domingo, 24 de novembro de 2013

Nanowrimo – Dia 23


Um pouco atrasada, eu sei.

Achou que eu não viria?

Pessoas de pouca fé.

O caso é que agora é tarde da noite. Portanto não estou ouvindo o piano que tenho ouvido e até queria ouvir agora. Mas tem outra coisa: descobri  hoje que tinha alguém naquela casa que tocava piano. O que aconteceu depois ainda não sei, mas nesta história alguém tocava piano.

Você disse que espera ouvir o falar do homem dos meus pesadelos.

Quero dizer, dos pesadelos de Clara. Ó, Clara.

Hoje me ocorreu que, depois de ele ter voltado a beber, voltou com tudo e passou a se embebedar em bares próximos de casa e na própria casa. Em um desses dias, Clara chegou em casa e sentiu um odor forte de álcool. Ela ainda não entendia bem o que significava aquele cheiro, o que significava o poder do álcool, mas esse, junto com o café, foi o cheiro mais forte de sua infância. Não é um tanto bizarro? Você pergunta para uma pessoa o que ela lembra da infância e ela responde: cheiro de trago. Trago em geral, mas me vem a cabeça um Barreiro, parece que o Velho andava frequentando a casa naqueles dias.

Clara entrou em casa e sentiu aquele cheiro forte, mas nada estranhou. Depois de algum tempo, aquele era o cheiro do lar. Ela entrou, e era como se as paredes cheirassem a álcool, e como ela sentia cheiro do álcool que usavam no mimeógrafo da escola, até pareceu convidativo. O cheiro do álcool fazia ela se sentir em casa. Mas o homem alto moreno de cabelos negros, cujo nome não consigo lembrar – digo, inventar, porque tudo isso é, ou penso que é, uma história que estou inventando e vou permanecer confinada neste quarto, ou nesta cela, dependendo do ponto de vista, até terminar – tinha saído. O álcool que saía por seus poros deixava um rastro no ar, tanto que mesmo quando ele não estava em casa, o cheiro – seu espírito, eu diria – permanecia no ambiente. Sei que ele voltou para casa, provavelmente do bilhar, e começou a discutir com Maria.

Não eu.

A mãe.

Sei lá porque eles discutiam e não fazia diferença, o que importava para ele era discutir. Ele começou a pegar em seu corpo, começou a puxar ela para si. Ela estava de avental, sobre um vestido, que ele levantou, colocou a mão entre suas pernas, deslizou por suas coxas. Ela disse que não queria. Ele insistiu. Ela insistiu que não. Clara estava no corredor assistindo tudo. O homem alto e moreno de cabelos lisos deu com as costas da mão no rosto de Maria, tão forte que ela caiu no chão. Não, antes ele chamou ela de vagabunda. Vem cá, putinha.

Depois ele deu o tapa.

Ela ficou alguns segundos caída no chão, até que ele agarrou ela e ajudou ela a se levantar. Não vamos brigar, ele disse. Desculpe, eu me descontrolei, você sabe que eu te amo.

Ela disse que tudo bem.

Vamos para o quarto, ele disse. E ela foi andando na frente, tal qual um condenado e seus últimos passos no corredor da morte.

Pouco antes de fechar a porta, o diabo voltou a falar.

A falar, não. A sorrir.

Ele olhou para o corredor e viu que Clara tinha visto tudo. Então ele olhou para ela.

Dos pés a cabeça.

De novo, dos pés a cabeça.

E sorriu.

Ele fechou a porta do quarto, ainda olhando para Clara, olhar de assassino nos olhos de criança. 

Olhar de namorado nos olhos de criança.

Aquela não tinha sido a primeira vez que ele bateu em Maria.

Nem foi a última.

Mas naquele momento Clara decidiu que nunca ia beber.

2 comentários:

  1. Está bem, Maria dos Mistérios. Não me surpreendeste, mas foste corajosa, muito. Se bem que não consegui acreditar em tudo o que me contaste. Não precisas entrar em detalhes não, odeio quando fazem a minha parte, quando tiram-me o prazer de descobrir as 'confissões'. Provoquei-te e tu caíste e agora, estás com raiva de mim? Ó Maria Corajosa, conheço tua história… Será? Sedutores são teus jogos narrativos… vais dizer que não? Também me atrasei hoje, mas estou aqui. Teu Leitor Mais Querido.

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    1. Obrigado pelo "corajosa" e pelo "sedutores são teus jogos narrativos."

      Raiva de ti? Hoje, pelo menos, não.

      Acabo de escrever coisa nova ali em cima.

      Mas como finalizei dizendo, estou cansada hoje. :)

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