sábado, 16 de novembro de 2013

Nanowrimo – Dia 16



E então tenho vontade de chorar.

Escondidinha, porque agora você já sabe que sou mulher.

Você sempre soube, mas não assumi antes meu gênero porque a condição de mulher me incomoda. Me aceitar mulher, e que fui mulher antes do tempo, me incomoda.

Não quero falar disso agora.

Se tivesse nascido homem, o passado, esse passado que se apagou da minha memória, mas que noite após noite tento recuperar aqui através da escrita, poderia ser mudado? Acho que sim, porque dizem que homens sabem se defender melhor do que mulheres, mas talvez – talvez, não sei – eu não tivesse sido condenada por ser bonita.

E então as memórias se vão, tão rápido quanto vieram.  Sarah diz que não lembro porque não quero lembrar. E por que não quero, pergunto a ela. Para me proteger, ela responde.  Ah, psicanalistas. Odeio a ideia de que estou me protegendo, que estou com... o quê? Medinho? Odeio pensar nisso. Por isso escrevo.

Talvez – repito, talvez, não sei – ela esteja certa.

O que você se lembra de sua infância, ela me perguntou outro dia. Não muito, respondi. Lembro do cheiro do café e em como aquilo era bom, e lembro quando coloquei um pouco de borra de café na boca para experimentar e achei aquilo amargo. Veja, bom e amargo. Talvez seja uma metáfora interessante para a infância, talvez para a adolescência também. Menino, essa deve ser uma metáfora interessante para a vida inteira. Menino ou menina, você sabe, é só uma expressão. Sei que a lembrança do cheiro do café me trouxe algo de bom, e neste momento penso em parar de escrever para tomar um café. Talvez esse seja um laço entre o passado e o presente, algo que me fez atravessar o bom e amargo do passado para desaguar aqui. E o que mais, além do café, ela perguntou. Não muito mais. Então, escreva.

Escreva para lembrar.

Escreva para ressignificar, que é um termo que os psicanalistas adoram.

Escreva para mudar um passado. Inventar um passado, que nem inventamos a nós mesmos, como dizia Rosa Montero.

Mas o que essa historinha que inventei, sei lá a troco de quê, sobre o homem alto e moreno, a mulher, a irmã e a criança – que agora sei que se chama Clara – tem a ver? Provavelmente nada, é apenas uma historinha, como todas as historinhas. Mas tem me distraído aqui neste quarto, dia após dia. Sarah acha que vai surgir alguma coisa daí, meio que por – como se chama? – livre associação. Não sei, mas às vezes me cansa escrever, me cansa essa história.  Não sei onde ela começa, ainda não sei qual o nome dos personagens – mas é insistente essa ideia de que ela terminou mal. Mas não é uma história sobre o presente? Não é apenas uma história que estou inventando? Ela está acontecendo agora. Não pode ter terminado mal. Ela nem terminou.

Hoje é sábado e agora é de tarde. Acho que é a primeira vez que escrevo de dia. Nem tinha pensado em escrever, mas a história me chamou, assim, devagarinho, Maria, venha me escrever, e nem adiantou eu dizer que não gosto de ser chamada de Maria, que nunca gostei do meu primeiro nome. Ela continuou me chamando e quando vi já estava aqui. Escrevendo essa historinha que ninguém vai ler. Que vou jogar no lixo depois. Que vou deletar o arquivo e se por ventura eu imprimir, como já foi sugerido (por Sarah?), vou rasgar tudo. E não terei que me preocupar com nada que foi escrito aqui. Já disse, mas vou dizer de novo, porque talvez você seja esquecido como eu: tenho uma vaga memória do que está escrito aí em cima, lá atrás, escrevo e depois esqueço. Assim como foi com a vida.

Mas uma hora, uma hora ou algum dia, isso vai ter que mudar. E não sei se quero que mude, não sei se vou estar preparada, e acho que não, então... por enquanto, por hoje, pelo menos, deixamos como está.

Hoje não tem ninguém brincando na praça. A família feliz não está lá. E por que não está? Deveriam, não? Por que o homem moreno não levou Clara para a pracinha se hoje é sábado? Por que ela não está brincando, e onde ela está que não está na pracinha?

Suspiro.

E neste momento me dá vontade de chorar de novo.

2 comentários:

  1. "Escritos nascidos das lágrimas são sempre, da escrita, o melhor. Continue, Maria, continue.", imagino o que Sarah falou. Abraços!

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    1. Obrigado. Continuarei. Abraços!

      PS - Continue você também, eu vou até janeiro escrevendo...:)

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