segunda-feira, 1 de setembro de 2014
Piano Para Pequena Clara – Dia 124
1 de setembro de 2014
Vazios de fim de noite.
Um novo mês começa. Uma nova madrugada.
Um piano que só existe em minha cabeça. Um piano em meu quarto escuro.
Lindo feito uma cicatriz.
Feito saudade.
Feito Clara.
Feito Maria.
De novo não marquei a hora. Agora é meia-noite e 38. Estou enferrujada. Não tenho nada para escrever, mas como sei que ninguém – jamais – vai ler, para que se importar? Apenas tenho que cimentar palavras neste muro e esperar que algo aconteça. Ou não esperar nada de nada, apenas escrever.
Neste momento me pergunto: que estilo de música Maria tocava para Clara? Será que era sempre a mesma música?
Pensei nesses dias, e não me pergunte de onde tirei isso, mas Jonas, o irmão de Clara, tinha um outro nome. Talvez Jonas Michel e talvez ele também não gostasse de seu primeiro nome. Sei que isso não é importante, mas Sarah me disse que Freud dizia que o que não era importante, pelo menos aos olhos do paciente, geralmente era o mais importante. Maldita livre associação. Talvez esse seja o nome da mágica que não entendo e que me fez, eu, que jamais soube uma única frase do que ia escrever antes de juntar as palavras aqui, escrever mais de duzentas páginas – e continuo sem saber o que escrever. Mas escrevo, desbravando aquilo que se esconde dentro de mim, e que foge a cada vez que chego perto e do qual fujo cada vez que A Coisa se aproxima.
Um dia nos encontraremos, eu pressinto.
Até lá vou continuar trancada neste quarto.
Cicatrizando a mim mesma com estas palavras.
E com o piano que me faz seguir em frente.
Hoje vi Claudius. Seu fantasma me deu oi e sorriu. Oi, tudo bom?
Mas chega de Claudius por hoje.
Quero apenas sonhar com o piano. Sonhar e ficar por lá, a Terra do Piano Eterno. Onde nada poderá me ferir. Nem a mim. Nem a Clara. Nem a Maria.
Tenha bons sonhos, garotinha.
Bons sonhos, mãe.
O piano vai continuar.
E hoje nós vamos estar a salvo.
00:55
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quarta-feira, 27 de agosto de 2014
Piano Para Pequena Clara – Dia 123
27 de
agosto de 2014
23:13
Hoje foi
Dia do Psicólogo.
Eu, que
não sou nem psicóloga, nem escritora, escrevo. Sempre com aquela vontade de
deixar para amanhã, para nunca mais, mas não adianta: esse vício de escrever,
de fingir que não vou contar e acabo contando, acaba me encontrando, por mais
que eu fuja dele.
Sarah
tem falado de coisas como “nosso psiquismo é feito para nos proteger” e que “se
lembrar for nos fazer doer demais, a gente esquece”. Tipo amnésia, trauma,
essas coisas. Sarah fala recortes psicanalíticos para quem quiser ouvir. Eu ainda
acho que ela fala isso tudo de propósito, tipo pistas para eu descobrir como
vim parar aqui. Sofrimento psíquico, trauma mecânico, trauma que a gente
imagina.
E que
dói igual.
Psicólogos,
algum dia descobrirei como termina a história de Clara?
Acontece
que voltei a pensar em Maria.
A mãe.
E pensei
que talvez tudo isso que penso ser sobre Clara, na verdade seja de Maria.
Talvez ela seja o centro desta história. Maria que deve ter passado a maldição
para a geração seguinte. Maria que deve ter sido abusada pelo próprio pai, avô
de Clara. Ó meu deus, será que foi assim que começou esta história?
Não sei
mais o que escrever. Cada vez que paro para pensar, meu cérebro tranca. Sarah
me disse que não é pra pensar em nada, é só pra escrever. É só pra falar, como
Anna O. para Breuer.
Ah,
psicanalistas.
Ainda
tenho muito o que escrever, muito o que aprender sobre esta história
desgarrada, que há muito fugiu de mim. Sigo tentando. Tentando tentar e tentando
não tentar.
