quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 135


23 de outubro de 2014

22:13

Querida Sabatha (Rapunzel morena com voz de contar histórias de ninar),

Faz alguns dias que não nos vemos. Não sei se algum dia você vai ler o que escrevo agora, não sei se vou ter coragem de entregar esta quase-carta. Provavelmente não. Apenas escrevo. Você disse que ia aparecer, bater na porta para um oi. Eu disse que ia escrever. Ambas nos traímos: nem você apareceu, nem eu escrevi. Mas escrevo agora, essas palavras-que-ninguém-vai-ler. Estou enferrujada. Não importa. O que importa é que temos algo a compartilhar.

Você me falou da dor de não ter mais. A dor de não poder, de não ser. A dor do que foi e não é mais. Voltará a ser? Não sabemos. A sua dor tem um rosto – aquele que se foi, aquele que não veio, que não voltou. E voltará? Alguém voltará? Existe mesmo alguém para voltar ou tudo isso foi apenas um sonho e estamos naquilo que já cogitei: um sonho dentro de um sonho?

Não lembro do rosto que me fez esquecer de tudo. Devo ter tido pessoas, mas não lembro. Lembro do que ficou: a dor. Sugeri para você escrever e chorar – ou chorar e escrever. Inundar corredores, transbordar pelas janelas, que nem vi escrito em um conto de um livro jamais publicado. Veja, um livro que nunca foi publicado, mas cujas palavras podem me ajudar – e talvez a você também.

Sarah tem me mostrado alguns textos. Disse para eu ler um que fala sobre amnésia e trauma. A gente não lembra porque lembrar dói demais e não se pode suportar uma dor assim: por isso o registro vai para debaixo do tapete do inconsciente, e ela deve achar que é de lá que tenho tirado a história de Clara. Ela não falou com todas as letras, porque psicanalistas nunca falam com todas as letras, mas quando perguntei por que ela queria que eu lesse aquele texto (e imagino que ela diria que fiz essa pergunta por causa daquilo que ela chama de “mecanismo de defesa”), ela sorriu e disse:

Talvez você tenha mais ideias para escrever.

Eu não lembro.

Talvez a dor tenha sido muito grande.

Talvez houvesse dores muito grandes e, ainda assim, houve uma dor maior.

Sarah está me conduzindo a algum lugar e imagino que ela já sabe como termina a história da pequena Clara.

Como termina a história de Maria, a mãe.

Talvez eu chorasse em outras noites. Hoje não. Hoje apenas escrevo, talvez pela ideia maluca de que talvez eu pudesse ajudar alguém com as minhas palavras. Quem sabe com a minha dor, que hoje é nossa. Existe um sentido para ela. Nem que seja escrever.

Sempre chove quando escrevo. Mas hoje não. “Não pode chover o tempo todo”, como disse Eric Draven.  Hoje não está chovendo. E amanhã vamos estar aqui.

E se você quiser aparecer, deixo a porta encostada. Pelo menos no dia de hoje, meu ombro é seu, querida Sabby.

Love,

Mary

22:31

2 comentários:

  1. Eu te mandei aquela carta, a que nãos ei se você recebeu.
    De novo entro no seu quarto e deixo esta:
    Obrigada pelo apoio. Nesses últimos dias descobri que algumas pessoas distantes se importam comigo, e você é uma delas.
    Hoje não choveu, e acho que não choverá amanhã também. As coisas estão melhores.
    Agora, Maria, passo a ser uma visitante quase moradora do seu quarto. E fique a vontade para me procurar sempre que quiser!
    E Maria, acho interessante que alguém que não queria escrever agora indique a escrita para outras pessoas, como algo que realmente ajuda. A escrita tem ajudado, Maria?
    Sabatha

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    1. Neste quase começo de madrugada, ler tua carta e saber que alguém se importa, alguém lê, alguém aparece, me toca de alguma forma. Sei que tuas cartas pedem respostas e vou responder essas desgarradas, como as minhas. A escrita sempre ajuda, Sabby. Acho que vou te escrever sobre isso. Tu tem razão: hoje não está chovendo. A escrita nos mantém vivas, nos faz existir. Querer ser, mais um dia.

      Até amanhã.

      Love,

      Mary

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