segunda-feira, 8 de junho de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 173


8 de junho de 2015

21:08

Suspiro. Não ia escrever hoje, mas a quentura em meu peito, que pode ser saudade, dor, angústia, querer ser, querer estar, não ter sido, tudo isso junto, me faz começar. Trancada neste quarto-cela. Hoje outra dessas malucas estava de aniversário. Parece que ficam esperando um cartão de aniversário da Louca Que Escreve Encerrada aqui. Não sei mais descrever. Tanta gente louca, tanta gente que se veste igual. Mas ela é morena, de cabelos lisos, alta e detentora de um tipo especial de loucura. Já notei que temos graus diferentes aqui, mas não saberia classificar. Sei que assim que a Srta. Vygotsky começou a sua preleção, sempre com um sorriso grande como ela, essa garota cujo nome ainda não sei sugeriu de comermos na aula. A Srta. Vygotsky, que discorria com alegria sobre por que aprendemos e como aprendemos, disse que poderíamos comer e deu um abraço nessa garota. Já tinha ouvido falar que era aniversário dela. Apenas esperei, ou não esperei, e aconteceu.

Minhas colegas de asilo armaram uma mesa, com doces e refrigerantes, e a Srta. Vygotsky continuou falando, e falou sobre aprendermos por identidade, o que me é um tema caro, porque ainda não sei quem sou nem como vim parar aqui. Talvez eu seja enquanto escrevo, o que é uma bonita definição para alguém que não sabe nada de nada, mas sabe que tem que escrever para colocar um pouco de ordem na caverna de sua alma. O caso é que Lady Brownie levou enfim seus brownies, prometidos desde a semana passada para o aniversário da Srta. Vygotsky, e me disse:

- Hoje você vai ter que escrever, Maria.

Não ia escrever nada, como geralmente não vou. Estava apenas ouvindo a aula da Srta. Vygotsky, na sala reservada para isso, para quem quiser assistir, e vi que a aniversariante, cujo nome ainda não sei, disse apenas: vamos comer. Quando vi os brownies de Brownie e cheirei, não uma, mas quatro vezes, e o cheiro de infância invadiu meu espírito, depois o gosto de infância, a infância que no fundo acho que é o que procuro quando começo a escrever estas palavras que nunca dão em nada, mas que talvez sigam um riacho cuja nascente ainda não conheço, decidi que teria que escrever.

Chica Tortoni me disse que tem tesouras, mas não pode me emprestar.

Claro que não pode. As tesouras aqui são proibidas.

Lembrei disso quando a Srta. Vygotsky elogiou o cabelo dela.

Não tenho pensado em morrer. Cris, graças a Deus, esse deus que nem sei se existe, que me largou neste fim de mundo, também não. Pelo menos que eu saiba. Ela anda meio quieta, disse que quer começar a assistir algumas das aulas – mas entendo porque ela não se mistura muito. No fundo, somos muito parecidas e acho que é por isso que ela confia em mim.

E talvez, de alguma forma, me ame, embora não saiba exatamente de que tipo de amor estamos falando, ou que tipo de amor é qualquer tipo de amor.

Mas todo amor é bem-vindo.

Nem acredito que escrevi isso. Mas escrevi: todo amor é bem-vindo. Sarah e suas livres associações. De onde tiro essas palavras? Claro que ela acredita que é do inconsciente e me pergunto: o que mais há lá?

Por isso escrevo.

Sei que no meio dos comes e da aula da Srta. Vygotsky, outra de minhas irmãs-zumbis me pegou pelo braço e perguntou:

- Como é a teoria do trauma, Maria? Acho que também sofri um trauma.

Gelei quando ela perguntou isso. Rememorei a explicações de Sarah, que disse que algo muito ruim nos acontece e a gente não consegue suportar; por isso, esquece. Acho que o termo é “inundação”.

Somos inundados por uma água na qual não conseguimos nadar, nem mergulhar. E para não morrermos afogados, esquecemos.

Acho que é mais ou menos isso.

Eu esqueci.

E nem sei mais se quero mesmo lembrar.

Certa vez, Brownie disse que só queria esquecer. Um ano inteiro, talvez dois. Eu queria lembrar, mas agora já não sei. E se lembrar doer demais?

De novo, o abismo se aproxima.

Não sei se sonhei isso, mas parece que a Cheshire foi embora. Personagens desta história que nem história é, ou não era, aparecem e somem. Cheshire foi embora, a Garota Que É Mais Sorriso Que Garota? Para onde? Para onde vão os personagens desta história quando saem dela, se ela ainda não acabou? E quem deu a eles permissão de irem embora?

Neste momento, porque tudo aqui é sobre elas, penso em Clara a espera de sua mãe Maria, que demorou a chegar. E tenho vontade de chorar.

Mas apenas suspiro, uma vez mais. Olho pela janela, para a praça escura onde Clara brincava no escorregador, para o chafariz que Cheshire tanto gostava. Suspiro uma vez mais. Penso em Lady Ballet, dançando para não colocar tudo para fora – ou dançando e colocando tudo para fora, talvez não colocando mais nada, apenas dançando. Penso em Cris. Tenho saudades, mesmo ela estando tão perto e incrivelmente longe. Ou seria longe, mas incrivelmente perto?

Ainda há esperança.

Feliz aniversário, garota sem nome. Outro dia invento um nome para você, mas considere-se felicitada. Outros aniversários virão. Ainda há esperança.

Não chore, pequena Clara.

Mamãe está chegando.

21:41

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