segunda-feira, 19 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 99


19 de maio de 2014

22:40

Embora faça muito tempo que não veja você, que não saiba de você, sinto como se estivéssemos pertos de novo. E é bom sentir sua presença. Você, a quem já chamei de tantos nomes – e todos os nomes, em todos ali estava você. Escrevo para me sentir viva, para aguentar mais um dia. E cada dia que escrevo é um dia que disse não para a morte.

Não vou negar: não é todo dia que digo não para ela.

Mas neste momento estou dizendo.

O tempo está mudando de novo. Tem tanta coisa que vai e volta em meu espírito, afeta meu corpo como o peso de um vagão. Não sei se ele pertence a algum trem ou é apenas um vagão abandonado no meio do deserto. Ou de uma caverna escura. Não sei se existe vagão na história de Clara. Foi apenas uma metáfora, a primeira que me ocorreu, para me descrever hoje. Escrevo para lembrar.

E às vezes para esquecer.

Mas que merda: escrevo diversas vezes para esquecer. E esqueço. Mas então as memórias, que não são bem memórias, são mais como abelhas vindo me incomodar, voltam. E tenho que escrever de novo.

Penso em Clara sobre as costas de Maria, a mãe, deitadas na grama em um dia de sol. Seria a cena mais bonita desta história. Mas também temos o piano, cujas notas não tenho escutado em meus ouvidos internos. Queria que elas voltassem. Talvez voltem, porque acho que aquela melodia perdida no tempo diz mais do que consigo captar em minhas palavras, eu, péssima escritora. A história de Clara podia conter duas cenas: a cena delas deitadas na grama do parque e Maria tocando para ela ouvir. Poderia haver só isso e eu me daria por satisfeita. Mas então aparece Claudius. E aparece Lara, que deveria ter cuidado da sobrinha – às vezes até suspeito que ela seja mãe e não tia.

Há ainda Jonas. E Marcos. Há ainda muita coisa que não consigo entender, que não consigo criar. Ou não quero, por algum motivo que – ai, psicanalistas – Sarah sabe, mas não vai me dizer. Ou não vai me dizer antes da hora. E quando chega a hora, você me pergunta. Eu não sei, e não sei se não sei mesmo, ou se não quero saber. Não sei e tenho raiva de quem sabe, que nem aquela cantiga infantil.

É tão difícil eu colocar coisas de criança nesta história. Escravos de Jó jogavam caxangá. Pimponeta, petá petá perruje. Jogo da Amarelinha. Pular corda, bambolê. Devia ter tudo isso, e por um momento sei que Clara fazia tudo isso. Mesmo que eu não veja, que não consiga criar, em meu coração sei que Clara foi criança. Que teve infância. Sarah me disse que ser criança e ter infância não é a mesma coisa. Mas Clara teve infância.

Ela foi feliz um dia.

E talvez – talvez – ainda possa voltar a ser.

22:55

2 comentários:

  1. Será que eu tive infância ou que fui apenas criança? Será que fui criança alguma vez, ou já nasci adulto? Não sei, Maria. Por vezes acredito ser apenas mais um personagem travestido de leitor, ou leitora. Não sei. Sei que, do nada, me vi dando pitacos na tua história, ou nascendo dela, ou sobrevoando do ponto de vista de algum leitor, mas também não sei. Estive sumido por um bom tempo, se morto, dormindo ou apagado: não sei; se criador ou criatura: não sei; na verdade nem o meu gênero me é dado conhecer. Então estou tão perdido quanto tu nesta história, mas só sei que um dia terá um final, da tua parte ou da minha. Existimos ou somos apenas personagens? Tu tens a companhia de Sarah, de Clara e de Cris (quem é Cris?) e eu estou sozinho, meu papel é vir aqui e deixar rastros, meu papel é te ler e agora estou me dando conta ( e isso dói) de que não existo, de que posso não existir nem nunca ter existido, e de quem é essa consciência que eu pareço reproduzir? Consciência?! O quê? Não sei, não digo. Maria, me responde: que diabos estamos fazendo aqui, eu que te leio, tu que me escreves, tu que te escreves, tu que me crias, e a ti, e a alguém que brinca com todos. Louco! Porém bom... Teu Leitor.

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    1. Se teu papel é me ler, o meu é escrever, para que tu me leia. Sobre a Cris, dá uma olhada ali no cap. 95. Enquanto isso, vou escrever mais um capítulo para ti, Leitor(a).

      Até daqui a pouco.

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