domingo, 4 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara - Dia 95


3 de maio de 2014

21:34


Não gosto do que acabo de escrever – mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu. E respeito muito o que eu me aconteço.

Li esse trecho de um livro daquela Clarice que peguei aqui na biblioteca, ou o mais perto daquilo que se poderia entender como uma biblioteca que tem aqui, e fiquei com mais vontade de ter conhecido essa mulher. Na verdade, acho que ela deveria estar escrevendo em um lugar parecido com este, tateando a narrativa assim como tateio, escrever sem saber o que vem a seguir, e achando o próprio texto torto, ela mesma assumindo que não é assim que se escreve. Eu também não sei escrever, Clarice. Apenas escrevo.

Tenho certeza que vou jogar tudo isso fora, mas se alguém quisesse ler, ela eu deixava. Talvez, pensei agora, ela me entendesse. Ela que escrevia para se entender também.

Será que ela passou pelo que eu passei?

E o que eu passei? você me pergunta.

Ainda não sei. Por isso escrevo.

Alguns dias se passaram. Nem sei se pensei em desistir, pelo menos formalmente, mas houve um dia em especial que a dor se tornou tão forte que decidi não escrever. Ou deixei para depois, que é a mesma coisa. Tudo o que eu posso fazer é esperar a dor passar, como a chuva. E muitas dessas noites, em especial nas primeiras, em que tentei escrever esta história, estava chovendo. Faz algum tempo que não chove.

Por que o céu parou de chorar?

Talvez ainda haja esperança para Clara, mas não sei por onde começar. Todo esse tempo que estou tentando escrever esta maldita história jamais sei para onde ela deve seguir. Sarah me diz para continuar escrevendo, para apenas escrever. Tenho certeza que esses psicanalistas são loucos fugidos de um asilo, talvez até já tenham estado aqui, foram fazer faculdade, leram Freud e todo aquele pessoal, e agora ficam por aí a dar pitacos. Pensando bem, eu poderia fazer a mesma coisa.

Mas antes preciso terminar a história de Clara.

Jantei com Cris mais cedo hoje. Havia mais gente junto, e confesso que não me concentrei direito na comida, hoje cachorros-quentes feitos por um desses caras daqui. Ela me disse que soube da Faele, e disse que ela está casada com um ex-presidiário, que quer que ele vá para a igreja, e acho que Faele deve ter se convertido. Quer dizer, não pode mais viver na vida de pecados com a Cris, que isso era coisa do diabo e ela ia rezar por ela toda noite, que Deus tinha planos para ela.

 Você e seu Jesus podem ir à merda, disse Cris.

E veio para dentro de volta. Ela não tocou mais no assunto, mas disse que Faele não estava chapada. Não a conheço pessoalmente, apenas sei o que Cris me conta dela.

Existem dores maiores do que a minha.

Será que eu já tive alguém?

Não sei, nunca me perguntei isso. E honestamente, não quero pensar nisso agora.

Não gosto de homem.

Mas também não gosto de mulher.

E Clara?

Ainda não sei se ela teve alguém, se chegou a ficar mais velha. Um namoradinho na escola. Hmm, isso poderia acontecer. Clara tinha um namoradinho. Um garoto tímido, desses que dizem “estamos namorando – mas ela não sabe disso”. Ora, por que não? Na história de Clara podia ter um toque de inocência – por que tem que ser apenas dor o tempo todo? Um namoradinho. Como seria seu nome? Pedro? Não sei, me veio Pedro na cabeça. Ele pode ser Pedro. Amanhã a Deus pertence, como eles dizem em um desses grupos que acontecem aqui.

Por que Claudius voltou a beber depois de dez anos?

Seria ele um bom pai antes disso?

Não sei, tudo nesta historia parece picotado. Maria Picotada. Maria Tentando Juntar Os Retalhos.

Talvez como Clarice.

Como Maria, a mãe.

Como Clara.

22:11

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