quinta-feira, 29 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 103


29 de maio de 2014

21:36

De novo a porta fechada. Escrevo sem pensar porque se pensar paro de escrever. Ontem a Cris me deu um beijo. Na bochecha, mas acho que ela queria algo mais. Talvez eu quisesse, e tenho certeza que você pensou “até que enfim essas duas ficaram juntas”.

Mas tudo que consegui fazer foi chorar.

Muito.

Ela me abraçou e foi embora. Quer dizer, embora de para longe, não embora deste lugar. Sarah me mostrou um texto, ou melhor, ela estava lendo um texto que estava por perto, ela esqueceu – ou fez que esqueceu, porque começo a desconfiar que ela está me mandando pistas para eu descobrir algo que, tenho certeza, ela já sabe sobre mim, mas não vai me contar – e eu li. Era sobre anoréxicas e bulímicas. 

Aliás, escrever isso, de alguma forma, me causa dor no estômago, acidez na garganta. 

O texto dizia que muitas não podem demonstrar desejo porque quando ele aparece é machucado.

Justamente por algumas, ou muitas, já terem sido abusadas. 

Então você acha que Cris e eu seríamos felizes juntas, não é?

Dane-se. Vou dizer de novo: não quero falar de sexo.

Cris estava triste ontem também. De vez em quando ela fala, como eu mesmo falo: vou me matar. Não vou aguentar. 

Claro que essa fala é mais minha do que dela, e às vezes ela tem até um bom humor. Ri mais do que eu, pelo menos. Sim, ainda penso em desistir – mas se a morte não for o fim de tudo e o que está lá for pior do que está aqui?

De qualquer forma, essa maldita história, por algum motivo que ainda não entendo, ou não quero entender, não pode ser deixada sem fim. Logo, não posso morrer. E escrever, e talvez Sarah soubesse disso, mesmo que sejam divagações da Estranha Que Escreve Fechada No Quarto, de alguma forma vai cicatrizando algumas coisas. Como a dor de não saber. E claro, meu mar de pensamentos revoltos.

Sarah me disse que vai me ensinar a fazer aqueles, como se diz, genogramas? Aqueles com bolinhas e quadradinhos. Para incrementar a minha história. Tipo a árvore genealógica da família de Clara. Relações conflituosas, vícios, incestos – nossa, que palavra horrível. Mas ela disse que tem simbolozinhos para contar tudo isso por meio de um desenho. Imagina, essa história de merda está saindo do meu controle. Jade sabe sobre ela, e me pergunto se todo esse pessoal, que me parece incrivelmente parecido, não cochicha quando estou aqui, para eu não ouvir, a Estranha Que Escreve, e especulam sobre a história de Clara.

Às vezes tenho a impressão de que alguém lê isto aqui enquanto durmo.

Ainda não tive coragem de jogar tudo fora. 

Ainda não tive coragem de muita coisa.

O fim está próximo? quase ouço você perguntando. 

Não sei. 

Mas sei que não vai ser hoje.

Talvez tudo acabe em um incêndio.

Mas não hoje.

Hoje eu vou ficar viva mais um dia.

Maria Viva Mais Um Dia.

21:54

Nenhum comentário:

Postar um comentário