domingo, 29 de junho de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 109


29 de junho de 2014

23:14

Faz mais de semana que não escrevo.

Jade disse que estava com saudades de mim.

Como eu suspeitei, ela está namorando um desses carinhas daqui.

Ela passou por mim no corredor e me perguntou por que eu não escrevi mais.

Perguntei para ela se ela estava namorando.

 Perguntei primeiro, disse ela.

 Se você me responder, respondo também.

Ela se afastou um pouco, como se fosse sumir no corredor. E disse que ela responderia, desde  que eu escrevesse hoje à noite. Nem tive tempo de dizer qualquer coisa. Fiquei sem reação, como sempre fico. Maria Sem Reação.

 Estou namorando, ela disse, sorrindo daquele jeito maroto, de menina que vive em um mundo paralelo, porque lá é melhor do que aqui. Ela se afastou e antes que eu perguntasse com quem, ela disse:

 Agora você me deve um texto.

E sumiu.

O que ela espera? Que vá ler a história de Clara? Se é que já não lê, e eu nem desconfio. Por que o interesse dela nesta história de merda? Nesta história que faço de tudo para esquecer, para desistir de vez de contar e ter coragem de jogar tudo no lixo, como dar adeus ao passado que insiste em voltar, feito repuxo que nos leva para o fundo – e então a história de Clara sempre me acha. Feito obsessão, que é mais ou menos isso que deve ser.

Vamos lá. Depois de dias sem escrever, estou mega-enferrujada, pior ainda do que sempre fui. Só vou escrever qualquer bobagem porque hoje Jade confessou que está namorando. E sem mais pesar se devo ou não escrever, aqui estou eu: escrevendo de novo. Sem ter a menor ideia do que vem pela frente, como foi desde a primeira frase que escrevi nesta merda toda, esta merda sem fim.

Pensei em Lady Brownie hoje e seu bolo com cheiro de infância. Talvez tenha sentido saudade dela, a Menina Que Caminha Devagarzinho. Acho que todas nós, Jade, Brownie e, claro, eu mesma, escondemos uma dor que fingimos não existir. Sublimamos, talvez.

Meu deus, Sarah e suas loucuras.

Mas talvez Jade esteja pensando em um novo amor. Brownie em um novo doce. E eu, em Maria, a mãe. Acho que essa é a forma como vivemos neste mundo paralelo, nesta bolha que parece segura aqui de dentro. É a forma como lidamos com a nossa dor. Maria, a mãe, que chorava em sua cama. Como Cris às vezes chora. Não sei se ela pensa em Faele, ou pensa na família que nunca mais apareceu. Jade ainda tem família, ou algum tipo de família. E eu, a Louca Que Escreve Fechada No Quarto? Preciso continuar a história da pequena Clara.

Li uns trechos de um artigo que dizia que a gente tem que escrever para lembrar. Essa técnica é usada em pacientes que sofreram amnésia pós-traumática. Eu não sei se isso é psicanálise; acho que não. Parece mais com outra coisa, que estuda a percepção, a memória, a atenção. Parece que tem outro ramo da psicologia que estuda essas coisas. Cognitivo-comportamental, algo assim. Sinto como se alguém espalhasse pistas para eu decifrar. Esquecer de tudo depois de um acidente. Sei que você pensou o que eu mesma pensei: tenho que escrever para lembrar.

Lara, magrinha, gostosinha. A querida do papai. Que não cuidou da mamãe, que morria um pouco mais a cada dia, em cima da cama. E Clara cresceu, se é que ela cresceu, vendo Maria, sua mãe, chorando em cima da cama. Clara se sentia culpada. E não sei se sentia culpada quando Claudius vinha brincar de médico com ela. Imagine, o médico brincando de médico com a filhinha.

Maldito, filho da puta.

Eu não sei se ela sentia culpa, eu não sei o que ela sentia. Talvez, se isso for possível, ela tivesse manchas pela pele, de tanto ódio que sentia. Clara não conseguia se perdoar. Clara talvez nem soubesse o que estava acontecendo.

Meu deus, ela era apenas uma criança.

Sarah me disse que ser criança não quer dizer ter infância.

Talvez por isso eu insista em escrever isto, que me corta palavra por palavra.

Preciso encontrar a infância de Clara.

Preciso dar a infância que roubaram daquela garotinha.

Lá fora, chove. Como muitas das noites em que escrevi aqui.

O céu chora, uma vez mais.

A infância há de vir, pequena Clara.

Outro dia vou chorar com você. Mas hoje apenas escuto o som da chuva, que parece o fritar de um vinil antigo.

Que talvez traga a melodia de um piano perdido no tempo.

23:40

3 comentários:

  1. Pobre Clara, penso que talvez seja impossível dares a ela o que ela não teve. A vida é dura, e nem todos tem o que tivemos e vice-versa.
    Abraço
    (OBS: não acompanho a história a muito tempo, mas tenho a sensação que todos vivem em um hospital psiquiátrico, todos muito peculiares e fora do padrão social, o que faz com que sejam excluídos do convívio social para criarem uma micro-sociedade, sei lá, devaneios).

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    1. Obrigado pelo comentário e pela leitura, Marcela. Metade da história é o que o autor escreve e a outra metade é o que o leitor entende. Ambos criam juntos. Gostei da tua visão da história (talvez seja isso mesmo, mas não posso entregar todo o jogo, claro..:)

      Abraços e bons escritos para nós neste julho que recém começa...

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