segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 18


21:08

Por que tem que ser uma família, você me pergunta. Tem razão. Visualizei uma família, não sei se são. Deixe ver... O homem pode estar cuidando de Clara, a mulher, o que ela faz? Mas a mãe ainda está no hospital. Ou é a irmã que está no hospital? Tive ideias acerca disso madrugada passada, e de novo não dormi, e de novo não anotei. Tenho sono enquanto escrevo isso. E sei lá por que, aqui ao lado, tem um folheto de um grupo de autoajuda para pessoas que sofreram incesto. Filhas e filhos abusados pelos pais.

Neste momento um frio me atravessa a espinha, de cima a baixo. O que isso tem a ver comigo? O que isso tem a ver com Clara?

Talvez nada, como nada eu queria que tivesse a ver com algo horrendo como isso. Mas existe um grupo de recuperação para pessoas que sofreram incesto. Por que esta merda está aqui?

Não sei, por isso escrevo.

Foi você quem largou isso aqui?

Foi Sarah?

Você, que acho que é meu irmão, na verdade é Sarah? Sarah, que penso ser a terapeuta, uma das únicas pessoas com quem falo fora deste quarto, é na verdade minha irmã? Foi ela a abusada?

Por que não anotei aquilo que me veio à mente madrugada passada? Decerto era a chave disso tudo. Enquanto isso, apenas escrevo e continuo a escrever até que a dor passe, até que a dor faça sentido – Deus, um sentido. Mas não estou com dor agora. Estou apenas com silêncio. É noite, e ninguém brinca na praça. O armazém está de novo fechado. Por que não há mais cenários nesta história? Por que não consigo sair deste redemoinho – o homem moreno, a mulher, a irmã, Clara – nem sei o nome dos outros, ainda não sei seus nomes. Ou sei, mas esqueci. Décimo sétimo dia consecutivo que venho aqui na esperança de que algo surja. Algo está certamente surgindo, mas ainda não consigo decifrar o quê.

Meus braços doem. Estou enclausurada aqui, como a princesa presa na torre do castelo, para usar uma figura da fantasia que sempre gostei. Mas não há príncipe nenhum para vir me salvar. E tudo que posso fazer é continuar a escrever, porque você acredita que isso vai me salvar. Vai me fazer lembrar. Se eu não consigo lembrar como vim parar aqui, pelo menos podia ter novas ideias para esta historinha que estou tentando montar.

O homem trabalha no hospital. Ginecologista, tive um baque agora. Ele é ginecologista. Talvez ele trabalhe em uma clínica, talvez até tenha um consultório. Sim, ele tem um consultório e uma sala apropriada para examinar as vaginas alheias. Não sei o seu nome, mas ele não está mais vestindo preto. Está vestindo branco e examinando vaginas. É isso o que ele faz. Urologista? Não, ele é ginecologista mesmo, agora tenho certeza. Será que esse abuso que não consigo decifrar tem algo a ver com isso? Ele pode ter violentado uma paciente, quem sabe até uma paciente menor de idade. Será que a mulher teve depressão e foi para o hospital por causa disso, quando descobriu? E a irmã, ela sabia? Quem mais sabia?

Pode ser uma corporação, uma organização, algo assim, muita gente envolvida no tráfico de escravas brancas, prostituição infantil.

Não, acho que estou delirando.

Mas tem algo errado nesse quadro. As peças vão se aproximando, e escrevo porque não sei como elas se encaixam. Hoje à noite talvez tenha o bom senso de manter uma caderneta à mão. As chaves para essa história me surgem de madrugada. Raramente de dia. Mas tenho que estar preparada. Meus braços cansam de novo, e sinto como se eu estivesse cansada demais para continuar, sem nem ao menos saber se você está aí, se existe alguém aí, do outro lado desta folha, ou deste monitor, ou seja lá onde você me lê. Não é como se eu estivesse cansada, estou mesmo cansada. E de novo estou com fome. Talvez tome um banho também.

Às vezes não gosto de olhar para o meu corpo, mas não quero falar disso.

