sábado, 21 de junho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 108


22:31

Faz frio. Hoje começou o inverno.

Há uma garota aqui que caminha bem devagarzinho, provavelmente por causa de alguma doença que não tive coragem de perguntar qual era. Ela é magrinha, tem os cabelos lisos e usa óculos. É claro que ela tem outra coisa, mas como todas temos outras coisas aqui, acho que não faz muita diferença. O caso é que ela fez um bolo de chocolate hoje que parecia um brownie. Ela me ofereceu um pedaço, recortou o bolo em quadradinhos e me serviu em um prato. Senti o cheiro, coloquei o nariz perto para sentir a temperatura do quentinho. Tinha cheiro bom.

Tinha cheiro de infância.

Não sei seu nome. Vou chamar ela de Lady Brownie. Até eu perguntar, ou alguém me dizer ou, quem sabe, a gente se falar de novo. Não sei se ouvi ou pensei que ouvi, mas foi como se ela tivesse dito: a gente se vê no asilo.

Li uns trechos de texto sobre memória nestes artigos que parecem conversar comigo, e sobre memória autobiográfica, que dizem que é a memória episódica, ou memória daquilo que a gente vive. Em outro texto dizia que pessoas com transtornos de humor, em especial pessoas depressivas, têm a tendência de supergeneralizar as memórias, ou seja: não conseguem ter memórias de eventos específicos. Então me pergunto: por que não consigo lembrar? Por que escrevo esta história, e também não consigo criar um enredo que vá do começo ao fim?

Diga-me você, que me lê e nem sei se conheço.

Talvez eu conheça, e também tenha esquecido.

Isso faria sentido.

Lara, pensei ontem, pode ter se tornado feia. A gostosinha, vagabunda, irmã-traidora, pode ter envelhecido. É possível também que Claudius, o Sr. Doutor, comedor de criancinhas, gostasse dela.

E por Maria, a mãe, o que ele sentia? Ele batia nela. O que ela sentia por ele? Acho que medo. Acho que ela, pensei agora, tinha medo de que ele matasse Clara. Talvez ela tivesse mais medo por Clara do que por ela. Existe uma dor que perpassa meu peito cada vez que escrevo, cada vez que penso nessa Maria – e certamente cada vez que penso em Clara. Não posso parar de escrever, embora faça dias que não escreva.

Maria Que Não Sabe O Que Quer.

Lara, em minha cabeça, era a queridinha dos olhos de Claudius. Não sei se ele gostava dela. Ou apenas comia a maninha, já que esse filho da puta não se satisfazia com a esposa e, maldito seja, a pequena Clara.

Ainda não sei se ele abusava de Jonas. Ou de Marcos, seu filho não assumido. Queria simplesmente escrever. Queria entender. Queria não sentir e talvez por isso não consiga terminar essa maldita história.

Paro para pensar.

Acredite, eu nunca sei o que vou escrever. Nunca. Apenas escrevo.

Sempre foi assim, desde que escrevi a primeira frase. Desde o primeiro dia, desde a primeira noite.

Jade está alegrinha. Acho que ela está de namoradinho novo. Não vi Cris hoje. Fiquei um pouco triste, e se é isso que chamam de saudade, então estou com saudades dela.

Estou com saudades de coisas que não sei dar nome, nem forma. Mas talvez Lady Brownie me ajude. Talvez em um próximo calorzinho de pedaço de bolo recém feito.

Ou talvez em um próximo acorde de piano.

22:51

2 comentários:

  1. Daniel, tantas histórias se perpassam, tanta vida por aí e o calor de Lady Brownie também me trouxe o calor da infância.
    Escreveste um comentário no meu blog que foi para moderação e quando pensei que estava clicando no botão de incluir eu apertei no de excluir.
    Eu tinha adorado o comentário, mas penso que ele durou o tempo que tinha que durar, não há mais o que fazer.
    Abraço.

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    1. Oi, Marcela.

      Obrigado pelo comentário. Ao te ler, pensei que a Lady Brownie pode render mais, como uma personagem mesmo (pensei em algumas ideias hoje, mas como a Maria, não anotei e esqueci..:)

      Que pena esse lance do comentário. Qual era o texto? De repente eu posso me lembrar o que comentei - ou comentar algo novo.

      Abraço e obrigado pela leitura!

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