ele?

— Ele quem?

— O seu namorado.

Não era namorado. Nem era ele. Mas isso eu não podia dizer.

Coloquei a mão sobre o estômago de novo. Esforcei o sorriso e disse como quem recebe a medalha de bronze, porque era isso o que eu comecei a achar que tinha, o prêmio de consolação:

— É uma pessoa legal.

O carro seguiu em direção à Zona Norte e pensei. Não era de todo mal pensar, especialmente quando se pisa em ovos, e não se tem certeza se devemos dizer o que queremos que seja dito. Eu disse que tinha uma amiga que tinha um relacionamento, e que essa pessoa ainda mantinha relações com seu relacionamento anterior, que agora eram bons amigos. Eu sempre dizia expressões como “uma pessoa”, “um relacionamento”, porque isso é tudo o que podemos dizer quando namoramos alguém do mesmo sexo. E Letícia disse simplesmente:

— Amizade com ex? Se são amigos é porque alguém ainda gosta de alguém, e não queria ter terminado. Alguém tomou um chute e não aceitou isso.

A música terminou e apertei meu estômago de novo. Tive vontade de chorar. Fiquei com raiva da Letícia, quis discutir, quis descer do carro. Mas ela estava certa. Eu também nunca acreditei em amizade com ex. E naquele momento, depois que o carro parou no estacionamento e coloquei os pés no chão de concreto, senti que meu castelo de cartas estava para ruir. Queria muito que aquilo fosse apenas mais uma viagem da minha cabeça. Depressão de amor era pior que depressão de droga, disseram. Talvez, mais uma vez, eu era a última a perceber que o navio estava afundando, e agora não dava mais tempo de procurar salva-vidas.

* * * * * * *

II

Saí de casa meio atrasada e voei para o carro. Nem bem me maquiei. Odeio me atrasar, e ainda tinha que pegar a Isis. Ela sempre usava tênis, imagina, uma mulher em vez de usar um sapatinho ou algo mais delicado, sempre de tênis, como se fosse um guri. Liguei o carro, nem vi se tinha cds novos ou eu teria que ouvir os mesmos de sempre. Azar, eu estava atrasada. Por algum milagre divino, o trânsito não estava congestionado. Céus, eu ia conseguir chegar a tempo. Saí da avenida e virei à esquerda e buzinei na frente da casa dela.

Ela demorou um pouco, que droga, ia me atrasar. Até que apareceu, abri a porta, ela entrou. Isis era muito fechada, nunca entendi qual era a dela. Perguntei se íamos para o melhor lugar do mundo, e ela me respondeu com uma ironia. Acho que ela não gostava de trabalhar lá. Mudei de assunto. Peguei um cd do porta-luvas e coloquei no player. Eu estava possessa, o Inter tinha perdido o campeonato ontem. Isis parecia estar em outro mundo, como sempre. Coloquei o Cazuza, e logo ela se contorceu. Sei lá se ela estava se borrando ou era gastrite. Disse para ela que meu pai tomava suco de limão quando estava em jejum e funcionava. Logo ela começou a dizer que estava namorando não sei quem, e depois botou a mão no estômago de novo. Na hora lembrei de minha tia falando que Kardek dizia que a ação do espírito influía sobre o corpo, que comoções morais podiam gerar sequelas orgânicas. Nunca fui muito com esse papo de espiritismo, mas na hora isso me veio na cabeça. De repente o cara não gostava dela, ou ela não estava muito a fim do cara. Perguntei que tal ele, e ela meio que desconversou. Quer dizer, na verdade a Isis tinha um jeitinho meio estranho. Às vezes eu até desconfiava que ela gostava mesmo é de se esfregar com mulher. Não que eu tivesse preconceito, claro. Desde que ela não viesse dar em cima de mim. Era só o que me faltava, ganhar cantada de sapatão.

Depois ela disse que tinha uma amiga que tinha um namorado, mas ele ainda estava enrolado com a ex, e eu saquei na hora que ela estava falando dela mesma. Talvez ela tenha pensado que só porque ando perfumada e me vista bem sou uma tansa. Se o namorado dela, se é que era namorado, e se é que era homem, ainda mantinha amizade – amizade, que piada! – com a ex dele, então Isis estava numa roubada sem nome. Na verdade, fiquei até com peninha dela. Fui quase noiva do Marcelo por mais de quinze anos, e o cretino me deixou tantos galhos que parecia uma árvore de Natal. Com luzinha e tudo. Sei quando uma mulher está sendo enrolada, então disse que se alguém ainda era amigo de ex é porque um queria acabar e o outro não, alguém tomou um pedal e provavelmente entrou naquelas comunidades ridículas do Orkut, do tipo “a fila anda”, que é típico de quem tomou um chute mas não quer admitir que está descornado. Pensando agora, acho que ela se tocou que estava sendo enganada, mas ficou na dela. Não gritou, não chorou, não xingou. Na verdade, ficou ainda mais quieta.

Entrei com o carro no estacionamento e parei. Olhei para o retrovisor para ver se eu ainda estava poderosa. Estava. Linda e loira. Pensei em dizer algo para a Isis, para ela não esquentar a cabeça, mas ela desceu do carro e nem olhou para trás.

Nenhum comentário:

Postar um comentário