terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 52




21:47

Começo a escrever sem ter a menor ideia do que vem pela frente. Grande novidade. Toda noite faço isso. Apenas escrevo e a história, e a história da história, vão contando a si mesmas. A diferença é que a porta está fechada hoje. Ela não poderia ficar aberta para sempre e mesmo que eu suspeite que não haja pessoas no corredor, ouço barulho de televisão ligada. Alguém assiste sei lá o quê, talvez a novela. Essa gente não tem muito o costume de ler. Nem de escrever. Talvez por isso Sarah tenha me dado esta inglória missão. Simplesmente contar. Contar e contar. E descobrir o que ela já sabe, suspeito, mas não pode me dizer. Pelo menos ainda não. 

Como vim parar aqui, por exemplo. 

Esses psicanalistas não podem entregar o jogo. Não podem dizer o que eles veem porque, vá lá, nós temos que perceber isso por nós mesmos. Eu é que deveria ler, em vez de me preocupar com as pessoas que se vestem muito parecidas lá de fora, porque assim este texto chatinho sairia mais bem escrito. Ler para escrever. Enquanto isso, apenas escrevo, seguindo fielmente o fluxo de meus pensamentos à medida que eles aparecem, e apenas registro aqui.

Pensei no olhar que o homem moreno de cabelos lisos tem. Mas antes queria deixar registrado que andei lendo alguns trechos de livros da Sarah, e vi que quando uma criança sofre um trauma, sobretudo se esse trauma é “ser abusada pelo próprio pai dentro da própria casa” é bem possível que a criança não queira jamais citar o nome do pai em uma sessão de terapia. Ela pode inclusive esquecer o nome do pai. A tendência é essas memórias recalcadas irem voltando assim que a criança entra na adolescência, ou melhor dizendo: ela começa a entender o que aconteceu no passado. Ela tem outra visão daquilo que talvez, por mais que causasse incômodo, ela achasse normal.

E aí voltamos para o homem alto e moreno de cabelos lisos sem nome. Pensei em seu olhar, e vi em minha mente de criadora amadora (sei que dizem para evitar rimas nas frases, mas não pude evitar) que o olhar dele era de um cara legal, como se diz. Uma pessoa, se não dócil, mas acessível, zelosa, talvez até uma pessoa carinhosa. O tipo de olhar que se espera que um pai de família tenha, desde que ele não seja muito autoritário. Ele não era autoritário. Ou era? Ele tinha o olhar de bom vizinho, e aos olhos de seus vizinhos – e da sociedade, já que ele era médico – ele era um cidadão exemplar. O típico bom partido, que as mães gostariam de ter como genro. Ele tinha esse olhar, e sorria, quando passava no corredor, levando Clara para brincar na pracinha. 

E Jonas, embora ache que Jonas não era seu filho. Pelo menos filho assumido, porque agora me veio na mente: e se Jonas, que era filho de Lara, a irmã de Maria, fosse filho dele e ninguém soubesse? Lara tinha um caso com o homem moreno, e ainda não sei desde quando. 

Talvez Maria saísse para trabalhar e o homem moreno ficava em casa com Clara, quando não estava de plantão. E aí as coisas aconteciam. Mas talvez não fossem tão esporádicas, talvez ele fosse viciado nisso. 

Não sei mais o que escrever. Clara some quanto mais a procuro. Há um armazém a vários metros da praça onde as crianças brincavam. O que aconteceu lá? Tinha pensado que ele se esfregou em Clara em um canto mais escuro do armazém, mas não sei se foi isso. Sei que em minha mente este armazém está fechado. 

O armazém, pensei agora, pode ser um símbolo. 

Armazém fechado.

Armazém vermelho. 

Cortinas de aço abaixadas e vermelhas. 

Houve um incêndio, essa ideia volta a rondar minha mente. Se a gente cria a partir das imagens que criamos e ficam latejando dentro da mente querendo sair de alguma forma, vou dizer: em minha cabeça há um incêndio. 

Armazém vermelho.

Fogo.

O que vem agora?

Tenho fome e você tem razão: interajo com as pessoas.

Logo, não posso estar morta, nem no necrotério, como você havia imaginado.

Não posso, posso?

22:09

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