segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 139


Segunda-feira, 3 de novembro de 2014

21:00

Começa a chover.

Não é possível que eu esteja trazendo a chuva de volta. Mas assim foi no começo e assim é agora: chove. Deve ser simbólico. Talvez o fim e o início desta história que vou tateando noite após noite seja um monte de pingos que caem imitando o som de um vinil antigo. O céu chora. Chora Clara. Chora Maria, a mãe.

Choramos nós.

Disse para Cris não aparecer hoje, mas ela não me ouviu. Ela nunca me ouve, na verdade. Ela disse que vai passar aqui daqui a pouco. Portanto, escrevo antes dela chegar. Antes que a chuva acabe e eu me perca mais uma vez.

Trovões.

Distantes trovões.

Acho que são simbólicos também.

Sarah me deu um texto para ler, uma coisa doida de ego se partindo em três, imitando a voz do pai mandão, que depois a gente introjeta como nossa noção de limite, de censura, de não-vou-fazer-porque-os-outros-não-vão-gostar.

A voz de Claudius, portanto, seria o Super-ego da pequena Clara.

Não deve ser um bom exemplo, porque se Freud quis dizer isso, espero que ele queime no inferno.

A verdade é que ainda não li todo o texto que Sarah me deu, e escrevo apenas. Escrevo sem pensar, ou penso e escrevo ao mesmo tempo, e vou escrevendo para encontrar um sentido. Existe um sentido para tudo isso. Essa história que não começa nem termina.

A porta fecha mais cedo hoje.

Minhas costas doem.

Ainda procuro esperança para a pequena Clara. Ela gostava de brincar em poças d´água. Talvez fosse uma criança arteira. Talvez fosse uma criança feliz.

No fundo, acho que é esse recorte de vida que tento buscar a cada noite. A cada chuva. Ver aquela garotinha sorrir.

Lembrar daquele piano.

Ó, meu deus. Lembrar do piano.

Que talvez, no fim das contas, não exista apenas em minha imaginação de péssima escritora. A Louca Que Escreve Sem Saber O Que Ou Como Escrever.

Ainda bem que ninguém vai ler isso aqui.

A chuva tem algo de redentor. Talvez vá limpando as fendas sujas de nós e escoando a dor para longe. Talvez, ainda não sei. Apenas escrevo. Escrevo sem parar. Escrevo antes que Cris chegue. Escrevo para lembrar o doce cheiro de infância, a infância que esqueci, do doce de Lady Brownie. Escrevo e penso na pintura de Dafne, que ainda não vi. Escrevo e sonho com algo que ainda não vi – no fim, esta história não é sobre isso? Sabatha me perguntou o que aconteceu com Clara. Respondi que ainda não sei, e que ia continuar nessa busca. Falei meio sem pensar, talvez porque tivesse que responder alguma coisa. E talvez, principalmente por isso, não possa mais ignorar o fato de que algumas – talvez muitas – pessoas aqui saibam que estou escrevendo uma história.

Enquanto o relógio corre. Como uma bomba cuja contagem não sei até onde vai.

Maria Que Escreve Sem Parar.

A Louca Que Escreve Para Não Ser Louca.

Sarah disse que a psicanálise se faz pelo que a gente lê e pelo que a gente escreve. Imagina se, daqui a muitos anos, depois que eu morrer – certamente depois que eu morrer, se não tiver jogado tudo isso fora, como me propus –, algum louco encontrar este texto e decidir fazer um estudo sobre ele.

Sim, é claro que é uma ideia absurda. Insana, mas como já devo ter referido antes, chamar qualquer uma de nós “insana” em um lugar como este, é uma ironia e tanto.

Ventos ventam, certa vez disse Aristóteles. Não O Aristóteles, mas aquele carinha que adorava palestrar por aqui, e nunca mais vi. Está ventando. A chuva aumenta. Ouço pela janela, o vinil antigo rodando sobre o toca-discos.

Como o som de uma melodia de piano, de mãe para filha.

E isso me faz sentir um pouco em paz.

21:21

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