segunda-feira, 1 de junho de 2015

Piano Para Pequena Clara - Dia 172


1 de junho de 2015

21:39

O frio está de volta e hoje quando olhei pela janela, antes de passar pelo chafariz lá embaixo, vi a brancura do dia, linda. 

Um branco como às vezes acho que é a explosão e o incêndio que termina esta história. 

Mas ela não vai terminar hoje. E hoje houve um motivo para comemorar. Minhas colegas de asilo prepararam uma festa-surpresa para a Srta. Vygotsky, de aniversário hoje. Antes de ela começar outra de suas explanações, fecharam a porta do salão que, escuro, irrompeu em parabéns quando ela entrou. A Srta. Vygotsky estava bonita, especialmente arrumada, então penso que, apesar da expressão de surpresa, talvez em seu inconsciente - já que Sarah disse que um inconsciente pode conversar com outro e a Srta. Vygotsky também acredita nas teorias daquele velho tarado -, ela já estivesse esperando uma festa. 

Sei que foi bonito. Pode haver um pouco de alegria e, por que não, paz aqui neste lugar de vez em quando. Se estamos todas mortas, como suspeito às vezes, celebrar a vida da Srta. Vygotsky nos deixou vivas por mais um dia - ou vivas, de volta, por mais um dia. Sei que Lady Brownie não trouxe seus brownies com cheiro de infância e a Chica Tortoni cortou ela própria o cabelo para esta ocasião. Não sei como, pois as tesouras são proibidas para nós, por motivos óbvios, mas ela apareceu de cabelo cortado, assim como algumas outras aparecem às vezes.

Todas loucas.

E felizes.

Um pouco de vida neste lugar, por que não? A Srta. Vygotsky convidou uma amiga para falar - talvez ela seja monitora de alguma outra ala, neste lugar de paredes e muros altos - e lembro que o Garoto Skinner reclamou que não falaram de Skinner, um dos anjos da guarda dele, assim como imagino que Sarah e a Srta. Vygotsky tenham o velho tarado. 

Não importa. Foi um momento feliz. Doces, refris, bolachas, salgadinhos.

Como uma festa de criança.

Uma festa de aniversário para sweet lady Clara. Antes de começar o terror. Antes de Claudius. Esses dias li que um pai se masturbava com a filha pequena e que ela tinha fissuras na vagina, causadas pelos dedos dele. Não quero parar de escrever para sequer cogitar se Claudius, Doutor Maldito, fez o mesmo com Clara. Não, hoje eu só quero este momento de vida.

Maria Que Quer Um Momento De Vida.

Uma outra coisa, que lembrei agora, e seguindo os rastros de Sarah, que me sugeriu escrever tudo o que pensasse, especialmente quando achasse bobo, insignificante, idiota. Nesta tal livre associação. Em uma dessas noites, Lady Ballet entrou em meu quarto e disse que queria que eu visse uma coisa. Que coisa, perguntei. Ela tirou a camisa e virou de costas para mim. Aliás, ela virou de costas para mim e tirou a camisa, então percebi que ela não queria que eu visse ela de frente, nua. Havia uma grande caveira em suas costas - não tão grande quanto a tatuagem que Cris certa vez me mostrou, com o mesmo movimento de se virar e se despir - e outro desenho que não consegui decifrar.

- Por que está me mostrando isso?

Ela se vestiu e disse:

- Eu sei que você também tem marcas, Maria.

Tive o impulso de chorar o suficiente para sair nadando, inundando tudo isso aqui e escorrendo pelo lado de fora dos muros.

Mas nada disse.

Olhei para meus braços.

Pensei no fim da história de Clara.

- Não estou falando dessas marcas, disse ela.

Lady Ballet sorriu. E disse que eu podia contar com ela.

Pensei em dizer que também sou uma garota com fendas. Mas é claro que ela sabe disso. Somos todas aqui. Acácia, Blossom. Dafne, que nunca mais vi. Todas nós, garotas com fendas. Lady Ballet e tantas outras que aparecem e somem desta história. Mas hoje eu só queria pensar no sorriso da Srta. Vygotsky. Que é grande como ela - talvez até maior que o de Cheshire, a Garota Que É Mais Sorriso Que Garota. Talvez do tamanho do sorriso da Garota Neutron, que está para ganhar bebê - como não reparei que ela estava grávida, a Garota Que Sabe Das Coisas?

Não importa. Um pouco de vida já está de bom tamanho pelo dia de hoje. Vida chegando, vida acontecendo. Vida que insiste e por isso mesmo é vida. Vida que pulsa. Como o piano que toca e sara todas as dores.

Sarah que sara, pensei agora.

Maria, a mãe, que toca.

Uma mãe sempre sabe.

Jonas e Marcos, perdidos nesta história. Assim como eu. Mas chegará o nosso tempo, meninos. De ouvir aquele piano lindo e triste de novo. Que insiste. E me faz, e me fazendo nos faz, querer viver mais um dia. E por hoje, está tudo no seu lugar.

Obrigado, Srta. Vygotsky.

22:12

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