quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 21


20: 44

Você diz que não admito as coisas.

Maria Que Não Admite As Coisas.

Mas do que você está falando? Escrevo para recuperar aquilo que não lembro. Talvez, sim, eu não queira lembrar. Se isso é não admitir, então talvez, como disse Sarah, eu faça isso para me proteger. Esses psicanalistas acham que a gente está sempre fugindo de alguma coisa. O que quer dizer basicamente: fugindo do passado. Mas escrevo para lembrar. Como vim parar aqui. Como era a minha vida antes da minha chegada a este quarto. A esta janela de onde observo a pracinha, alguns postes que iluminam o verde que há lá embaixo. A quadra de cimento onde as crianças jogam futebol. Uma quadra de areia onde as meninas jogam vôlei. A memória vai voltando conforme escrevo. Rá, por isso escrevo. Nem estou olhando mais para a pracinha, escrevo de memória, reescrevo de memória, como recomendava Scott Fitzgerald. Apesar de que não estou reescrevendo nada. Continuo pensando em voz alta. É como ter um gravador e eu falar para alguém, que provavelmente vai ser ninguém, ouvir minhas memórias. Mas não lembro nada.

E mal lembro o que escrevi ontem.

Acho que comentei que o homem magro e alto de cabelos lisos escuros trabalha em um hospital. Pensei que ele fosse enfermeiro, mas ele deve ser médico. Pode ser uma clínica, acho que já pensei isso. E em minha fantasia ele é ginecologista. O que talvez explique muita coisa. Gostava tanto de examinar as vaginas alheias que trabalhou também com sua filha, se bem que não sei se Clara era filha dele. Na verdade, e escrevo como se giletes cortassem meu braço isto, ele examinava Clara enquanto tomavam banho. No começo ela nada disse.

O tempo passou.

E ela continuou sem dizer nada.

Como ia dizer? E ia dizer o quê, para quem? Se sua mãe – só podia ser mãe – trocava suas fraldas, por que papai não podia examinar sua vagina, embora ela nem soubesse que aquela racha, porque ela não tinha o que o papai tinha no meio das pernas, se chamasse assim.

Ó, Clara.

A água escorria, junto com o sabão. Que caía feito lágrimas.

Lágrimas na chuva que ninguém ia ver, disse o Replicante no fim do filme.

Lágrimas no chuveiro ninguém vê também.

Ela podia chorar escondido. Mas em minha memória, digo, em minha imaginação, ela chorava no banho.

Tinha um garotinho também, mas ainda não sei quem ele é, ou como ele é. Acho que tinha os cabelos morenos. É possível que fosse filho do homem moreno – por que nunca lembro o nome desse homem? Acabo de escrever duas vezes o verbo “lembrar” em vez de “inventar”. Mas não é apenas uma história que estou tentando criar sei lá por quê? Será que, de alguma forma, ela está sendo inspirada por algo que aconteceu? Alguma notícia de jornal, quem sabe. Pode ter ficado no meu inconsciente.

Se Freud fosse vivo, será que ele leria estas cartas lançadas ao mar?

Poderíamos fazer um estudo de caso. Será que é isso que estou fazendo, um estudo de caso clínico? Mas de onde estou tirando isso tudo?

Maria, oh meu Deus, acabo de lembrar.

O nome da mulher, o nome da mãe é Maria.

É o mesmo nome que o meu.

Maria. Por que demorei tanto para batizar essa personagem?

Ela está no hospital. Recém separou, ou está separada, do marido. Ela é, ou era casada com o homem moreno cujo nome desconheço.

Mas o nome da mulher é Maria.

Tenho vontade de chorar.

Maria, Maria.

Tinha depressão pós-parto, mas ela pode ter ido para o hospital por outro motivo. Aliás, talvez ela entrasse e saísse de hospitais. Ela tinha outra doença? Por que tantas dúvidas se são apenas personagens e modelo eles como eu quiser? Foi assim que comecei tudo isto, lembra? Um narrador à procura de uma história – e agora você já sabe que é uma narradora à procura de uma história.

Neste momento sei que estou escrevendo com a clara intenção de não pensar, de ignorar o que acabo de perceber, e quero escrever e escrever e escrever, até que os pensamentos, todos eles fiquem lá atrás, de preferência se percam na floresta infinita dos neurônios, perdidos para sempre em algum lugar inacessível da minha cabeça. Mas isso não é possível.

Não posso ignorar o que acabo de perceber, mesmo que talvez amanhã eu não lembre e quero mesmo não lembrar, mas neste momento é impossível esquecer.

E é então que começo a chorar.

21:11

2 comentários:

  1. Para isso escrevemos: para lembrar. Lê teus escritos, Maria, lê atentamente e descobrirás o que pensas que consegues me ocultar. Teu Leitor. E o riso quase maléfico segue, algo meio teatral. Seria eu um sádico, ó Maria Que Sofre Para Escrever? Observo-te, decifro-te, mas és tu quem estás a me devorar...

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    1. Bom saber, Leitor. Vou começar a escrever daí hoje, de novo... Até mais tarde.

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