sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 160





30 de janeiro de 2015

00:31

Uma nova madrugada começa. Ouço o piano ao longe, o piano que achei que nunca mais ouviria. O piano lindo e triste que se perdeu dentro de mim. Cris está por aqui e disse para eu escrever. Acho que comentei que ela é a única pessoa que deixo ficar por perto enquanto escrevo – desde que ela não leia. Ela viu que eu estava meio down. Maria Down, parece um nome interessante.

Vai escrever, ela me disse. Você melhora quando escreve.

Respiro fundo. Começo a escrever. Fazia dias que não escrevia. A dor vai ficando para trás, bem devagar. Preciso continuar (me) escrevendo senão ela vai me alcançar. De novo. Fujo dela, por isso escrevo. Sarah disse que a psicanálise é a cura pela palavra. Talvez eu busque essa cura por estas palavras desgarradas que escrevo. Ainda sem ter a menor ideia de como vou juntar uma frase na outra, e isso tampouco importa. Apenas vou construindo meu castelo com os tijolos das palavras, uma de cada vez. Uma princesa no alto de seu castelo. Talvez uma muralha, por onde caminho e da qual não posso pular. Mas preciso continuar escrevendo.

E o piano precisa continuar tocando.

Uma tecla de cada vez.

As notas que nem sei se existem, se existiram, ou se algum dia vou ouvir de novo.

Maria, a mãe, que tocava para a princesa no castelo, Sweet Lady Clara.

Cris cozinhou para mim hoje. Jantamos juntas. Foi quando ela me disse que eu deveria escrever hoje. Hoje choveu, talvez tenha sido um sinal. O vento, o frio. O universo conspirando para eu contar esta história terrível. Que no fundo é a busca pela minha própria história, eu, Maria Que Esqueço. Algumas das garotas mexem no fogão. Na verdade, muitas delas, mas certo dia, lembrei agora, Sarah me disse:

Não mexa no fogão.

Pareceu sem sentido na época, mas como esses psicanalistas jamais dão ponto sem nó, percebo agora que ela quis me dizer alguma coisa mais. Psicanalistas sempre querem dizer alguma coisa mais. Lembrei que talvez em uma dessas noites perdidas no tempo, talvez tenha escrito, porque não certeza de mais nada, mas talvez tenha escrito que Maria, a mãe, ensinou Clara a mexer no fogão. Não de propósito, ela não pode ter sido irresponsável a esse ponto. Mas talvez Maria tenha acendido o fogo na frente de Clara. Não sei se ela fumava, e sempre pensei que não. Mas agora me vem a imagem na cabeça de que Maria ligou o fogão para acender o cigarro. Sei que um dos cheiros presentes na infância de Clara foi o álcool, em parte porque Papai Abusador sempre bebia. Mas nisso que vejo agora, e não sei mais se é sonho ou criação, Maria se abaixou para acender o cigarro, perto do fogão.

Esta história, não posso deixar de registrar que pensei nisso agora, talvez termine com um incêndio.

E olho para meus braços e vejo cicatrizes e queimaduras e me pergunto como vim parar neste lugar.

Todos morrem?

Estamos todas mortas?

Não sei. Mas ainda ouço um piano. Distante como o tempo. Como outra vida.

Será que a desgraça de Clara começou por causa de Maria?

De alguma forma, e respiro fundo ao pensar nisso agora, talvez aquela tenha sido a salvação das duas.

De alguma forma, talvez elas tenham se salvado.

O piano continua. Então sorrio.

E quase começo a chorar.


00:51

Nenhum comentário:

Postar um comentário