domingo, 2 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 138


2 de novembro de 2014

18:50

Coloco a cabeça para fora e enxergo: está chovendo. Sinto o vento frio que me faz escrever. Não sei se fui eu quem chamou a chuva, porque de tempos em tempos penso que esta história vai terminar (ou terminou, se eu estou contando uma história no passado e ainda não sei) em um dia de chuva. O dia cinza. Ainda é dia, embora o véu de chumbo do céu, lindo, me diga que logo vai ser noite. Não ia escrever hoje. A chuva me forçou. Fiquei lendo, para ver se melhoro esta história, se aprendo com as palavras e as frases bem feitinhas dos outros, já que as minhas são tão ruins.

Mas se ninguém vai ler, para que me importar?

Porque eu estou lendo e sentindo o que senti ao escrever isso. Por pior ou melhor que tenha ficado.

Há ainda a possibilidade de fantasmas leitores verem o que escrevo. Certamente existem. Embora isso me assuste, aos poucos – bem aos poucos – talvez esteja começando a aceitar.

Lembro vagamente que no começo disso tudo havia uma praça. Talvez a tenha visto, ou imaginado, da minha janela. Um escorregador por onde Clara descia. E Claudius, embora naquele ponto eu estivesse apenas desconfiando a partir do que fui escrevendo, brincava e apalpava Clara. Como uma mulher, não como uma criança, gostaria de frisar.

Será que ele tinha noção do que estava fazendo?

Não sei se ele já tinha voltado a beber.

Digamos que não, e que ele apenas estivesse brincando com a filha.

Meu deus, que história horrível.

Mas não consigo parar de escrever.

O fantasma não vai sossegar enquanto não escrever isso até o fim e sei que não posso pegar atalhos. Poderia terminar hoje: todos morrem. Fim.

Mas não sei se é assim mesmo que termina. E se for, ainda tenho esperanças de mudar o futuro.

Ou o passado.

Mudar qualquer coisa. Mudar o que sinto, embora não saiba exatamente descrever esses vendavais que passam aqui dentro. Por isso escrevo. Sarah sempre fala: coloque em palavras. E uma vez ela disse que nas famílias em que o sexo era visto como a forma de demonstrarem amor entre si, às vezes a criança não sabia que estava sendo abusada, porque era como se o papai estivesse demonstrando amor pela filhinha.

Juro que vou jogar esse lixo de história fora. Quando parar de escrever.

Mas não paro. Então não jogo fora. Não jogo fora hoje.

Hoje chove.

Eu queria tanto ver esperança nesta história. Reencontrar aquilo que se perdeu.

A começar por mim.

Um final feliz, por que não?

Uma melodia daquele piano que faz tempo que não ouço.

Há quanto tempo não ouço?

Há quanto tempo estou aqui?

Meu deus, há quanto tempo estou aqui?

E por mais quanto tempo ficarei?

Minhas costas doem. Ainda é dia. Em minutos será noite. A porta está aberta. Ninguém nos corredores. Só eu aqui.

Eu e a pequena Clara.

19:06

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Me pergunto a mesma coisa. Tenho que continuar procurando. Talvez hoje à noite, assim que terminar um texto que Sarah me deu para ler, sobre a "Dissecção da personalidade psíquica".

      Ah, perguntou para a Dafne sobre suas pinturas?

      Mary

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