sábado, 1 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 137

(Nota: os escritos deste novembro fazem parte do Nanowrimo - National Novel Writing Month - a maratona literária onde comecei a escrever ano passado. Aliás, hoje faz um ano que comecei a escrever esta história. Agora, seguimos em frente)



1 de novembro de 2014

21:49

Comecei a escrever livro novo hoje.

Mas por enquanto isso é tudo o que sei dele.

Na verdade, hoje faz um ano que comecei a escrever esta história, que nem história é, ou era. Achei que a única forma de começar de novo era assim: comecei a escrever livro novo hoje; mas por enquanto isso é tudo o que sei dele.

Digamos que alguém – você – esteja lendo isso e esteja começando a ler agora. Esta é sua primeira entrada nesta história. Jurei que nunca mostraria isso a ninguém e pretendo manter meu compromisso – mas é quase certo que alguém me lê enquanto durmo, enquanto me perco, e me perco todos os dias. A diferença é que quando comecei, um ano atrás, era de manhã. Quase todas as vezes em que escrevi desde então era noite. Agora é noite. Hoje não chove. Vou escrever até que chova de novo.

Estou de novo em meu quarto-cela, o Escritório de Maria, a Louca.

Aqui por perto está Cris, provavelmente a única pessoa que deixo chegar perto quando escrevo – desde que ela não leia o que escrevo. Há Jade, que não vi mais. Emília, que foi embora, mas talvez tenha vindo nos visitar, porque juro que vi alguém com os cabelos ruivos dela no corredor. Lady Brownie, que faz doces com cheiro de infância e caminha devagarzinho. Há Sabatha, com quem já troquei cartas doídas e sangradas. Há Dafne, que disse que fez uma pintura sobre a história que estou escrevendo – mas nunca mais vi. Nem ela, nem a pintura, nem nada. Tem mais gente que esqueci. Todas elas têm funduras, fendas que, de alguma forma, nos ligam. Fendas que fazem eu escrever esta história.

Cris acaba de me dizer para mandar um beijo aos meus leitores.

Vou mandar, respondo. Cris gosta de mim. Cris tem ciúmes. Cris ri e chora ao mesmo tempo. Cris que já tentou se matar, e me volta a ideia de escrever um livro – se eu soubesse escrever, coisa que não sei – sobre um negociador de suicidas. Tipo o cara que tenta apagar o incêndio que não pode ser apagado, como talvez já tenha escrito em uma dessas noites.

Esqueci de dizer: eu não lembro. Eu esqueço. Eu esqueci de tudo.

Até do meu nome.

Só lembro que o meu primeiro nome é Maria porque nunca gostei de ser chamada pelo meu primeiro nome.

Sarah deve ter se tocado disso. Certamente que sim.

E pediu para eu escrever. Para contar uma história.

Assim começamos: preciso de um personagem para contar uma história. Um personagem... um homem. Um homem... e uma mulher. Um homem, uma mulher e uma criança. Um homem, uma mulher, uma criança, um irmão (a criança é uma garotinha). Um homem, uma mulher, uma criança, um irmão e uma tia. O homem é alto e moreno de cabelos lisos e negros. Digamos que o nome dele seja Claudius, e digamos que ele seja um profissional da saúde. Um médico. A mulher se chama, vejamos... Maria.

Sim, Maria como eu.

A criança se chama Clara. Lady Clara. Pequena Clara.

Ela tem um irmão. Como é seu nome? Jonas.

E a tia? Tia de Clara, portanto irmã de Maria. Lara. Que parece com Clara.

E ela tem um filho. Marcos.

O que mais? Sarah me disse para apenas escrever, sem pensar em mais nada. Não pensar em causas, conexões – ou sim. A isso chama-se livre associação. Estou me perdendo. Esquecendo mais uma vez.

Claudius abusava de Clara. Batia em Maria. Maria vivia internada em hospitais. Acho que ela tinha depressão (talvez como Cris, pensei agora, se é que ela tem isso). Claudius era um alcoólatra. Ele ficou dez anos sem beber e voltou a beber quando estava... Com Lara. Marcos, filho de Lara, é filho de Claudius também. Ninguém, ou quase ninguém, sabe. Nessas famílias há muita coisa velada e como o Dr. Claudius é um cidadão de bem, respeitável e adorado pelos vizinhos, ninguém dá um pio fora daquelas paredes.

De onde tirei uma história horrível como essa?

Por que escolhi personagens assim?

Se você começou a ler isso hoje, talvez não saiba, mas suspeite. Cada vez que me aproximo daquele abismo, paro e volto atrás. Atrás nunca é um lugar bom. Não lembro do passado, mas de alguma forma sei que ele não deu certo. Mas foi ele quem me trouxe a este lugar. E se não descobrir como ele se conecta com o hoje – e me dói só escrever isso –, nunca vou sair daqui. Talvez nunca saia mesmo, mas se sair um pouco desta prisão mental talvez eu possa ver um campo florido longe desse pântano.

O relógio começa a correr de novo.

Igual no início.

Estou de volta ao jogo.

22:15

3 comentários:

  1. hum começo a pensar que sua personagem é louca, e me interessei, adoro histórias de loucos, do ponto de vista dos loucos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É, mas o que é a loucura, afinal? O que é ser louco?

      Seja bem-vinda a esta "história de loucos, do ponto de vista dos loucos" :) Obrigado pelo comentário.

      Excluir
  2. Pobre Cris...
    No fim, Maria, somos todos iguais. Clarisse, personagem de Érico Veríssimo, diz que no fim somos todos solitários.

    Sabby

    ResponderExcluir