sexta-feira, 25 de julho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 116


25 de julho de 2014

21:03

A porta está aberta, por enquanto. Ninguém nos corredores. Hoje faltou luz aqui, e ficamos um tempo no escuro. Ouvi as vozes e reparei nos vultos de todas aqui. Mas, de alguma forma, enquanto elas falavam muito sobre nada, apenas desci para o de dentro de mim. De alguma forma, me senti em casa. Não sei se já tive medo do escuro, se já escrevi isso aqui. Não lembro. Mas hoje não senti medo. Hoje não.

Fiquei até pensando no que ia escrever mais tarde e lembrei que ontem bateram na porta aqui. Ela já estava fechada e, geralmente, as pessoas não batem na minha porta depois que ela se fecha. Mas abri e aquela garota bonita de óculos me olhou, com seu olhar de várias coisas, e vi que ela estava com algo na mão. Era Lady Brownie. Na verdade, a porta estava entreaberta e vi que alguém vinha caminhando bem devagarzinho pelo corredor, se agarrando em um corrimão. Ou com uma bengala. Sei que parece idiota, mas não tenho certeza de como ela estava. Talvez não tivesse achado ela bonita antes, ou achei e não me importei, ou apenas estou achando agora. Como neste momento Emília me parece bonita, posando na frente do espelho com batom – uma boneca arrumada. Talvez já tenha achado Jade bonita, talvez Cris também. Sei lá porque escrevo essas coisas, só sei que escrevo.

Isso não é importante, embora Sarah tenha me dito que nada era trivial. Ainda não sei com quem Cris está namorando, se é que ela está mesmo namorando alguém, e isso também não é importante. O que eu queria registrar aqui foi o presente que Brownie me trouxe. Ela estava com ele sobre a mão e debaixo de um pano. Ela disse que tinha vindo me trazer. Cheirei. Era um de seus brownies. Cheirei de novo. Tinha algo escrito nele, mas não li na hora.

 Tem cheiro de infância? perguntou ela.

Cheirei de novo. Tinha cheiro de muitas coisas. Tinha cheiro de algum lugar seguro.

 Sim, respondi.

Ela me encarou por um instante.

 Você acha que um dia vou voltar a caminhar?

Olhei para ela. Não soube o que dizer.

 Talvez se eu conseguir lembrar, um dia, você consiga esquecer.

Neste breve intervalo de tempo, pensei em Maria, a mãe. E sua Clara. Pensei no carinho de mãe, no amor de mãe. Que era, sempre seria, incondicional. Maria morreria por Clara.

Meu deus, que não tenha sido isso o que aconteceu.

Cheiro de infância, cheiro de paraíso. Cheiro de para sempre. Um lugar seguro, que nem sei se existe. Mas com o qual sonho todo dia. E não pensei mais em Claudius, nem em Lara. E neste momento, nem em Jonas e Marcos. Apenas baixei a cabeça e senti o cheiro do brownie mais uma vez.

 Parabéns, garotinha, disse ela.

Tive vontade de chorar. Olhos marejados. Parece que é um clichê, mas que se dane: foi isso o que senti. E, sei lá se foi isso, mas é o que me parece: quis estar viva. Por algum motivo, que talvez seja esperança, talvez seja o cheiro que me trouxe a ideia de que talvez o passado que esqueci não tenha sido totalmente dolorido, ou o trauma, se é que houve, que sofri e apagou tudo, tenha algum dia um sentido. E se não houver, porque não deve mesmo haver, devo criar um. Por isso escrevo.

Obrigado, respondi. Ela sorriu. Passou a mão em meu rosto. E sei que você está pensando que com esse papo de garotas bonitas vou me engatar em alguém aqui, ou mesmo em Brownie, com seu gesto de carinho duplo. Mas, pensei agora... Talvez senti como se uma irmã tivesse vindo para dizer que me ama.

Ó, Brownie, como foi fazer isso comigo?

Alguém, algum dia, já me amou. Não lembro, não imagino como tenha sido. Mas sinto. Um amor de irmã.

Ou de mãe.

Me arrepio quando escrevo essas coisas e penso em parar de escrever porque já estou cansada, mas Sarah me disse que eu jamais escreveria demais. Talvez de menos, mas qualquer coisa que me viesse à mente, por mais descabida que parecesse, eu deveria colocar para fora. Se não falo, escrevo.

E então, vendo Brownie indo embora e caminhando em sua eterna câmera lenta pelo corredor afora, fechei a porta do quarto. Pensei em tudo aquilo, como pensei nisso de novo, no escuro hoje. Senti o cheiro de novo, como uma viciada. Foi assim mesmo que me senti: deliciosamente viciada. Uma viciada em paz. Suspiro ao escrever isso. Me viciei em algo que perdi lá atrás, e nem sei o que é.

Mas foi bom.

De alguma forma que não lembro, mas foi bom. Houve algo de bom.

Algo de bom.

Olhei para o brownie e fiquei juntando suas letrinhas, lendo e relendo. E sorri.

“Feliz Dia do Escritor”

21:34

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