domingo, 23 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 147



23 de novembro de 2014

00:32

Chego perto da janela e sinto: vento de chuva.

Queria que estivesse chovendo. Que estivesse frio. E que eles me acolhessem neste começo de madrugada.

Como o piano que volta. De novo e de novo.

E sonho que ele está lá. E sonho que continuo aqui.

Lady Ballet disse que adorou seu presente de aniversário. Disse que se enxergou dançando de novo. Não fiz nada demais, pensei, mas contei para ela. Mentira: dei para ela ler um trecho do que escrevi. E ela se sentiu, não sei, acho que um pouco mais viva. Ela me disse que se apaixonar era desgastante, que amar e odiar dão trabalho.

Será que ela já pertenceu a alguém?

A dor de não ter mais.

A minha dor.

A dor de todas nós.

O piano me conforta. Poderia dizer que choraria com ela se ela chorasse, o que acho que ela não vai fazer, não na minha frente. A verdade é que choramos todas escondidinhas ou choramos por dentro. Até que a dor passe. E se ela não passar, a gente finge que ela não está mais lá, como algo que a gente esconde sem-querer e quando procura, porque acabamos procurando nossa dor de volta, não nos lembramos de achar.

Não é bonito? Esquecemos de achar nossa dor.

Acho que Sarah ia gostar disso.

Dafne, minha pintora preferida, me mostrou um esboço do que ela imagina que seja a história que estou escrevendo. Eram dois bonecos, ambos sem rosto, um maior levando o outro pela mão, como se estivessem dançando. Como em um carrossel. Dançando, Lady Ballet.

Vi na mesma hora que eram Maria e sua pequena Clara.

Tão lindas que quase chorei. Na verdade, não tive vontade de chorar na hora, mas me deu vontade agora. Lindamente triste, não é isso? As duas sem rosto porque, imagino, o rosto somos nós que colocamos, como personagens que a gente pinta com a cor que quiser porque afinal: a criação é nossa.

Esta história não tem rosto.

A história que tento inventar a cada noite não tem rosto.

Talvez nunca tenha.

Talvez tenha para mim, embora eu ainda não consiga enxergar.

Mas sei que é um rosto lindo. São rostos lindos. Mãe e filha.

Ó, Daf, por que fez isso comigo?

Me arrepio uma vez mais.

Ela me disse que estou no escuro. Que todas estamos. E caminhamos por ele e então um pontinho de luz, muito pequeno, um inseto de fogo, que pode ser esperança, ou apenas um inseto mesmo, aparece. E seguimos ele. Não temos mais para onde ir. Olhamos para todos os lados, que é a mesma coisa que olhar para lugar nenhum, porque não vemos. E se não vemos, não temos nada a perder. A escuridão é o universo a nossa volta. Mas o ponto está ali. Tão pequeno, mas real. Ele pode crescer, e cresce, até que ele vai se tornando aos poucos o universo.

E não há mais escuridão.

Ou há, mas assim como a dor, a gente finge que escondeu e não sabe mais onde está.

Como crianças que brincam e se cansam de brincar. Ou descobrem outras brincadeiras.

Claudius não está aqui. Não mesmo.

Hoje não. Nem Lara. Talvez Marcos e Jonas estejam brincando de se esconder naquela praça que imaginei algum tempo atrás, e que na verdade está não muito longe daqui. Ninguém brinca lá agora porque é de madrugada. E crianças devem estar dormindo. Mamães preocupadas. Crianças dormindo, anjinhos quietinhos sonhando sonhos. Maria, a mãe, observa Clara. E Jonas.

Marcos, o filho não assumido de Claudius com Lara, primo e irmão de Clara, dorme também.

Talvez não tenham rostos. Mas neste momento sei que são anjos. E ouço um piano tocando ao longe. E me arrepio. Ainda não começou a chover. Hoje estamos bem. Está tudo em paz aqui.

Será uma noite tranquila.

Cris andou vomitando. Ela sempre passa mal. Grávida não deve estar, mas – sei lá que tipo de associação fiz, mas – parece que Emília voltou para visitar. Não sei, acho que vi uma garota parecida com ela. Achei que nunca mais fosse ver ela de novo. Achei que nunca mais fosse ver tanta coisa.

Como a família que talvez eu já tenha tido.

Será que algum dia verei eles de novo?

Enquanto isso, e enquanto ouço o piano, esse piano que me faz seguir em frente na escuridão e no pontinho de luz desta madrugada, finjo que estão todos lá. E que esta será uma noite tranquila.

Enquanto a pequena Clara dorme, sonhando, e Maria, em seus pensamentos de mãe, embala e protege sua princesa, ela sabe: nada de mal vai acontecer a sua filhinha.

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