terça-feira, 2 de setembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 125


1 de setembro de 2014

23:44

O piano volta ao meu quarto. Em minha mente de escritora solitária existe uma alucinação de que todos ouvem este piano cada vez que escrevo. Triste, mas hoje menos triste do que ontem. Ainda dá saudades, contudo.

Hoje, uma dessas personagens que visitam minha narrativa entrou aqui. Enquanto eu estava sentada no corredor, um desses corredores de paredes longas, em meio a muros altos e suas janelas que às vezes me parecem impossíveis de serem transpostas. Impossíveis de que a gente voe até o alto e, feito anjos, espie o que há do lado de fora. Uma dessas garotas puxou papo comigo. Vi de cara que ela era maluca quando começou a falar de poesia comigo. Sei que chamar alguém aqui de louca é como entrar em um leprosário e chamar qualquer um de doente, mas foi isso que vi em seu rosto. Ela tinha rosto de boneca. Não uma boneca de beleza com desespero como Emília, mas uma boneca daquelas que os ventríloquos usam, uma beleza com loucura, e me pareceu ter saído do mundo de Alice. Ela é magrinha e branquinha, de cabelos ondulados e escuros, como algumas dessas outras que se parecem iguais, e talvez sejam mesmo.

Iguais, mas diferentes.

Seu nome é Dafne. Ela sei lá a troco de que santo me disse que pintava. E perguntou desde quando eu escrevia, por que eu escrevia. Gelei. Então todo mundo neste fim de mundo sabe que estou escrevendo trancada nesta cela, e que posso chamar de quarto? Ou um quarto que posso chamar de cela? Ela me disse que tinha algo dentro dela que precisa sair para fora e que então ela deve pintar para que as vozes se calem. E perguntou se eu escrevia pelo mesmo motivo.

Eu disse que não sabia.

Ela perguntou sobre o que era minha história.

Gelei de novo.

Na verdade, não é sobre nada. Nada acontece.

E achei que aquilo encerraria o assunto.

Nada acontece... mas vai acontecer? Porque de repente essa busca é o que faz o leitor continuar indo em frente. Com angústia.

Não soube o que responder.

Sabe, acho que um dia vou fazer uma pintura da sua história.

Então talvez você vire uma personagem hoje à noite.

Nem sei se onde tirei aquilo, mas Sarah me disse que era só para escrever. Mas eu não tinha escrito, tinha falado. Aquilo pulou de mim. Dafne apertou a minha mão.

Combinado, ela disse. Talvez outra hora eu apareça no seu quarto.

Fiquei olhando em seu rosto, um rosto talhado para contar uma história, que bem podia ser um verso, imaginando um ventríloquo fazendo ela voltar para o mundo de Alice. E se tudo isso for um sonho?

Mas não é, pensei.

Metaforicamente, quero entrar no seu quarto, ela disse.

E foi embora. Agora imagine. Alguém fazer uma pintura desta historiazinha incrivelmente mal escrita, em que nada acontece. Mas vai acontecer, pareço ouvir ela dizer. O que mais? Alguém tocando um piano no lançamento do livro?

Começo a pensar que eu estou ficando maluca.

Essas personagens entram e saem, nem sei bem por quê. Jade bateu aqui ontem, disse que estava com saudades de mim. Vi Brownie também, ela estava conversando com outra garota. Branquinha, magrinha, morena. Será uma conspiração? Um exército de zumbis? Dafne, se fosse mesmo pintar esta história – a história que ninguém jamais vai ler –, o que haveria para ser pintado?

Existe uma Maria na história que estou escrevendo.

Esqueci de registrar isto: eu disse para Dafne que existe uma Maria na história que estou escrevendo.

Ela não disse nada do tipo “Maria, como você?”, mas ao escrever isso agora, me deu um leve impulso para chorar. E tive também – neste momento – saudades de Cris. Anda difícil conviver com ela, depois que ela tentou, mais uma vez, se matar. Mas ela não morreu. E me deu saudades dela agora. E por algum motivo me volta a ideia de que talvez alguém aqui, alguém que nem imagino, possa já ter sido importante para mim. Se não nesta vida, na outra.

Uma coisa que lembrei agora. Quando Sarah estava contando a história da psicanálise, ela disse que antes de darem esse nome, quando ainda estavam hipnotizando as histéricas e descobriram que depois elas não se lembravam de nada, descobriram também que os eventos traumáticos eram apenas aparentemente esquecidos. Trauma seguido de amnésia, ou o contrário, mas em algum lugar da vastidão do inconsciente a verdade se ocultava.

Lá onde está a Maria que procuro. A Clara que procuro. O piano que me aguarda.

Estou cansada, mas com uma coisa vou ter que concordar com Dafne: algo irá sim acontecer nesta história.

00:14

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