quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 28


22:46

Um dia talvez leia o que escrevi aqui nas noites anteriores.

Ainda não é hora.

Sim, acho que Sarah sabe porque nunca lembro o nome do homem moreno de cabelos lisos. Disse lembro? Quis dizer, invento. Lembrar, inventar, são todos muito parecidos. Mas acho que Sarah sabe porque não consigo criar, então, o nome do cara magro de cabelos lisos negros. O médico de reputação. Tanta que talvez – talvez, ainda não sei – encobrissem o que ele fazia entre as paredes daquela casa. Será que mais gente sabia? Será que era meio como um pacto de uma família conivente?

Sim, Maria é meu primeiro nome, e não gosto do meu primeiro nome. Acho que faz parte dessa espécie de terapia pela qual estou passando escrever meu nome, meio que para retomar minha identidade. Como sempre friso aqui, lembro muito pouco do que aconteceu ontem, e menos ainda do que aconteceu antes de eu vim parar neste lugar. Se é tudo fruto da minha imaginação? Bem, não posso responder isso. Para mim é tudo real, e se é real para mim, então é real para o mundo.

Sarah sabe mais do que ela me conta, mas ela não pode me dizer as coisas. Acho que espera que eu chegue por mim mesma às minhas conclusões. Por isso mesmo, esses psicanalistas me irritam. Se ela tem o poder de acabar com essa tortura, por que não me conta tudo de uma vez? Acha o quê, que eu não vou conseguir suportar?

Pensando bem, talvez seja isso.

Talvez tenha acontecido algo tão terrível que bloqueou minha memória.

Mas então estou condenada a não lembrar?

Escrevo para lembrar. E preciso concluir esta história sem pé nem cabeça, porque acho que no fim disso tudo está a resposta daquilo que, vá lá, talvez eu não queira enxergar.

Não sei como esses escritores conseguem escrever todos os dias. Às vezes é incrivelmente chato, vai chegando a noite e penso: ai, tenho que escrever hoje de novo.

Mas às vezes incrivelmente dói e penso, mesmo que não saiba que penso, que escolha sem saber que estou escolhendo: ai, hoje vai doer de novo.

Você falou em incêndios em armazéns e abusos, procurar em jornais, ou algo assim. Havia um armazém e tenho quase certeza que houve um incêndio, mas acho que não foi no armazém.

Neste momento me pergunto: estou falando da história que estou tentando criar ou da minha vida?

Por algum motivo que ainda não posso entender, e nem tenho certeza se existe, Clara tem as respostas. Sim, a pequena Clara tem as respostas. Mas como chego até ela? Escrevendo, suponho. É assim que chego até você, e se você ainda está aí continuaremos vivos por mais algum tempo. O fim está próximo. Mas ainda não sei o quão próximo ele está. Talvez um pouco, talvez muito. Quando ele chegar, saberemos. Até lá, talvez apareça o nome desse cara que mal consigo ver, o nome do outro garoto que havia na casa (lembra que tinha outro garoto? Irmão de Clara, talvez?).

É incrivelmente chato, dolorido, mas acima de tudo, incrivelmente difícil escrever.

Talvez porque no fundo eu não queira chegar ao fim disso, por mais que diga que sim, e cada vez que estou chegando perto, dou um jeito de pegar um desvio. Inclusive de desviar você, porque me desviando, desvio você junto. As pessoas de fora deste quarto são incrivelmente – reparou como estou usando esse advérbio incrivelmente? – iguais. Mas não quero falar desse pessoal ainda. Eles não rendem literatura. Pelo menos, por enquanto. De novo estou cansada e sem ideias. Com um pouco de fome. Sem sono, mas com fome.

E Lara? E Clara? Qual é a relação das duas, se é que elas têm, ou tinham, relação? Maldita história. Talvez deva desistir de toda essa bobageira. Suspiro. Mas se eu desistir, pensei agora, talvez fique presa aqui dentro.

O resto da vida.

Desta vida que me sobrou.

23:09

4 comentários:

  1. Quantos anos tens, Maria? Ou quantos anos achas que ainda te restam para viver?

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    1. Quantos restam? Não sei.

      Quantos tenho? Indelicadeza perguntar isso a uma dama. :)

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  2. Pois é, Maria… Quando estiveres lendo esta mensagem eu já terei me desintegrado, chegado será o meu fim. Fiquei contigo por vários dias e por vezes quase me convenci que tua história era a minha, pelo tanto que pude me identificar com a tua dor ao escrever, por exemplo, com a tua confusão, o escrever sem plano, o escrever sem ler e para lembrar… Pois é, Maria… disseram-me que vou morrer - que privilégio é saber antecipadamente a hora exata da morte! -, de modo que tive ainda tempo para vir aqui despedir-me. Foi bom, Maria, empolgante enquanto durou. Carrego comigo a dúvida de se existo ou se me imaginas e tantas outras dúvidas mais que não vale a pena gastar preciosos minutos do resto de nossas vidas com tantas explicações. A vida é breve, Maria, e por que queres lembrar do que não se pode mudar: o passado? Ah, sei que não sabes se é passado, presente ou… futuro? Será? De volta para o futuro, ou para o pó, de onde viemos e para onde vamos voltar, inevitável… Gostaria de saber escrever para despedir-me de ti em estilo grandioso, teatral até, mas sou apenas um leitor, leitor fui criado; ora querido, ora curioso; ora frustrado, ora feliz… e feliz morro, pois em tua história me encontrei. Talvez tua história tenha sido para isso: descobrir-me como leitor, atento, amigo e sempre e tanto… Maria, o relógio bateu para mim. Segue teu caminho, Maria… fui feliz contigo… (E que rufem os tambores, o pano desce, o suspiro é final, dramático como a vida, louco como o leitor). Non sense, não sabe… queima depois de ler.

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    1. Vou queimar... mas não hoje. Você não pode morrer. Nem que seja na memória e na saudade daquilo que passou, e que revivo enquanto escrevo, e vou continuar escrevendo. Enquanto isso, não há morte. Acho que foi Proust quem disse que nada é eterno... nem a morte, porque quando lembramos aqueles que se foram, quando mantemos esse amor e essa chama vivos, eles também permanecem vivos.

      Também estou cansada.

      Mas mesmo assim, vou escrever daqui a pouco. E mesmo assim, vou continuar te esperando. Talvez como Camille Claudel esperando por Rodin, que nunca veio. Mesmo assim, vou esperar.

      My best wishes,

      Mary

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