quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 123


27 de agosto de 2014

23:13

Hoje foi Dia do Psicólogo.

Eu, que não sou nem psicóloga, nem escritora, escrevo. Sempre com aquela vontade de deixar para amanhã, para nunca mais, mas não adianta: esse vício de escrever, de fingir que não vou contar e acabo contando, acaba me encontrando, por mais que eu fuja dele.

Sarah tem falado de coisas como “nosso psiquismo é feito para nos proteger” e que “se lembrar for nos fazer doer demais, a gente esquece”. Tipo amnésia, trauma, essas coisas. Sarah fala recortes psicanalíticos para quem quiser ouvir. Eu ainda acho que ela fala isso tudo de propósito, tipo pistas para eu descobrir como vim parar aqui. Sofrimento psíquico, trauma mecânico, trauma que a gente imagina.

E que dói igual.

Psicólogos, algum dia descobrirei como termina a história de Clara?

Acontece que voltei a pensar em Maria.

A mãe.

E pensei que talvez tudo isso que penso ser sobre Clara, na verdade seja de Maria. Talvez ela seja o centro desta história. Maria que deve ter passado a maldição para a geração seguinte. Maria que deve ter sido abusada pelo próprio pai, avô de Clara. Ó meu deus, será que foi assim que começou esta história?

Não sei mais o que escrever. Cada vez que paro para pensar, meu cérebro tranca. Sarah me disse que não é pra pensar em nada, é só pra escrever. É só pra falar, como Anna O. para Breuer.

Ah, psicanalistas.

Ainda tenho muito o que escrever, muito o que aprender sobre esta história desgarrada, que há muito fugiu de mim. Sigo tentando. Tentando tentar e tentando não tentar.

Cris andou tomando remédios semana passada. Se ela frequentasse algum desses grupos que ocorrem aqui, eu diria que isso foi... Bem, eu não diria nada. Anda difícil conviver com ela desde então. Hoje ela falou em ir embora. Ir embora para onde? Mas ela não quis nem saber, só queria ir embora. Agora ela está dormindo. Não sei o que fazer.

Por isso escrevo.

Maria.

A mãe.

Que tinha depressão. Traída, espancada.

Sarah, ao contar a história da psicanálise, disse que as histéricas não lembravam, sofriam de reminiscências. Tinham sintomas porque lembravam o que não podiam lembrar, a tal da sobrecarga com a qual não podiam lidar na vida presente.

E então, me pergunto: o que isso tem a ver comigo?

Talvez seja óbvio para você.

Para mim não é.

Não lembro.

Mas sei que doeu, porque dói até hoje. E dói quando fico um tempo sem escrever. Por isso odeio esta história. Odeio ter que escrever esta merda. Odeio sobretudo não ser capaz de parar de escrever. E saber que embora eu faça de tudo para não chegar lá, o abismo a cada noite se faz mais inevitável.

Feliz Dia do Psicólogo, Sarah.

Espero que você esteja por aí quando eu desabar. Porque é isso que vai acontecer. Ouvi que pacientes tem fetiches com terapeutas. Por favor, já disse: não quero falar de sexo. Mas talvez ela apenas tenha querido se referir a fantasias, tipo uma criança que precisa manter viva a brincadeira, pela vida afora, para não morrer dentro de si.

Meu deus, pela vida afora. Não posso morrer ainda. Se é que não morri. Ou morri e vim parar neste asilo de paredes brancas, longos corredores, campos verdes e até um riacho por perto? Não sei, mas hoje queria pensar em Maria. Que talvez tenha sofrido mais do que consigo supor. Maria que morria cada vez mais. Maria que não conseguiu manter a brincadeira dentro de si, que deixou de ser criança antes da hora. Que foi criança, mas não teve infância.

Maria que há de viver.

23:34

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