sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 129


18 de setembro de 2014

23:49

Você sabe, meninas não contam.

Meninas nunca contam.

Meu espírito parece querer voar para além desta janela madrugada fora, além deste quarto-abrigo. Mas tenho que escrever. Sarah me disse que um pedófilo é do jeito que é pelo jeito como suas pulsões e outras coisas que não entendo foram sendo organizadas dentro dele, desde pequeno. Então ele não sabe que está fazendo mal para o outro? perguntei.

Sabe. Ele sabe que está fazendo mal para o outro. E nisso está o seu prazer.

Suspiro, respiro. Meu espírito ainda vive. A madrugada está começando. Claudius, como outros, é como se tivesse sido criado para fazer o que fazia.

Meu deus.

Meninas nunca contam. Se contassem, ninguém acreditaria. Se contassem, mesmo que muitos anos depois, ainda não acreditariam. Diriam que são falsas memórias. Diriam que isso é passado. Que passou.

Passou porque não foi no de vocês, não é mesmo?

Teria passado para a pequena Clara? Teria passado para outras Claras que estão por aí, quem sabe ao meu lado?

Passou para Maria, a mãe? Claudius que batia em Maria na frente de Clara. Teria o pai de Claudius batido em sua mãe, vó de Clara? Teria o pai de Maria se divertido com ela, e ela nunca contou, e se contou, não acreditaram, e ela apenas passou a desgraça para a geração seguinte? Clara, penso agora, nunca contou a ninguém?

Ou contou e não sei?

Como posso não conseguir inventar uma história? Apenas escrevo. Sarah disse que não era para pensar. Clara, se viveu, teria encontrado um sentido para tudo isso? E Maria? Sou mais perguntas do que respostas. Mas a dor há de passar. Não sei como fazer para parar de sangrar. Por isso escrevo. Não sei mais da família de Claudius, Dr. Vou Me Divertir Com Minha Filhinha.

Minha filhinha linda.

Me arrepio como mal posso descrever. Deve ser difícil criar uma filha, penso agora. Se for menina é mais complicado. Meninas têm mais dificuldade para se defender. Jonas deve ter defendido sua irmã. Mas talvez ter batido nos garotos do colégio não aliviasse a dor de não conseguir defender Clara do maior dos garotos, que habitava a casa: papai. E Marcos, onde entra nisso? Acho que ele defendeu Clara, como talvez já tenha escrito em alguma dessas páginas perdidas nas madrugadas. Perdidas no tempo. Talvez Marcos, além de Lara, a cunhadinha, putinha, soubesse que Clara era sua irmã. Que mamãe tinha dado para o titio e ele tinha uma irmã e um irmão. Não tinha pai, com certeza. Mas tinha uma irmã. Uma irmãzinha linda.

Que talvez ele tivesse jurado defender. Talvez ele tenha morrido para isso.

Os arrepios voltam. Parece que quanto mais adentro essa história sem fim, essa desgraceira infindável, essa merda de história mal escrita, algo acontece em meu corpo. Sarah disse que as pulsões nascem do corpo. Tenho uma pulsão de escrever para sarar, então?

Sarah de sarar, nunca tinha pensado nisso.

Algum sentido Clara e todas as outras hão de encontrar.

Penso que em outras famílias, talvez em muitas das que jogaram minhas colegas de asilo aqui, acontecesse coisas parecidas. Outras Claras por aí. Tentando encontrar um sentido.

Que nem você e eu.

Você sabe. Meninas nunca contam.

00:10

2 comentários:

  1. Daniel,gostei muito de conhecer teu blog e ler uma parte dessa linda e misteriosa história!!Parabéns!!

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    1. Legal, Giseli. Seja sempre bem-vinda e obrigado pelo comentário. Ah, viu que teve capítulo novo ontem? :)

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