Cris
andou tomando remédios semana passada. Se ela frequentasse algum desses grupos
que ocorrem aqui, eu diria que isso foi... Bem, eu não diria nada. Anda difícil
conviver com ela desde então. Hoje ela falou em ir embora. Ir embora para onde?
Mas ela não quis nem saber, só queria ir embora. Agora ela está dormindo. Não sei
o que fazer.
Por isso
escrevo.
Maria.
A mãe.
Que
tinha depressão. Traída, espancada.
Sarah,
ao contar a história da psicanálise, disse que as histéricas não lembravam,
sofriam de reminiscências. Tinham sintomas porque lembravam o que não podiam
lembrar, a tal da sobrecarga com a qual não podiam lidar na vida presente.
E então,
me pergunto: o que isso tem a ver comigo?
Talvez
seja óbvio para você.
Para mim
não é.
Não
lembro.
Mas sei
que doeu, porque dói até hoje. E dói quando fico um tempo sem escrever. Por
isso odeio esta história. Odeio ter que escrever esta merda. Odeio sobretudo
não ser capaz de parar de escrever. E saber que embora eu faça de tudo para não
chegar lá, o abismo a cada noite se faz mais inevitável.
Feliz
Dia do Psicólogo, Sarah.
Espero
que você esteja por aí quando eu desabar. Porque é isso que vai acontecer. Ouvi
que pacientes tem fetiches com terapeutas. Por favor, já disse: não quero falar
de sexo. Mas talvez ela apenas tenha querido se referir a fantasias, tipo uma
criança que precisa manter viva a brincadeira, pela vida afora, para não morrer
dentro de si.
Meu
deus, pela vida afora. Não posso morrer ainda. Se é que não morri. Ou morri e
vim parar neste asilo de paredes brancas, longos corredores, campos verdes e
até um riacho por perto? Não sei, mas hoje queria pensar em Maria. Que talvez
tenha sofrido mais do que consigo supor. Maria que morria cada vez mais. Maria
que não conseguiu manter a brincadeira dentro de si, que deixou de ser criança
antes da hora. Que foi criança, mas não teve infância.
Maria
que há de viver.
23:34
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segunda-feira, 18 de agosto de 2014
Piano Para Pequena Clara – Dia 122
18 de agosto de 2014
Uma coisa que pensei hoje de tarde e registro agora. Maria
Que Registra.
Maria Que Insiste.
Maria, a mãe.
Maria, a esposa.
Espancada. Traída. Magoada. Maria Magoada. Maria que quis
morrer. Por favor, Deus, se houver um deus: permita que este não tenha sido o
fim desta história. Ela não acabou, não pode ter acabado. Ainda estou escrevendo,
ainda estou viva. Maria Viva. Viva Mais Um Dia. Não quero que ela acabe assim,
mas há muito esta maldita história fugiu do meu controle – se é que algum dia eu
tive.
De novo, estou tonta. Meu estômago continua doendo. Tenho
medo.
Escrever para curar, disse Sarah.
Um dia mais perto do abismo.
Mais perto de Maria.
A esposa.
Que era bonita, simples como uma camponesa e seu sotaque do
interior, flexionando o erre final. Maria que se apaixonou por Claudius, que se
apaixonou por Maria, que se apaixonou por Claudius, feito quadrilha. Talvez,
pensei agora, os dois tenham se apaixonado quando ele ainda era um estudante de
medicina, talvez nem isso fosse ainda.
Ele seria um bom marido.
E por um tempo foi.
Pensei ontem que ele pode já ter sido um bom pai.
E hoje, um bom pai e um bom marido.
Um bom marido.
Ó meu deus, o que a vida foi fazer com vocês?
17:35
domingo, 17 de agosto de 2014
Piano Para Pequena Clara – Dia 121
17 de agosto de 2014
14:16
Já tinha – de novo – oficialmente desistido de escrever este
livro horrível que ninguém jamais vai ler e só não joguei tudo fora ainda porque...
Não sei bem o porquê. Sarah deve ter suas teorias psicanalíticas, tipo: Maria
que não quer escrever, mas quer escrever, porque tem medo e sabe que vai acabar
descobrindo o que finge não ver, por isso desiste o tempo todo; Maria Desiste,
mas Maria Insiste”.
