sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 144



Sexta-feira, 14 de novembro de 2014

(pouco depois das nove da noite)

Começo a escrever, como sempre, sem ter a menor ideia do que vem pela frente neste texto, sempre horrível, sempre na esperança de que ninguém leia. Apenas escrevo. E sonho, de alguma forma. Sonhei com Sarah. Não lembro o que ela me disse, mas estávamos em sua sala. Maria no consultório de Sarah. Ela disse alguma coisa, e riu, e eu joguei uma bolinha de papel em sua direção. Podia ser uma pedra, mas era uma bolinha de papel. Eu não entendo símbolos. Ela estava sentada em minha frente, eu no divã, e quando dei por mim ela me beijou. Nos beijamos. Na boca. Só que quando a gente se beijou, não era mais ela. Não era a Sarah de antes do beijo, de antes de se levantar de sua cadeira.

E então acordei.

Esqueci detalhes.

Não lembro de mais nada.

Não entendo da simbologia dos sonhos.

Seria eu tentando encontrar a mãe que um dia tive e que não lembro?

Meu deus, quanta loucura.

Vi Sabby hoje, sentada em uma poltrona, perto do corredor. Ela estava com um vestido de festa, mostrando sua pele de leite, com os longos cabelos caídos sobre ela. Coitada, deve ter achado que ia para uma festa. Bom, talvez ela vá. Quem sou eu para dizer que não? Talvez eu mesma devesse ir em uma festa, mesmo que fosse imaginária, como provavelmente é a dela, em vez de ficar aqui nesta cela escrevendo essas bobagens. Ela me perguntou de onde tiro as frases que escrevo. Se ela soubesse que até o que ela fala, assim como o que as outras falam, o que as outras vivem, qualquer coisa é material para fazer o moinho girar... A verdade é que não sei de onde tiro o que escrevo, mas às vezes uma frase no corredor, ou na poltrona, como no caso dela, pode fazer nascer um texto. Veja, eu não tinha NADA para escrever minutos atrás. E aqui estamos.

Que bom que ninguém vai ler isso aqui.

Sabby tem uma falta. Vi isso em seus olhos, como vejo nos olhos de todas nós. Dafne passou por mim, no corredor, apressada para ir em algum lugar. Para onde, me pergunto, neste fim de mundo? Talvez todas busquemos um lugar mental mais confortável do que o nosso. Um lar, acho que é isso. Um lar.

É isso.

Um lar.

Uma família.

Hoje não está chovendo.

Me arrepio. Essa coisa de “isso parece com”, segundo Sarah, é que vem do nosso inconsciente. Ela me deu um livro para ler, mas ainda não tive coragem de abrir. Nem ia escrever “coragem”, mas foi essa palavra que me veio à mente.

Eu fujo. Porra, eu fujo. Mas estou no labirinto e esta estrada, por mais que eu queira voltar, é de mão única. Não há volta. Ou há?

Estou com saudades de Cris. Não vi mais ela. Não vi mais muita coisa.

O que mais? Vou apenas registrando meus pensamentos em tempo real porque eles me conduzem a algum lugar. Desconhecido, e tenho medo do desconhecido.

Medo como uma criança no escuro.

De novo, me arrepio. Mas não consigo parar de escrever. Criança com medo do escuro. Clara no escuro. Maria, a mãe, procurando por Clara. De noite. Gritando por sua princesinha que se perdeu na escuridão. Dentro ou fora de casa? Escuro dentro de si. Claudius sabia onde estava Clara. Maldito, filho da puta, ele sabia onde estava a pequena Clara. E ele não falou. E talvez tenha dito para Clara não falar também. Talvez ele tenha dito, vamos pregar uma peça na mamãe.

Clara nem sabia o que estava acontecendo com ela.

Mas ela não gostava.

Ela não gostava da brincadeira do papai.

E papai não brincou apenas uma vez com ela.

Maldito, filho da puta.

Mas talvez Clara, se chegou a crescer, ou se chegasse a crescer, pudesse encontrar algo para canalizar aquela dor. Aquelas faltas. A começar pela falta da infância. Que terminou antes de começar. A busca pela infância, talvez inatingível, seria um dos motivos de sua vida anos depois.

Talvez ela pintasse quadros, como Dafne.

Ou escrevesse um livro, como eu.

Maria, a mãe, deve ter ensinado brincadeiras de mãe e filha para ela. Maria, boa mãe. Maria, que tentou fazer a coisa certa. Maria que quis ser a melhor mãe do mundo. E hoje acredito que ela foi mesmo. Não sei se amanhã vou acreditar nisso. Mas hoje acredito.

E acredito que se Dafne pode pintar, eu posso escrever.

Para encontrar essa infância que se perdeu.

Assim como a vida, que ainda existe. Sim, a vida existe.

Existe em todas nós, meninas.

21:50

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