segunda-feira, 25 de julho de 2011

Opus N.º 3 & Dream Theater

Na madrugada de hoje, enquanto tentava dormir, ainda mais que hoje tivemos o primeiro dia de new job all day long, estava pensando em escrever sobre o tal relatório do governo holandês, e achei oportuno depois que morreu a Amy para a rapeize ver que o papo é bem mais sério do que se imagina. Mas hoje, como o tempo está curto, posto um conto das antigas, hoje com a trilha que o inspirou. Como em página de livro de papel não tem música, acabei deixando o conto com a primeira estrofe da música como epígrafe. Mas como estamos na terra dos links, fui pesquisar e descobri que o Dream Theater está de música nova. Entretanto, o que me inspirou a escrever o conto, foi a maravilhosa versão de To Live Forever em Tokyo, e um dos solos mais lindos já tocados ao vivo, que por mim validaria uma estátua para o Petrucci. Ouça a primeira parte, depois a segunda parte, e boa leitura:


OPUS N.º 3

If I started from the top
And worked my way down
There’d be no reason
To live forever.

To Live Forever, DREAM THEATER.

Sonhei com este dia. Entrar pela primeira vez naquele prédio sem estar embriagado e com um motivo palpável – e pela primeira vez ela tomaria conhecimento de minha presença. Entretanto, jamais imaginei entrar ali a serviço.

Quando chegamos, o estrago já estava feito. O fogo havia se alastrado por toda a construção. No lado direito, terreno baldio; no esquerdo, uma quadra de futebol de cimento. As demais casas da quadra dispunham-se quase coladas entre si, mas a uma distância segura do prédio. Já era um começo.

A pintura da cena compunha-se da estética das labaredas seduzindo o concreto, incitando-o a tombar no chão. Emoldurada pelo céu marinho-cinza-negro que só observava. Gritaria da multidão. Delimitar território, sempre tenho que dizer a mesma coisa? Piromaníacos cercavam o lugar, fascinados. Notei o pavor nos olhares de cada mãe e pai, cujos filhos haviam permanecido trancafiados nos apartamentos para evitar acidentes. Que ironia idiota. E posso jurar que nenhum daqueles novatos, pobres criaturas normais, estava mais verdadeiramente desesperado do que eu, com todos esses anos de experiência.

Entrei correndo no prédio, enquanto os soldados recém-chegados colocavam-se em posição. A escada nunca chega a tempo. Fui sozinho, ignorando qualquer racionalidade ou senso de trabalho em equipe. Percebi logo que o caminho era mais combustão do que material. Tentei me desviar dos objetos que vinham caindo. No percurso, fui contemplando o inferno a minha volta. Aquelas paredes que guardavam o meu segredo.

Pensei ter ouvido o fim do mundo, mas era apenas um extintor explodindo atrás de mim, perto das escadas. Não tenho o costume de rezar, mas naquela hora gritei para Deus não deixar desabar o prédio. E então, o corredor veio abaixo. Prossegui, pulando sobre as ferragens destroçadas que compunham o único caminho para chegar ao meu objetivo ou a qualquer outro naquele labirinto em chamas. Quarenta e cinco, quarenta e cinco. Ao me dependurar em uma das ferragens, segurei com força o metal. Sem luvas. Achei que ia derreter, não o ferro, mas minha mão. Caí de costas, o ar já raro se foi por completo. Uma dor forte demais para não ser fatal golpeou meu corpo. Levantei e as paredes esbarraram em mim. Quanto tempo ainda teria? Quarenta e cinco, quarenta e cinco.

O céu lá fora despencando, o prédio ali dentro também. O terceiro andar foi pior. Cortina de Fogo, a língua do dragão. Mais escadas. Ao segurar o corrimão, guiando o corpo para não ruir junto da arquitetura a minha volta, constatei que minhas mãos não possuíam mais pele. O ferro é um ótimo condutor de calor.

Olhos embaçados. Ardentes e ardidos. Quarenta e cinco, deus do céu!

A nuvem de fumaça fez o tempo parar. Não estávamos realmente ali. O mundo se transformara em um imenso fotolito amarelo e vermelho. Um animal gritando como a querer ser ouvido na estratosfera veio em minha direção. Desviei, lançando-me uma vez mais ao chão. Era mais fogo do que carne e pele. Por meio segundo senti pena dela. Acho que era uma adolescente loira, mas que diferença faz a cor? Ao girar meu pescoço, vi dois braços e duas pernas incandescentes saltando pela janela. Quarenta e um... Quarenta e dois, quarenta e três. Arrombei a porta. Estava jogada num canto, perto do sofá da sala. E tudo que vi quando olhei para ela foi:

— Fogo.

Peguei-a em meus braços – como fazem os heróis – e a levei. Ela tossia muito, duvido que dispusesse de suas plenas faculdades mentais. Seu corpo estava quente. O meu também. Voltei com ela, não lembro detalhes.

Transpassei aquilo que um dia foi a porta de entrada do edifício. O fotolito mudara de cor. Voltei a ter contato com o ar. Uma parede de oxigênio investiu contra meu corpo, uma represa destruída desaguando sobre a terra seca e quebrada. Comecei a chorar. Imperceptível, mas um choro é sempre um choro. Levaram-na para a ambulância e lá permaneceu. Eu, tombado.

Quando voltei a mim, o prédio já estava no chão. Consegui me levantar e me aproximei da ambulância. Ao chegar perto, ela me olhou agradecida. Salvei sua vida, podia pedir o que quisesse. “Um jantar?”, pensei ter ouvido. Como se tivesse lido minha mente, ela mordeu o lábio inferior e continuou a me olhar, esperando uma reação. Teria ela percebido alguma coisa? Visto-me algum dia pela janela de sua sala, agora um amontoado de cinzas? Bêbado? Bêbado, claro. Senti um frio imenso, maior que tudo. Ela me conhecia.

Abri a boca para balbuciar qualquer bobagem que – tinha certeza – seria correspondida. Ela aguardou. Quis. Uma mão forte me puxa pelo ombro e aponta o caminhão vermelho que já está partindo. Os últimos soldados sobem. Mais trabalho. Sirenes ligadas, a do caminhão e a da ambulância que parte apressada. Sem um abano sequer. Tanta luta, tanto ensaio, tantas noites e para quê? Entro no caminhão sem pele nem alma. O homem grita, ninguém ouve. Quem sabe no próximo incêndio?

Nenhum comentário:

Postar um comentário