Que droga, me perdi em meu raciocínio. Acontece que faz dias
que não escrevo, como você que me lê quando não estou por perto, mesmo que você
seja apenas uma invenção de minha mente confusa, já deva ter notado. Sarah me
sugeriu escrever, se possível, todos os dias. Escrever o quê, se não tenho nada
para contar?
− Todos temos, disse ela.
Era só para eu inventar uma história e nem isso consegui
fazer. E então surgiram Maria, a mãe. Claudius, o pai. Não sei se foi sonho ou
delírio, mas vi Claudius. Com seu olhar profundo, como cavernas escuras que a
gente entra com medo e desconfia que existe um monstro a nossa espera. Até
porque existe mesmo. Dr. Monstro A Sua Espera. E depois vieram a pequena Clara,
que imagino ser o centro de tudo. Ou também A Sua Espera.
A Espera De Maria.
Ainda não entendi a mágica que acontece quando começo a
escrever sem nunca – nunca mesmo – saber o que virá a seguir, e parece que as
palavras surgem. Sarah diria algo como associação livre. Oh, psicanalistas. Mas
acho que as palavras, pensei agora, estão surgindo desta caverna, que também
surgiu do nada. Ou, vá lá, talvez das profundezas do meu inconsciente.
O caso é que hoje estava lendo uns trechos de entrevistas
daquela Clarice, em que ela era a entrevistadora, e li que alguém chamada
Nelida Piñon tinha horror à palavra inspiração, e acreditava piamente na
disciplina, em escrever mesmo cansada, doente, sem nada. Como também ando
cansada e nos últimos dias fiquei mal do estômago, com tonturas e disposição
zero e negativos, achei que fosse um chamado para eu voltar a contar esta busca
pelo mistério de Clara. Também ouvi de um desses caras daqui, um garoto quase
homem, pequeno gênio, careca e de óculos, discursando sobre Aristóteles na
quarta passada. Ele disse que temos que fazer o que a gente nasceu para fazer,
que temos que seguir a nossa natureza, sem se importar com os resultados que virão.
Gostei desse Aristóteles. Não sei se o grego ou o que deu esse discurso.
Sei o que você pensou agora, mas vou me abster de comentar.
Gostei do Aristóteles, e daí?
Pensei que às vezes ser louco – ou louca, no meu caso – tem suas
vantagens. Não temos nada a perder. Podemos ser quem nós somos, seja lá o que
signifique isso.
Cris me disse que minha história está muito longa.
Vou escrever isso, falei.
Isso o quê? perguntou ela.
Nada, respondi.
Almoçamos juntas hoje. Acho que ela está melhorando, aos
poucos.
Um dia de cada vez.
De onde tirei essa expressão? De novo me vem à ideia de
Claudius indo naquelas reuniões até o dia em que decidiu tomar um champanhe
escorrido entre os peitos de Lara. Mas antes disso, voltando ao meu pensamento
inicial, eu disse que tinha visto Claudius. E ele estava segurando Clara no
colo. Não como um namorado, não como um animal. Com carinho.
Com carinho de pai.
Realmente há mais nesta história do que consigo supor.
E é por isso que vou voltar a escrever e chegar mais perto
daquele abismo do qual tenho medo.
Um dia de cada vez.
14:41
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domingo, 10 de agosto de 2014
Piano Para Pequena Clara – Dia 120
10 de agosto de 2014
00:00
Eu tive outro sonho hoje.
Sarah vai dar pulos com este.
Estava em uma praça, sobre um banco, junto com Cris e
Emilia. Cris deu um beijo nela, e não lembro se eu pedi ou ela se ofereceu, mas
Emilia me deu um beijo. Um selinho. Cris levantou e saiu caminhando. Ficamos só
Emilia e eu. Então pedi. E a gente se beijou. Senti como algo acordando dentro
de mim. Como se fosse a primeira vez.
Acho que seria algo como tomar o primeiro gole de cerveja
que se toma na vida.
Gostei no começo, pelo gosto de diferente. Mas conforme o
beijo foi avançando – beijo de língua – eu pensei: o que estou fazendo aqui?
