segunda-feira, 26 de maio de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 102


25 de maio de 2014

23:45

Passeei com Cris hoje pelo campo à noite. Estava frio, úmido, acho que todos já estavam dormindo. Nem sei se poderíamos andar por aí, mas andamos. Andamos em volta do campo. Depois de alguns passos, ela pegou no meu braço. Olhei para ela, não soube exatamente como reagir, mas disse:

 Eu não...

 Eu sei que você não, disse ela. Eu só queria dar uma volta de braços dados. Faz tanto tempo. Nem sei mais o que é isso. Por favor.

Hesitei, mas... E daí? Estavam todos dormindo.

 Eu só quero dar uma volta e sonhar.

Sonhar, pensei. Não se nega um sonho a ninguém. Andamos.

E foi um passeio bom, confesso.

Cris já foi dormir. Jade me disse que sentiu minha falta. Eu disse... Mentira, não disse nada. Então ela disse que um dia queria ler a história que estou escrevendo.

 Como você sabe que escrevo? Foi a Sarah, né?

 Não, ela disse. Uma dessas noites você esqueceu de trancar a porta e ela estava entreaberta quando passei. Olhei para dentro. Foi sem-querer.  E vi que você escrevia.

 E como você sabe que é uma história?

 Não sei. Mas achei que fosse.

Não disse nada. Maria Que Não Diz Nada.

 Deve ser uma história bonita.

 Não. É horrível.

E saí de perto dela. Vim em direção a este lugar.

 Mesmo assim, disse ela. Eu gostaria de ler, um dia.

Fechei a porta, como ela está fechada agora. Com um pouco de medo. Aliás, com medo. Não existe pouco medo ou muito medo: apenas medo. Será que alguém lê isso aqui quando não estou por perto?

Você que me lê. O que está procurando? A mesma coisa que eu? Mas não posso responder suas perguntas se não vejo, ou não consigo ver, ou não quero ver as respostas. Que cor são meus cabelos? Lembro vagamente de ter escrito isso. A Clara, pelo menos a Clara que imagino, era loirinha.  O homem alto de cabelos lisos e negros, óbvio, tem os cabelos pretos. Lara, não tenho certeza, mas acho que castanho claro.

Os meus cabelos, pego na mão e passo os dedos até o fim dos fios para lembrar, são negros.

Pinto os cabelos. Não lembro como eles eram antes, se já eram negros. Não lembro de muita coisa, e imagino que você já saiba isso. Meus cabelos são pretos como – não sei por que me ocorreu isso agora – os cabelos de Maria.

A mãe.

Paro de escrever. Acho que todos estão dormindo.

Me pergunto de novo: será que morri e não sei?

Você diz que me ama.

Não posso dizer que entendo esse sentimento.

Então eu já fui amada?

Ó Deus, já fui?

O que resta para mim nesta vida que não sei como começa? O que resta para nós, pequena Clara?

Preciso saber como termina a sua história.

Para poder entender como começa a minha.

00:04

2 comentários:

  1. Pois bem, Maria, falei em amor e talvez eu tenha exagerado. Mas o que é amor? Amor não é importar-se com o outro? Eu me importo realmente contigo, e já que tu falaste na Maria-Mãe-da-Clara, se tu não és essa Maria talvez tu sejas a minha mãe, pelo menos a causa de eu existir, por tua causa alguém me jogou nesta história e se ambos estamos perdidos, um dia poderemos nos encontrar, encontrar a nós mesmos, ou alguém poderá nos encontrar ou se encontrar em nós. Isso não é filosófico? Não sei, pois como tu, eu só escrevo. Maria-Que-Escreve e Leitor-Que-Lê. Viste só que par perfeito nós somos?! Sim, mas tenho a sensação de que o nosso fim está próximo. Será que me enganei? E por falar em piano, lembro que em algumas páginas viradas da minha vida eu tinha muita vontade de ter aprendido a tocar o piano. Talvez pelo piano eu tenha voltado, talvez pelo piano eu siga afinado com as tuas ações. Maria-Minha-Mãe, Maria-Companheira, Maria-do-Leitor. Vida louca essa nossa. Autores, dêem as caras, acabem com nossa dor! (Não é gostoso brincar dessa maneira, Daniel, diga se não? Um abraço da autora do Leitor da Maria).

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    1. Sarah falou algumas coisas que me fizeram pensar. Vou te escrever hoje à noite.

      Love,

      Mary

      PS - Sim, esse jogo de gato e rato literário é muito bacana, e a história foi nascendo, pode-se dizer, a partir disso. Até mais tarde! :)

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