Não hoje.

Não quero falar de vergonha. Nem de culpa. Sobretudo, culpa.

Tenho marcas do fogo ainda. E acho que elas vão seguir comigo. Se não for no corpo, tenho certeza que no espírito. Para o resto da vida.

Onde estava Clara nisso tudo?

Hoje não chove. Mas ainda é noite. Só que não vai ser para sempre. Vou sair do outro lado do túnel. Ah, vou. Não me importa mais se você está aí. Eu estou, depois de tudo o que aconteceu, e é isso o que importa.

E o que aconteceu, você pergunta.

Tenho que reencontrar Clara. Só ela pode me contar como cheguei aqui.

21:34

5 comentários:

  1. Pois é, o que de mais importante temos para dizer é o que mais nos custa escrever; dói, fugimos de tudo isso. Mas veja bem, conheço uma história de uma mulher que ainda menina, ainda na idade de Clara, ou na idade de Mariana quem sabe, que denunciou o pai por abuso e ele passou 7 anos na cadeia até que ela criou coragem e decidiu desmentir tudo: os pais se separaram e a mãe a pôs contra o pai, criou toda uma situação para que a filha o odiasse a ponto de inventar uma história que um júri acreditou, e o pai foi condenado a não sei quantos anos de cadeia, cumpria o sétimo quando ela resolveu contar a verdade. Detalhe: ele sempre havia dito que era inocente, mas nestes casos o adulto é sempre o culpado. Mas eu te pergunto, Maria - sei que não gosta do seu primeiro nome mas é assim que vou chamá-la de agora em diante -, eu te pergunto: seria o adulto sempre o culpado? Ouçamos o que Clara tem a te dizer, e uma vez tendo dito, espero que não mintas para nós: para mim e para ti. Lembras do Renato Russo, Maria: "mentir para si mesmo é sempre a pior mentira…" Tenha coragem, para falar a verdade e para escrever. Mas o que é a verdade senão a maior mentira que o ser humano já criou? Teu leitor.

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    1. Oi, Helena.

      Bom, a Maria só aparece aqui de noite, então vou tomar a liberdade de te escrever. Sobre a criança ser culpada de um abuso? Não, mesmo que muitas se sintam culpadas depois por, por exemplo, terem usado roupas curtas. Mas a noção de mundo que um adulto tem (assim como em relação a sexualidade) é diferente da noção que a criança tem. Aliás, tive uma aula muito fera sobre isso hoje de manhã. Inclusive tive várias ideias para escrever... Mas vou dizer, esse caso que tu me relatou dava um livro. Não tem como analisar sem entender o todo, mas só pelo que tu me falou, dava um livro. Vai dizer? E mais uma vez, obrigado pela leitura, atento leitor. Tua existência justifica a minha. Quer dizer, a do narrador, que na verdade é uma narradora... Mas isso é assunto para mais tarde...:)

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    2. Estamos falando de ficção, não? Nem todas as crianças são tão inocentes como se imagina. E isso aqui não é um julgamento, é um brainstorm sem qualquer compromisso com a realidade, apenas com a história da Maria. E Lolita, de Nabokov? E O Iluminado? E se buscarmos na literatura vamos encontrar crianças que não eram tão inocentes assim, garanto, crianças do 'mal'. E num livro o que queremos é surpreender os leitores, não? No caso de Oscar Wilde, ele sempre disse que o garoto lá por quem ele se apaixonou era o 'diabo', mas foi Wilde o condenado à prisão por 'abuso de menores', mas ninguém compra a tese de sedução de adulto por uma mente doentia num corpo juvenil. Sim, se é para escrever, livreme-nos do mundo real e do politicamente correto, soltemos a imaginação com o único compromisso de coerência com o universo fictício e só. Abraços, Daniel. Estou curiosa pelos próximos 'capítulos'. Fui!

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  2. Posso continuar te repassando minhas impressões, mesmo que completamente erradas? Acho que o nome da narradora é Maria Clara.

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