quinta-feira, 5 de junho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 104


Não me pergunte que horas são. Não vou olhar. Está começando a anoitecer. Quanto mais fujo desta história, mais ela me persegue. Juro que colocaria um fim nela, um fim em mim se isso resolvesse – mas acho que não vai resolver. Então paro de escrever. E a dor volta. Até quando, me pergunto. Não importa, minha sina é continuar escrevendo. Para encontrar Clara.

Em busca de Clara, podia ser um bom nome, embora meio clichê.

De novo me pergunto se algum dia já escrevi, já quis contar outras histórias.

Sei, ou imagino que sei – ou pelo menos é o que estou pensando neste exato momento...

(interrompi a escrita acima porque Jade me convidou para ver um filme que Sarah ia passar. Fui, e acabei desopilando um pouco.)

5 de junho de 2014

00:27

Na verdade, estou escrevendo na continuação do mesmo dia que comecei e fui interrompida. Agora olhei as horas. Uma nova madrugada começa. Antes choveu e quando saí daqui para ir ao banheiro e voltei, Jade me perguntou:

 Não é bonito?

Tomei um susto. O quê? perguntei.

 O som da chuva.

Olhei para fora, para a noite, para o nada. Olhei para o barulho da chuva.

Lembrei do piano.

 É, respondi.

Jade sorriu.

 Boa noite, Maria.

E sumiu no corredor. A porta está fechada agora. Ninguém vai me interromper. A chuva parou e – bem, sei lá por quê, me voltou à mente a ideia de que Maria, a mãe, já foi abusada por algum membro de sua família. O que ela fez, sem saber que faria, foi apenas passar a desgraça para sua filha.

Mas não sei por que escrevi o que acabo de escrever.

Talvez essa história não acabe em um incêndio, como às vezes intuo. E tenho medo, confesso, mas Sarah disse que não era para pensar: era só para escrever toda e qualquer palavra que viesse lá de dentro deste cérebro que às vezes parece fritar. Mas dizia eu que talvez essa história termine em um dia de chuva. Em um dia bom de chuva. A chuva na qual em algum momento perdido do passado Clara gostava de passear. De correr. E talvez já tenha escrito isso, mas não tenho certeza, Clara gostava de se atirar nas poças d’água e resvalar pela grama que parecia boiar. Ela também parecia boiar, planar sobre a água. Um dia Clara foi criança. Ela teve infância sim. Eu achei que não, que essas memórias estavam perdidas para sempre.

Memórias de quem?

De alguém. Sim, porque, repito, não tenho a menor ideia do que vou escrever antes de escrever, e por algum motivo as palavras vão surgindo. E talvez algumas ideias casem no fim. Talvez não, eu não seja tão horrível quanto imagino.

Maria, a mãe, tocando o piano para a pequena Clara.

Poderia ser uma foto. A foto de uma música. Daquele piano triste e lindo, cujas teclas contam uma vida. E talvez essa vida não tenha se acabado.

Maria, a mãe.

A chuva parou.

Mas o piano há de continuar.

00:41

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