Então paramos. Ela perguntou se eu queria conversar sobre aquilo. Eu disse que
sim. E que aquela não era a minha praia. Ela disse que fez de propósito, para
resolver essa questão. Que questão? pensei. Não gosto de mulher.
Mas, até onde eu lembre, também não gosto de homem.
Se gostasse, ou algum dia vier a gostar – bom, não sei o que
pode acontecer.
Continuo não querendo falar de sexo.
E então acordei, e fiquei pensando no significado do sonho.
Emilia foi embora, mas acho que está bem. Talvez ela apareça. Acho que era sim
a namorada de Cris, e é claro que não comentei esse sonho com ela. Cris
continua triste. Se sentindo feia. Uma vez ela me disse que me achava bonita. É
estranho se achar bonita e sei lá se isso é importante. Bonita, feia, que
diferença faz em um fim de mundo como este, uma bolha como esta na qual
vivemos, afastados de seja lá o que for que aconteça além destes muros, deste
campo, destas paredes?
Amanhã é Dia dos Pais.
Talvez tenha começado a escrever por causa do sonho, mas
inconscientemente – meu deus, Sarah e suas loucuras – eu não tenha querido
pensar sobre isso, mesmo sabendo que inevitavelmente minha escrita hoje ia desaguar
no Dia dos Pais. Sarah disse que o inconsciente tem suas formas, às vezes
estranhas, às vezes irônicas, de organizar nossa vida em vigília. Não pensei no
simbolismo de beijar Emilia, ou mesmo – quem sabe em um próximo sonho? – beijar
Cris. Acho que o sonho não era sobre isso – ou talvez fosse.
Estou me enrolando para não falar do Dia dos Pais.
Não consigo criar um Dia dos Pais para Clara e Jonas. E
Marcos, se é que ele passava junto. Talvez sim; de alguma forma, já que
Claudius não quis assumir ele, porque o Doutor teria que confessar que brincava
de médico com a maninha da mamãe, talvez quisesse compensar. Por algum motivo
que não consigo dar nome, neste momento me ocorre que Claudius pode ter sido um
bom pai. Vejo em minha mente de criadora que não sabe criar, de péssima
escritora, ele caminhando pelo corredor levando a pequena Clara sobre os
ombros. E neste dia em especial, ele foi cuidadoso com ela. Ele foi pai.
Não homem.
Não amante.
Não assassino.
Apenas pai.
Que é como eu gostaria que ele tivesse sido durante toda
esta história. E um bom marido. Mas não foi dessa forma que as palavras, que
escrevo aqui sempre de improviso, apareceram para mim. Claro que você diria o
que já deve ter dito e eu esqueci: a história é sua, monte do jeito que quiser.
A história é minha mesmo?
Eu possuo a história ou ela me possui?
A cada palavra que escrevo, me comprometo mais. Você sabe o
segredo da pequena Clara. De sua mãe, Maria. Sarah sabe, tenho certeza. A cada
noite que escrevo tento me afastar daquele penhasco, mas a cada palavra que meu
cérebro – aquilo que restou dele – cospe aqui neste texto, chego mais e mais
perto do cânion.
Um cartão para Claudius. Um presente de Maria. A mãe que já
foi linda. Talvez ele tenha enfeado ela. E Lara ficou com a cereja do bolo. Mas
quero sonhar com isto hoje: Claudius pode ter sido um bom pai. Um pai que se
perdeu por aí. E que eu queria fazer bom, pelo menos por hoje. Um dia, um
capítulo. Só hoje. Podia jogar fora toda essa história, como já me comprometi a
fazer, mas ainda não tive coragem ou boa vontade para tanto. Lara poderia ser
uma parente do interior, que quase nunca aparecia para visitar. Poderiam ser uma
família feliz: Maria, uma esposa feliz. Clara e Jonas, crianças que cresceram
felizes, brincando, sorrindo. Vivendo. Um maravilhoso comercial de margarina. É
com isso, e só com isso, que quero sonhar hoje.
Feliz Dia dos Pais, Claudius.
00:29
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quarta-feira, 6 de agosto de 2014
Piano Para Pequena Clara – Dia 119
6 de agosto de 2014
Eu tive um sonho hoje.
