Aproveitando a
Sexta-feira 13, e porque a minha tchutchuka disse que estava na hora de atualizar este blog, para matar as saudades, ficção. O conto abaixo foi escrito há dez anos, e tive que digitá-lo palavra por palavra, tudo de novo, já que o Omni Page não funciona muito bem quando o texto impresso está repleto de anotações
a caneta (ele foi fruto de seminários de criação que tentamos manter, mas duraram só algumas semanas). Escrevo diferente hoje (e pontuo diferente também), mas foi bom matar as saudades – não relia o conto há cerca de oito anos. Aproveito para deixar como lembrança ao
Ricardo Azevedo, que foi no meu ex-colégio para divulgar seu “Coração Maltrapilho”, em 1992, e lembro de um colega ter perguntado a ele que conselhos daria para quem queria se tornar escritor, e 18 anos depois tive a honra de encontrá-lo na internet e dizer que sigo escrevendo.
O ARQUEIRO E A DONZELA
— Não estou mais no serviço.
— Está sim. Seis horas, entendeu? Seis e dez, o dinheiro será depositado.
— Já entendi e já disse que vou estar lá. E agora esqueça esse número – ele diz e bate com o gancho do telefone.
Sobre o terraço quadrangular do prédio, Oliver se posiciona, aproximando-se da beirada. Focaliza a janela do outro lado da rua, metros abaixo. Relaxa a musculatura das costas e constrói sua posição. Chupa o dedo para medir a direção e velocidade do vento. Ergue o arco, com a mão esquerda agarrando a empunhadura com firmeza. Inspira forte o ar, que entra suave preenchendo os pulmões. Postura e respiração. Ele pega uma flecha e a coloca entre o arco e a corda. Com os dedos indicador e médio, Oliver prende a flecha e a puxa, junto com a corda. Armazenando energia para o disparo. A janela do outro lado da rua cresce em sua retina.
Oliver dispensa alguns minutos se concentrando. Já são quase seis horas. O velho aparece na janela com uma garotinha, sua neta. As cadeiras são postas na pequena sacada em frente e, entre elas, uma mesa artesanal circular com a tampa feita de vidro. Sobre ela, uma jarra cheia e duas xícaras. Oliver abaixa e torna a erguer o arco, procurando a posição ideal.
O sino da igreja ao horizonte anuncia a primeira das seis badaladas. O arqueiro puxa a corda rente ao ombro para alinhar a mira. Velocidade e precisão. Ouve a segunda e terceiras badaladas imóvel. O velho enche o copo da menina. Ela sorri para ele. Oliver espera até o penúltimo golpe do badalo no sino. A garota olha para o terraço do edifício. Ele dispara. A flecha não vibra muito no ar. Mais pesada que as tradicionais, ela percorre devagar o percurso, mantendo-se estável à influência do vento. A ponta de metal banhada em veneno ruma para o coração do velho. Antes dela completar a metade do caminho, Oliver leva a mão à testa, dando um tapa. Começa a correr. A flecha acerta a jarra de vidro, produzindo um vendaval de estilhaços. A garota começa a chorar e aponta para o terraço.
Oliver pula para o terraço contíguo, calculando mal a distância, fica dependurado do tórax para baixo. Joelho fraturado. Suas pernas se debatem no ar a procura de um chão. Tenta erguer os ombros, arranhando todo o peito e barriga. Sente a pele misturando-se ao tijolo. Com o bico dos pés patinando sobre a parede, ele consegue o impulso necessário e eleva seu corpo até a beirada do terraço, jogando a si e ao arco ali dentro. Oliver rola pelo concreto gemendo de dor. As flechas não usadas se esparramam, junto com o sangue de seu joelho.
O som estridente das sirenes das viaturas inunda ao redor. A polícia se espalha pela quadra, formigas prestes a devorar o corpo do inseto moribundo. Vasculham o prédio, cercam a área e interrogam o velho, enfurecido. Delimitam o perímetro e a presença dos curiosos. Um homem mancando sai de um dos prédios e se dirige a um telefone público. Disca um número e fala algumas palavras ao gancho. Ofegante. Ao concluir a ligação, dirige-se a um beco próximo e, entre as latas de lixo, esconde o arco. Com muito esforço, ele caminha até perto do prédio em que a polícia diz ter havido uma tentativa de assassinato. Permanece entre as árvores, observando. E aguarda.