Ou ontem, não importa, como na história de Camus.
Estava em frente a uma sala de aula e todas as pessoas que
ficam aqui – esses zumbis que vez em quando povoam as coisas que escrevo
fechada neste quarto – e Sarah, que vai adorar quando eu contar isso a ela, se
eu contar, estava ao lado. E ela disse que eu estava escrevendo uma história,
que eu escrevia muito bem. Muito bem, foi o que ela disse. As garotas pediram
para eu contar.
Só pode ter sido um sonho.
Eu expliquei, ou acho que expliquei, sobre o que é a
história de Clara. Clara, abusada por Claudius, que espancava Maria e comia
Lara. Algumas pessoas acharam confuso, e talvez eu tenha falado mais detalhes
do que “Clara, abusada por Claudius, que espancava Maria e comia Lara”, mas é
isso o que me lembro agora. Esqueci de falar dos irmãos Jonas e Marcos, um
assumido, o outro não.
Que droga, esqueci de colocar a hora. Faz alguns minutos que
estou escrevendo. Agora são 9 e 58 da noite. Isso também não importa. Estou
cansada. Com fome. Mas estou escrevendo. Sangrando, talvez. Você diz que viajo
para dentro do inconsciente e você se enxerga no que escrevo. Você na minha
história. Você, de quem sinto falta. Você, cujo rosto não lembro. Merda, nem
seu nome recordo.
Assim como o meu.
Maria o que mesmo?
Maria. Odiava meu primeiro nome. Sarah descobriu isso e me
manipulou para escrever esta história de merda que nasce sei lá de onde. A cada
noite. Sempre de noite. Está frio lá fora. Queria dormir e esquecer. Mas
preciso lembrar.
Sei que no fim daquilo que imagino ser uma palestra, para a
aula lotada, ou um pequeno auditório, talvez em meu delírio eu fosse uma
escritora famosa, minhas colegas de asilo me aplaudiram. Disseram que querem
ler o livro com a história de Clara. Eu agradeci.
E acordei.
Jamais vou mostrar esta merda de história para ninguém.
Primeiro, porque é uma merda, horrivelmente mal escrita. Uma historinha chata
escrita pela Louca Que Escreve Trancada No Quarto.
E segundo porque... Sei que parece idiota, mas não lembro o
outro motivo. Deve ter a ver comigo. Meu deus, posso ouvir o piano tocando. Me
arrepio. Tenho vontade de chorar.
Estou com fome e tenho que escrever até o fim. Tipo uma catarse. Esses psicanalistas e suas loucuras.
Estou com fome e tenho que escrever até o fim. Tipo uma catarse. Esses psicanalistas e suas loucuras.
Mas consigo lembrar, ó meu deus, consigo criar aquela cena
que não sai da minha mente, que me atormenta e me conforta: Maria, a mãe mais
linda do mundo, tocando o piano como se não houvesse nada no mundo – e não
havia mesmo – além daquela princesa sentada ou deitada, ouvindo os acordes. A
melodia triste que contava uma história. A história que não consigo escrever. A
partitura suja de sangue. E de esperma, maldito seja, Claudius.
No próximo domingo é Dia dos Pais. Sei lá se tem a ver, mas
lembrei disso agora.
Filho da puta. Não se contentou com um cartão. Teve que usar
sua bonequinha Clara. Sua bonequinha linda recheada de dor.
Não sei mais o que escrever. Jamais soube, desde a primeira
linha neste inferno. Mas para algum lugar as frases vão. E de algum lugar elas
vêm.
Seria do inconsciente? Esta floresta inóspita que me dita o
que devo escrever?
Talvez se eu cavar mais fundo, e é isso que não quero fazer,
ou tenho medo de fazer, eu chegue até Clara. Até Maria, a mãe.
Perdidas dentro de mim.
22:14
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sábado, 2 de agosto de 2014
Piano Para Pequena Clara – Dia 118
2 de agosto de 2014
22:53
Sinto sua falta. Não sei mais o que você diz ou
pensa, então tenho que continuar tateando. Uma vez você disse que não sabe para
onde esta história está indo, e que eu só fico fazendo suposições, pode ser
isso ou pode ser aquilo. Ou até aquele outro. Mas é assim que esta história
nasce (e morre) a cada noite. Assim como eu, suponho.
Jantei com Cris hoje. Ela me disse que Emília ia
embora. Rumores. Me contou assim, como quem não quer contar. E ir para onde? Parece
que o pai dela (veja, tem pessoas aqui que tem família ou algum tipo de
família) era médico. E alcoólatra. Cris me disse que um médico não é alcoólatra
para a sociedade. Ele é apenas médico.
Claro que pensei em Claudius e o que ele fazia com
Clara.
Mas também pensei em perguntar se era com ela que
Cris estava namorando.
− E quem disse que eu estou namorando? perguntou ela.
Resolvi não insistir. Talvez ela não estivesse namorando
com Emília. Talvez estivesse, e fingiu não se importar, que é o que fazemos quando
dói demais.
Porra, é isso o que fazemos quando dói demais.
Logo, Claudius não podia brincar de médico com
Clara. Não podia passar a mão nela quando tomavam banho (era cuidado de pai,
claro). Se Clara tivesse dito a alguém, sobre o pipi do papai, sobre ele fazer
coisas que ela não queria que fizesse, mesmo que fossem muitos anos mais tarde,
diriam: são falsas memórias. Ela acha que aconteceu, ou fizeram ela acreditar
que aconteceu. Mas não aconteceu.
Não aconteceu porque ele era médico.
Então tudo bem que tivesse comido a filha.
Comido e recomido a cunhada Lara.
Tudo bem que ele desse uns tapinhas e uns soquinhos
e sei lá mais o que na esposa Maria.
Decerto pensaram que ela merecia. Se apanhou é porque merecia. Ou talvez não merecesse, diriam algumas dondocas. Mas ele era médico e é essa a questão. Abafaram tudo. Abafaram Clara. Que pode ter morrido e eles, se isso aconteceu mesmo, devem ter lamentado profundamente. Mas abafaram. Ele era médico. Dr. Não Sou Peixe Pequeno. Dr. Não Sou Pouca Bosta.
Decerto pensaram que ela merecia. Se apanhou é porque merecia. Ou talvez não merecesse, diriam algumas dondocas. Mas ele era médico e é essa a questão. Abafaram tudo. Abafaram Clara. Que pode ter morrido e eles, se isso aconteceu mesmo, devem ter lamentado profundamente. Mas abafaram. Ele era médico. Dr. Não Sou Peixe Pequeno. Dr. Não Sou Pouca Bosta.
Meu nome é Claudius.
Posso quase ouvir essa frase sendo dita por ele em
algum grupo.
Por que ele voltou a beber depois de dez anos?
Talvez ele estivesse se divertindo com Lara. A
cunhadinha. Gostosinha. Putinha. Talvez ela tenha ficado pelada, como já ficava
quando estavam só os dois, e tenha derramado um champanhe bem caro que escorreu
entre os seios e desceu pela barriga, encharcando o lugar por onde ele deveria
andar, digo, não deveria andar, mas andava, e nem assim se satisfez, porque
também quis o da filhinha, maldito seja.
− Lambe, ela deve ter dito.
E ele lambeu. Várias vezes. Reacendeu o monstro. Ele
lambeu, gostou do gosto.
E não foi só o gosto de Lara.
Existe um nome para um tipo de recaída dessas no
grupo.
Estou cansada. Mas acho que estamos chegando a algum
lugar. Pode parecer idiota, mas neste momento tenho medo de que venha acontecer
alguma coisa comigo por causa das coisas que escrevo. Quem sabe ser processada
(vai que a família da qual esqueci tenha tido, ou tenha até hoje, muito
dinheiro?). Mas também me ocorre a ideia de ser morta por causa das palavras
que escrevo aqui. Tipo queima de arquivo.
De novo me vem à mente a ideia de um incêndio.
Está um pouco mais calor hoje.
E é por isso, pela queima de arquivo, que ninguém
jamais vai ler o que escrevo aqui.
Talvez eu já tenha morrido uma vez.
E não quero morrer de novo.
Sim, estamos chegando a algum lugar. Estou prestes a
descobrir o grande mistério da pequena Clara.
23:15
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