Anoitece. A polícia vai embora. O sangue coagulado na perna do arqueiro repuxa a pele toda vez que é imposto algum movimento. O velho sai acompanhado de vários amigos e seguranças. Ele é recebido por um luxuoso carro preto e duas elegantes mulheres. Abraços e risos. A porta do carro se abre para que o velho entre. Oliver chupa o dedo e ergue o arco. Dispara a flecha, que sobe quase horizontalmente. Ele bate forte com o pé no chão e se apressa em pegar outra flecha. Raspa o polegar pela pena, enquanto acompanha com o olhar o curso de seu primeiro disparo. A flecha faz um semicírculo no ar e atravessa o vidro traseiro do carro. Oliver torna a atirar. As pessoas em frente ao vidro gritam assustadas. Olham para os lados procurando a origem dos disparos. Quatro homens sacam seus revólveres e mandam o velho se abaixar. No entanto, ele apenas ergue sua cabeça, contemplando a segunda flecha se aproximando. O único a notar a presença dela mergulhando em sua direção. Com o queiro erguido, mal consegue notar quando a flecha perfura sua traqueia. As duas mulheres gritam, os homens se voltam para saber o que aconteceu. O velho começa a se debater. Emitindo pequenos grunhidos, a garganta insiste em censurar a voz. Os homens tentam acudir, agarrando o corpo histérico. O velho desaba sobre a calçada. Seus braços param de se mover. A garotinha aparece na janela. Oliver vai embora.
Logo após depositar o arco dentro de um terreno baldio, ele caminha de cabeça baixa para longe dali. Seu pescoço e coluna doem, sua perna parece querer trazê-lo para o chão. Seus braços estão pesados, sua garganta está seca. Ele continua sua caminhada. Sobe no ônibus e deita a cabeça no vidro.
A viagem é breve. Oliver desce e segue pela calçada. A sua frente, um casal adolescente. O namorado possui braços grossos e uma estatura privilegiada. A garota é magra e veste um macacão. Ele se dirige a ela, em tom ríspido, falando alto e a puxando pelo braço. A garota faz menção de chorar, mas nada diz. Oliver observa que ela está sendo conduzida pelo lado de fora da calçada.
— Ei, jovem – disse Oliver –, quando você estiver andando com uma mulher, ela deve ficar pelo lado de dentro da calçada.
Os dois se viram e ficam olhando para Oliver, que conclui:
— Não caminhe com ela pelo lado de fora. É desrespeitoso.
O namorado cerra o punho e avança sobre Oliver, que permanece estático. A garota apenas observa. E vê o estranho homem se desvencilhando, pegando o braço de seu namorado e o torcendo com força, para logo em seguida arremessar ele e sua estatura privilegiada inteiros sobre o pavimento. Suas costas permanecem soldadas ao chão. Antes que possa levantar, Oliver coloca o pé sobre o jovem e diz:
— Aja como um cavalheiro.
E prossegue sua caminhada.
Dentro da mansão, o homem de terno sentado à poltrona entrega o envelope com dinheiro a Oliver, que se levanta do sofá e abre a porta da sala, sem se despedir. O homem o interpela:
— Então eu posso ligar para combinarmos um jantar?
Oliver se vira e diz, antes de ir embora:
— Eu já disse para esquecer o meu número. Se aquele telefone tocar, eu volto aqui. E não vai ser para um jantar.
Oliver destranca a porta da frente de sua casa, adentrando a sala. Caminha até um dos quartos. À meia luz, ele coloca o pônei de brinquedo ao lado da cama, com cuidado para não acordar a criança. Senta sobre o canto da cabeceira e beija a menina na testa. Ela se vira, pronunciando algumas palavras sonâmbulas. Oliver se retira.
Acende a luz e olha para a cama de casal. A mulher ali deitada acorda, mas nada diz. Ele se aproxima e a encosta no braço. Ela mostra-se para ele, denunciando os olhos inchados.
— Está atrasado – a mulher diz.
— Eu sei. Passei agora no quarto da Michele. Trouxe um cavalinho de aniversário para ela.
— A Michele não precisa de um cavalinho. Precisa de um pai.
— Eu sei.
— E eu preciso de um marido.
— Eu sei. Me perdoe. A hipoteca da casa já está paga. Adiantei seis meses. – Oliver põe a cabeça da mulher em seu colo e a afaga. — Fiquei preso no serviço, os gerentes convocaram uma reunião de última hora lá no banco.
— E lá no banco não existe telefone?
— Sim, existe. É que... eu achei que não fosse demorar. Me perdoe. – Ele alisa os cabelos dela com a mão de forma suave —Tudo vai ficar bem.
— Promete?
Oliver sorri.
— Não se preocupe. Amanhã mesmo eu procuro um novo emprego.